O universo gastronómico é vasto e diversificado, sabemo-lo bem. E quanto mais nos interessamos por determinado assunto, mais ele se bifurca em mil outros. O grande capítulo dos gelados abarca muito mais do que o simples cone, copo ou pau que povoou a nossa infância. É um alimento autónomo particularmente nutritivo e particular amigo do vinho. A minha experiência nesta faixa do conhecimento é uma acumulação sustentada de perplexidades. Algumas aconteceram cedo na minha vida e começo por essas, em jeito de convite à leitura de coisas menos comuns. Estamos perante uma explosão combinatorial, por isso escolho os momentos que melhor ilustram o caso.
O mundo em forma de gelado foi-me mostrado em momentos fortes e marcantes. Vem-me sempre à memória uma das muitas vezes em que fui a Espanha, para acompanhar os meus tios em viagens de negócios. Em 1979, com a ETA a impor o estado de sítio em Bilbau, tinha eu 14 anos apenas. Nas ruas, passavam militares de metralhadora em riste, com o dedo no gatilho e não havia pessoas entre o anoitecer e a alvorada. Havia muita tensão e medo portanto, que me fez, na altura, pensar seriamente na gravidade do momento. Foram buscar-nos, a mim e às minhas primas, ao hotel e seguimos para o clube náutico. Estava fechado, por efeito do estado de sítio que referi.
O indivíduo que nos convidou era acionista de referência do Banco de Bilbau, que decidiu mudar o nosso jantar para a exclusivíssima Sociedad Bilbaina. Experiência memorável. Fomos acomodados num salão fantástico, barroco em todos os aspetos, da decoração aos empregados, em trajes dignos de Luís XIV. Refeição impecável, com vários pratos e requinte a toda a prova. No momento final, vem a última sobremesa, com o simpático nome de souffle do Alasca. Uma imensa bola de gelado a flutuar em rum, a vir em chamas para a mesa. A dita grande bola foi cortada em fatias iguais, ainda em chamas, e finalmente servida em pratos individuais. Sabores que nunca mais esqueci. Sabia a pêssego e desfazia-se no contacto com a língua. Tinha, além disso, uma crocância assinalável e pequenos pedaços de frutos secos no corpo gelado da incrível sobremesa.
À maneira de Virgínia Woolf, puxo o fio da consciência e vem-me à memória uma conversa que já tinha tido antes com o imponente e bem disposto senhor Atílio Santini, na geladaria de Cascais, onde existe ainda hoje. Italiano, casado com uma espanhola, casal exemplar. Devo ter sido metediço. Estava ele a mexer um gelado num dos muitos potes gelados que compunham a geladaria e quis explicar-me como eram feitos. Aquele, em particular, era de baunilha e explicou-me que o segredo principal estava na matéria-prima propriamente dita. Deve ter sido a primeira vez que ouvi que se tratava de uma vagem delicada. Muito potente, mesmo quando utilizada em doses homeopáticas. A seguir perguntou-me qual era o gelado Santini de que mais gostava. A resposta era óbvia: limão. E ele explicou-me que os limões vinham de um pomar especial. Senti-me enganado, nesse tempo da minha vida achava que era feito com sumo de limão e que podia ser congelado. Sorriu, divertido, garantindo-me que o gelado de que eu era fã era mesmo feito com limões autênticos.
Muitas décadas mais tarde, conheci, na Bairrada, o grande mestre italiano da destilação Vittorio Capovilla, que me revelou o fascínio que tinha por alguns frutos portugueses. Um deles era o limão, outro a pêra rocha e outro ainda o pêssego. Enquanto me dizia isso, eu recordava a instrução recebida em criança do grande Santini. Autêntica epifania. Aprendi na mesma altura a diferença abissal entre gelado e sorvete. A principal é a presença ou não de proteína animal, normalmente na forma de natas ou outros derivados do leite. Importante é, neste caso, conseguir emulsionar uma gordura. Havendo emulsão, em princípio, conseguimos ter um gelado. É certo que a cozinha molecular tem aberto novas galerias de conhecimento e os gelados beneficiaram muito de todas elas. Quando temos apenas fruta ou uma qualquer essência a que juntamos água e açúcar, aí temos um sorvete.
Quase tudo o que sabemos sobre cozinha e ingredientes pode ter versões em gelado fascinantes e sápidas. O chamado trou normand, originalmente feito com a aguardente Calvados (de maçã), é, hoje, um sorvete feito a partir de ingredientes diversos, os quais têm como função fundamental limpar o palato. Outrora, era utilizado nas refeições para separar entre si os pratos de peixe dos de carne. A tecnologia entretanto desenvolvida veio facilitar muito a produção na cozinha, a ponto de permitir a inclusão de sorvetes em vários momentos da degustação. A máquina Paco Jet, com frio integrado, permite fazer uma quenelle de sorvete num par de minutos. Como se vê, o gelado chega a todo o lado.
Havia uma pequena fábrica de gelados por detrás da Igreja do Santo Condestável, em Campo de Ourique, Lisboa, onde o meu pai me levava. Tinha menos de sete anos e não tenho memórias geladas mais antigas que essa. Servia-se em pequenos copos de plástico e comia-se com uma colher ridiculamente pequena também feita a partir do mesmo material. Os cones eram muito frágeis. Desfaziam-se em três tempos, deixando as mãos cheias de gelado. Vistas bem as coisas, nesses meus verdes anos, o gelado em cone era uma fonte de problemas. O assunto só ficou resolvido quando apareceram os cones reforçados, que já conseguiam aguentar um gelado composto por cima. Foi um deserto relativamente difícil de ultrapassar. Houve um ponto intermédio na escala de aprendizagem, que me proporcionou muito prazer. Inicialmente, era feito com gelado básico, mas, com o tempo, ganhou consistência e qualidade. Falo da sandes de gelado. Não dura muito na mão, mas é fresca e saborosa. Gosto muito de a acompanhar com um Chardonnay sem madeira. As notas de pastelaria e panificação típicas da casta entroncam bem com a bolacha da sandes. O todo é maior que a soma das partes, sem dúvida. Tenho pena que seja uma raridade nas melhores gelatarias. Para mim, representa uma certa universalidade, embora saiba que não faz parte das preferências da maioria.
Foram os chineses?
É difícil estabelecer uma cronologia para a história do gelado. Isto porque adoçar a boca com uma preparação gelada ou semi-fria faz parte da humanidade desde sempre. Há dois mil anos, na Pérsia era prática corrente pegar em neve e deitar-lhe sumo de uva por cima, para criar uma sobremesa muito popular, ligada à própria história do vinho. Alexandre Magno, Rei da Macedónia, gostava de uma preparação semelhante, mas enriquecida com mel. Entre os séculos VII e X, na dinastia Tang, os chineses elevaram aos píncaros a arte da cozinha fria. Utilizavam, por exemplo, leite de búfala, para produzir gelados exóticos juntamente com farinha e cânfora. Seguramente influenciaram a vulgarização do sorvete e, depois, os gelados, tal como os conhecemos hoje.
Por outro lado, temos de atender ao facto de terem sido os árabes os primeiros a combinar leite, açúcar e sabores naturais entre si. Fizeram-no inicialmente com bebidas refrigeradas com neve, passando, a posteriori, a técnicas mais elaboradas, tocando no gelado actual. A abertura das rotas do Oriente trouxe a novidade total para Itália, França e a Europa em geral. Basicamente, raspava-se um gelo com uma ferramenta especial, que depois se impregnava e batia, mantendo a temperatura baixa. A cremosidade foi bem acolhida e foi-se criando um padrão universal, servindo o Velho Mundo por toda a parte.
No século XVI, os ovos entraram na dança culinária gelada pelas mãos dos chefs italianos e franceses. As custardas ganhavam assim notoriedade rápida e os gelados que se produziam eram deliciosos. No início do século XVIII, o gelado chega à América e rapidamente ganha força industrial, permitindo a todos o acesso à nova pequena maravilha. O resto é conhecido. Não terão sido, por isso, apenas os chineses, nem os ingleses, muito menos os franceses, a inventar o gelado. Mas, no fundo, e em termos práticos, o assunto não nos tira o sono.
O drama do chocolate
Enquanto nas frutas e compotas o gelado tem, desde cedo, parceiro firme e vantajoso, o chocolate tem, para mim, mistério diferente, nem sempre brilhante. Mesmo já na idade adulta e supostamente resolvida, não consegui albergar o gelado de chocolate no coração. E, no entanto, desde miúdo era cultor do chocolate quente da Mexicana, assim como do que se fazia na desaparecida pastelaria Suíça, no Rossio, ambas em Lisboa. A vida tem destas coisas, inexplicáveis. Ou talvez nem tanto.
O gelado de chocolate, para saber ao dito, não pode geralmente ser feito sem a chamada parte branca da fava do cacau. A redução ao frio extremo exacerba ainda mais essa separação clara entre doce e amargo. O chocolate de leite, de que nunca fui fã, é mais simpático e reage positivamente ao estímulo chocolateiro. Por isso, o mundo inteiro aplaude o Ferrero Rocher e diz um tremendo não à semente amarga contida na fava. Quando se trata de chocolate branco, a conversa muda completamente. Damos-lhe esse nome, mas nada tem de chocolate e, tradicionalmente, conhecemo-lo por manteiga de cacau. Ao contrário do chocolate negro, com 70% ou mais de cacau, é rico em gordura, pelo que emulsiona com total eficácia. É utilizado em abundância em bombons, coberturas de pastelaria e gelados. Um emulsionante eficaz pode fazer as vezes, mas não sabe a chocolate. É um drama com o qual temos de conviver. Eu prefiro, como em criança, continuar a evitar o gelado de chocolate. É apenas um parti pris, mas é muito real.
Uma refeição completa
Um gelado pode ser uma refeição completa. Acidez, polifenóis, amargos e doces tornam-no numa iguaria apetecível e até nutritiva. Para nós, “povo tuga”, conservador por natureza, vai demorar muito até que isso aconteça por cá. Faz falta ir até ao Lago Como, nos arredores de Milão, para acompanhar amigos ao almoço na época certa. É absolutamente vulgar e tradicional irmos até essas paragens para saborear um grande gelado. Está a conversa feita. É ver para crer e eu, não só vi como provei. Até repeti. E voltarei, sempre que me for possível. Não é preciso o exotismo da paisagem maravilhosa ao alcance dos milaneses. Nos restaurantes de Milão também se pratica este saudável costume. Nunca cheguei a ver, com os meus olhos, os milaneses a beber vinho com os seus gelados, mas curiosamente é exercício que faço abundantemente. Naturalmente, recomendo a todos que ponham de parte o preconceito e se atrevam a maridar um gelado… com vinho! A experiência é gratificante e dessa nem o senhor Santini se lembrou, senão tinha-nos sentado às suas mesas felizes com um copo de vinho.
A verdade é que uma bola ou quenelle de gelado pode fazer uma enorme diferença no prato. Aperitivos, entradas, pratos de peixe, pratos de carne, pratos vegetarianos e sobremesas, todos podem ser mais equilibrados se contarem com um apontamento gelado. A cozinha japonesa habituou-nos ao gelado de chá verde com feijão e é das melhores recompensas que podemos ter à mesa; o de melancia complementa na perfeição o estufado tipicamente transmontano de feijão verde, tomate e cebola, e harmoniza bem com um branco de Arinto com três anos. Um gelado de ameixa no prato ao lado de melanzana à Parmigiana – prato de beringela e queijo – é a redefinição da palavra delícia. E tantas outras maridagens são possíveis, a maioria das quais ainda por descobrir.
Experiências felizes
Certo dia, por iniciativa do Instituto dos Vinhos do Douro e Porto (IVDP), rumei até ao triplamente estrelado Can Roca, na Catalunha. Almoço memorável, que ainda perdura na minha memória. Pratos de incrível rasgo criativo e técnico, sempre em sucessão surpreendente e até pedagógica. A boa mesa é uma grande oportunidade para crescer e aprender. De repente, como última sobremesa, vem um copo grande com várias gulodices dentro, todas geladas. Alcaçuz, caramelo, framboesa e baunilha, todas com a forma de outras gulodices, servidas com um Porto 40 Anos.
A sequência de toda a refeição foi, por isso, terminada com o chef Jordi Roca, o mais jovem dos três irmãos Roca e o que habitualmente trata da doçaria da casa. A explicação do chef pasteleiro caiu como uma bomba para mim: era de que se tinha recriado o copo de gomas e rebuçados que o pai de Jordi lhe comprava em miúdo, quando iam ao parque de diversões. Felicidade suprema, partilhada com simplicidade por um dos melhores do mundo. Vivam o gelado e as boas memórias!
(Artigo publicado na edição de Novembro de 2025)




