A família Leal da Costa produz vinhos no Alentejo desde os anos
90, mas a história é bem mais longa. No centro está Duarte Leal da
Costa, o elemento da empresa familiar que assegura, desde o início,
a gestão do projecto. Um espírito desassossegado, pronto para
somar novidades ao portefólio vínico, sempre à procura da diferença.
TEXTO António Falcão NOTAS DE PROVA Valeria Zeferino FOTOS Ricardo Palma Veiga
AMIEIRA Marina, Alqueva, 16 de Abril de 2016. Uma multidão de pessoas aguarda junto à rampa de entrada de barcos que um tractor puxe algo que parece vir das entranhas da água. Ao fim de algum tempo, o motor acelera, a corda mexe-se e uma caixa plástica de generosas dimensões sobe lentamente a rampa. A multidão aplaude. Por lá estavam bombeiros, autoridades locais, curiosos e muitos jornalistas, alguns com câmaras de televisão. Ao fim de hora e meia a rampa enche-se de caixas e a operação é dada por terminada.
Um barco a cerca de 100 metros parece ser o centro de controlo de todo o aparato. Vêem-se mergulhadores na água, mas à proa do barco uma figura gesticula e dá orientações. Reconheço-o imediatamente. É Duarte Leal da Costa, que minutos depois está em terra. Este aparato mediático assenta-lhe como uma luva. E ele sabe bem porquê: o vinho que tinha repousado durante vários meses nas profundezas do Alqueva – Conde de Ervideira Reserva tinto 2014 – acabou por esgotar no mercado, em velocidade recorde, cerca de 30.000 garrafas, a cerca de 14 euros cada.
Este episódio ilustra bem a cabeça frenética do gestor da Ervideira (ervideira.pt). Mas existem mais exemplos: o lançamento do primeiro branco de uvas tintas, alguns anos antes, de seu nome Invisível. Todos os anos esgota, apesar de as quantidades crescerem desde a primeira colheita, de 13.000 (2009) para 60.000 (2016). E a preços a rondar os 9 euros! A Ervideira foi também o primeiro produtor do Alentejo a apresentar um espumante rosé. Outro exemplo é ainda, mais recentemente, o das novas fornadas de vinhos que já foram também para o fundo do Alqueva, incluindo espumantes em várias versões.
Se Duarte é um empreendedor sempre em ebulição, o seu ‘companheiro’ de todos os dias, o enólogo Nelson Rolo, consegue estar à altura. No povo diz-se que se junta “a fome à vontade de comer”…
Investir forte em novas vinhas
Mais do que ‘fait divers’, estes episódios acabam por ser outra forma de levar o negócio para a frente. E isso é a outra faceta de Duarte: homem atento às contas, sabe controlar os custos da exploração ao milímetro. Basta vê-lo a manobrar a máquina de calcular. E por isso fica fulo quando vê vinhos abaixo do preço de custo nas grandes superfícies: “Como é possível?! Esta gente não sabe fazer contas?!”
Contas é outra coisa que está agora a fazer. Por outras razões, relacionadas com as vinhas. Duarte quer dar um pulo para a frente na qualidade dos vinhos, e também conseguir aumentar o preço médio de venda. Agora é a altura certa. A empresa está bem financeiramente, facto que lhe dá muito orgulho, e há assim dinheiro para investir. Parte da vinha está a precisar de renovação, não só para introduzir novas videiras a substituir algumas já cansadas, mas também para alterar castas que melhor assegurem o aumento na qualidade. Uma boa parte da vinha resultou de decisões tomadas há muitos anos e hoje sabe-se muito mais do que na altura. Por outro lado, têm existido problemas de Esca, uma doença do lenho (incurável) que tem dado várias dores de cabeça.
Duarte disse-nos que quer reestruturar cerca de 100 dos 160 hectares de vinha. Estamos a falar de um forte investimento, especialmente se pensarmos que plantar um hectare, para ele, não custa menos de 13.000 euros. Custo aproximado total? Mais de 1 milhão de euros! A maioria da nova vinha vai ficar na Herdade do Monte da Ribeira, ao pé de Alvito, no concelho da Vidigueira. Em detrimento da Herdadinha, em Reguengos, que alberga a adega, uns 65 quilómetros mais a norte (por estrada). Uma das razões para esta ‘transferência’ está na área e na disponibilidade de água. Em Alvito a área não só é muito maior como também a herdade é atravessada por um enorme canal abastecido pela albufeira do Alvito (que recebe do Alqueva) e por isso não há aqui qualquer falta de água. Na Herdadinha, mais a norte, a água do Alqueva só irá chegar lá para 2020…
Preparar a terra
As obras já começaram, e em força. Umas parcelas já têm vinha nova e outras estavam em preparação para receber vinha. Um tractor de rasto de generosas dimensões ripou a terra em cruz e estava nesta altura a surribar. A primeira operação rasga a terra em profundidade, com o auxilio de um dente. A surriba é feita depois com o auxilio de uma enorme charrua que vira a terra, expondo uma camada de solo que está escondida há muito. E depois entra matéria orgânica…
A quantidade de rocha que tem saído é notável. As pedras maiores são removidas à máquina. As outras são trituradas na passagem de outra máquina. Como falamos sobretudo de xisto, uma rocha que se desfaz facilmente, não há grande problema. Mas o feitor, Narciso Campaniço, diz-nos que uma variedade de xisto, de cor rosa, não parte facilmente e vai acabar por ser removido à mão.
Felizmente, não falta mão-de-obra. A Ervideira tem em permanência uma boa equipa, na maioria constituída por mulheres, de várias idades, uma raridade nos tempos que correm. Esta equipa faz todo o trabalho de campo, dos amanhos de vinha à colocação de postes e arames. Duarte tem muito orgulho na sua equipa, conhece os elementos um a um mas, pelo que vi, também é exigente. No dia em que por lá passamos, tinha interrompido as férias para pagar ordenados. Como faz religiosamente todas as semanas…
Aumentar a qualidade
A nível de qualidade, a troca é benéfica para a exploração. Castas antigas, com pouco interesse enológico estão a ser substituídas por outras mais consentâneas com os índices de qualidade pretendidos. Por exemplo, Castelão e Moreto estão de saída. Nos brancos vai aumentar a área de Alvarinho e Arinto, duas variedades que têm provado muito bem no acompanhamento da predominante Antão Vaz, tornando os lotes mais frescos. A casta banca Perrum é das que perde: “As videiras envelheceram precocemente”, diz-nos Duarte. A mudança total estará pronta até 2019. Duarte e Nelson ainda não sabem ao certo todas as castas a plantar e, ao almoço, discutiam as opções. Para além das faladas, a tinta Touriga Franca parece uma escolha segura. Até lá, as reestruturações vão continuar e por isso as decisões finais podem esperar…
Mas nem tudo pode esperar: o planeamento da vindima é prioritário. Nelson Rolo faz todos os anos um autêntico dossier com o destino a dar a todas as uvas em função da marca de vinho. E este ano a coisa é mais complicada porque, com menos área de vinha, a Ervideira teve que comprar uvas a fornecedores locais. O dossier contempla todas as marcas – do S de Sol até ao Conde d’Ervideira Private Selection, passando pelo incontornável Invisível.
As novas apostas
As quintas já são da família há gerações (existem vinhos de 1880!). Um dos seus ascendentes foi o Conde da Ervideira, personagem do séc. XIX que, pela sua genica empresarial, foi nobilitado pelo rei D. Carlos. A exploração de marcas próprias começou no início deste século, depois de um cliente das uvas então produzidas ter cancelado o contrato poucos meses antes da vindima. Duarte, à frente da Ervideira desde 1988, fala com a mãe e os cinco irmãos e, num sufoco, decidem avançar com produção própria. Uma adega é construída em tempo recorde e, a partir daí, a casa nunca mais parou. A produção foi aumentando, o mesmo acontecendo às vendas e aos prémios que os vinhos foram conseguindo. É mesmo caso para dizer que “há males que vêm por bem”.
Com a reestruturação nas vinhas a produção tem descido mas com as novas vinhas em velocidade de cruzeiro Duarte espera alcançar ou superar o milhão de garrafas. Vai levar uns anos, mas a adega já está a sofrer alterações com, por exemplo, a entrada de novas cubas de inox. Com mais espaço para fermentação e estágio, Nelson Rolo vai aproveitar para fazer vinhos com mais calma, até porque tudo é fermentado casta a casta. Duarte gostaria ainda de criar uma sala de provas mais ampla e embelezar a adega. Para já está apenas em plano. Os outros investimentos – vinha e adega – têm prioridade…
A Ervideira é ainda conhecida por duas fortes apostas recentes: enoturismo e lojas próprias. No primeiro caso, a loja da adega recebe milhares de visitas todos os anos, oferecendo provas desafiantes e com originalidade. No dia da nossa visita, um grupo de enófilos estrangeiros tentava decidir qual o vinho de que mais gostavam. Afinal, os vinhos, provados às cegas, eram iguais, apenas variava a temperatura de serviço.
Esta loja e as duas outras existentes – em Reguengos e Évora – geram já uma facturação muito interessante, das mais significativas entre os polos de enoturismo do Alentejo. Finalmente, os mercados externos têm também ajudado ao crescimento da empresa, mas obrigam a muitas viagens e a semanas fora de casa. Mas não há alternativa…
Rumo ao futuro
Dir-se-ia que o pragmatismo deste gestor, ou mesmo a sua irreverência ou frontalidade, seria um factor de afastamento no meio dos seus pares. Na verdade, nada disso acontece: do que ouvimos no meio, Duarte Leal da Costa é daqueles produtores que congrega simpatias. A sua capacidade de trabalho é admirada, bem como o seu fair play e, porque não, o seu contagiante dinamismo.
Os vinhos nascidos das terras da Ervideira parecem perceber isto e ninguém os pode apelidar de pouco sérios, mesmo os mais baratos. Os perfis privilegiam a elegância e a moderação alcoólica, como podemos constatar pelas provas anexas, da faixa superior do portefólio da Ervideira. Mas, acredito, vamos certamente apreciar ainda mais os vinhos que irão surgir com as novas vinhas em produção. Basta aguardar mais um pouco…