Se as vinhas recebessem medalhas pelos vinhos que produzem, a Quinta da Pellada seria talvez a vinha mais medalhada da região do Dão. Foi Álvaro Castro quem a tornou um ícone. Ou terá sido o contrário?
TEXTO João Afonso FOTOS Ricardo Palma Veiga
POR trás de um vinho está sempre uma vinha. E a pergunta que surge é se uma vinha, por si só, é condição suficiente para fazer um grande vinho.
“Não tive qualquer mérito” – foi a resposta de Álvaro Castro à suposição. E assim nos invade um certo e insondável pragmatismo da mãe-Natureza que, quando reúne condições óptimas de expressão, fá-lo em modo decorrente e magnífico. E por sempre desconhecermos, objectiva e concretamente, as razões de como o faz, ainda mais nos interrogamos, gratos por tal dádiva.
Este engenheiro civil que nunca chegou a desempenhar funções relacionadas com a formação tomou conta das terras da família em Pinhanços ainda muito novo, com pouco mais de 20 anos de idade. Em 1989, com 37 anos, e no início do despertar do “novo Dão”, decide deixar de vender a uva das vinhas plantadas pelo seu pai e lançar-se na procura do vinho de seu gosto. Entrou no momento certo e com o pé direito.
Nesta época Portugal tinha acabado de despertar para a questão varietal, assunto nunca abordado até então, num país onde a enorme quantidade de castas e respectivas sinonímias (mais de um nome para a mesma casta) representavam quase sempre um labirinto pesado e inabordável, em termos sistemáticos, para a maioria dos viticultores nacionais.
A coqueluche de então era a Touriga Nacional, que Álvaro Castro soube explorar como ninguém. E aqui sim, teve o enorme mérito de fazer com que a vinha deixada pelo seu pai desempenhasse um papel brilhante, não só na produção de excelente vinho como também na satisfação dos enófilos consumidores das novas tendências.
A vinha mais representativa deste produtor é a vinha velha da Pellada, de onde Álvaro “cozinhou” de modo assertivo e inteligente os primeiros vinhos e as primeiras marcas. Havia e há também a Quinta de Saes, sempre num segundo plano (ainda que o primeiro Saes branco tenha sido, de facto, o primeiro Primus, porque foi feito com uva da vinha velha da
Pellada) e mais tarde, já com Álvaro Castro perfeitamente estabelecido como um dos principais produtores de vinho do Dão, a aquisição da Quinta do Outeiro, ao antigo proprietário da Casa Passarella, Manuel Santos Lima.
Um verdadeiro mestre a criar marcas fortes, Álvaro Castro é por isto mesmo, e sem realmente o buscar, um dos produtores mais mediáticos de Portugal. De momento possui 26 referências de vinho, e 8 vêm da Quinta da Pellada, um verdadeiro tesouro, herança de família, para o qual soube construir a chave com que o abrir.
Várias vinhas numa vinha
A Quinta da Pellada é constituída por várias parcelas de vinhas que somam um total de 26 hectares. A vinha velha, plantada pelo seu pai nos idos anos 50, encontra-se a nascente de uma casa solarenga usada para os maiores eventos da empresa. É a partir dela que a história deste produtor se faz.
Está situada num pequeno promontório a noroeste da linha obliqua do sopé da serra da Estrela (com orientação NE/SW). Pela manhã, do solheiro promontório da Quinta da Pellada, com a palma da mão a dar sombra e conforto aos olhos, podemos admirar o imponente, escuro e sombreado maciço montanhoso da serra da Estrela.
Levemente elevado, a uma cota máxima de 545 metros de altitude, este cabeço/promontório, de forma larga e aplanada, tem leve inclinação/exposição a Sudoeste. Do pequeno alto podemos sentir as excelentes condições de drenagem natural que aqui existem. E não falo apenas da água, pois estamos numa zona de elevada pluviosidade (entre 1000 e 1400 l/m2/ano), mas também do frio intenso invernal e primaveril. Do alto da serra, em noites calmas, desce a assassina geada que pode aniquilar muita florescência na fase inicial do ciclo vegetativo. Como bem elucida Álvaro Castro, “o frio é como a água, temos de lhe dar saída para não causar estragos”.
O solo é de granito muito antigo, erodido em areia. Solo rico em sílica com pH ácido que dificulta a alimentação da videira controlando e ajustando (juntamente com a poda) a produção de uva por cepa a um nível baixo, que permite a excelência na qualidade.
Neste solo está um dos grandes trunfos da vinha velha da Pellada. Bem drenado, pouco fértil e com um complemento argiloso que faz a diferença durante a estação quente e seca. A orografia e características do subsolo desta fantástica parcela permitem à sua vinha velha, mesmo nos anos mais difíceis (como este de 2017), uma maturação lenta e continuada das uvas.
Neste contexto, Álvaro Castro opta por ser o menos interventivo possível e adopta desde há alguns anos práticas antigas, tais como as do pastoreio. “A melhor maneira de termos um solo fresco e húmido durante o Verão, é mantê-lo alimentado sem intervenções técnicas ou mecânicas, e as ovelhas através da suave compressão da camada mais superficial de solo e através do seu regime alimentar, ajudam muito a fertilizar, a controlar o coberto vegetal e a guardar alguma frescura para a estação seca.”
Por último o pote das castas: “Nesta vinha, acho que tenho um excelente exemplo do que é o Dão em termos de castas ou de field blend, como agora se usa dizer” – comenta Álvaro.
E este é talvez o grande segredo desta vinha. O material usado não vem de clones selecionados, com a feição produtiva direccionada que lhe conhecemos, mas sim de uma selecção massal feita na região desde há séculos e onde a diversidade varietal toma outro e mais complexo potencial aromático e gustativo.
As diferentes Pelladas
Depois de 24 vindimas e de muita observação e avaliação, os 8,5 hectares de vinha velha desmultiplicaram-se em 5 parcelas de que resultam desde a colheita de 2013, quatro vinhos de micro-parcelas: o branco Primus e os tintos Quinta da Pellada “Alto”, “Casa” e “49” (aos quais em breve se juntará o “Fundo”); mais o lote tradicional de tinto da Quinta da Pellada (saído das parcelas do Alto, Casa e Fundo com mais 25% de Touriga Nacional e Jaen).
As parcelas foram separadas a partir da colecção varietal e das características de solo de cada uma. Na de branco, no canto noroeste do pequeno plateau rectangular que é a vinha velha da Pellada, dominam as castas Encruzado e Bical, seguidas de Cerceal, Verdelho, Malvasia Fina, Terrantez, Fernão Pires e outras mais. Daqui sai o vinho Quinta da Pellada Primus, um branco topo de gama feito por duas vindimas, a primeira para as castas mais precoces (Bical, Fernão Pires e Malvasia) e a segunda para as outras.
Quanto às quatro parcelas de tinto, na do “Alto” (localizada na parte superior e mais a Leste do retângulo e de solo menos argiloso e mais arenoso) dominam as castas Jaen, Alvarelhão, Tinta Pinheira, Tinta Carvalha, Bastardo, e outras com reduzida expressão como a Touriga Nacional, o Português Azul e o Negro Mouro; na parcela “Casa”, junto ao solar, de solos mais compactos com alguma argila e forte presença de quartzos, dominam as castas Alfrocheiro, Touriga Nacional e Jaen, acompanhadas pelo Tinto Cão, Tinta Amarela e Tinta Pinheira; e na parcela “49”, de solos graníticos mais heterógenos, com mais línguas de areias e argila, recolhem-se e fermentam-se em separado as castas Alfrocheiro e Touriga Nacional, sendo o resto das uvas conduzidas para outros vinhos.
Os varietais e os outros
A Touriga Nacional já foi o centro das atenções de Álvaro Castro. O produtor dá atenção agora a outras variedades menos cotadas, como a Jaen, a casta mais presente nas vinhas de todo o Dão num total de cerca de 2.760 hectares, e o Alvarelhão, com uns singelos 23 hectares de área total regional, que anunciam o pouco interesse geral dado a esta variedade.
Estes tintos são feitos a partir da vinha velha depois de vindima cirúrgica destas castas. Videiras velhas, pouco produtivas e de excelente saúde, são as eleitas para a produção
destes exemplares varietais. O fantástico Jaen prova que a casta, além de excelente em vinho de lote, consegue brilhar “a solo” como as melhores, quando bem cuidada, claro está. Quanto ao Alvarelhão, talvez o lote seja o melhor encaixe, ainda que não existam suficientes dados, ou suficientes vinhos estremes, para se ser conclusivo.
Adjacente ao bloco rectangular da vinha velha e em direcção à montanha, uma suave encosta de exposição Sul contém mais nove parcelas de vinha responsáveis por mais dois vinhos emblemáticos da Quinta da Pellada. São eles o talhão de Touriga Nacional da Entrada que dá origem ao conhecido Carrocel, e o talhão 12, que produz um soberbo e elegantíssimo Quinta da Pellada Baga. Neste caso mais um mérito para Álvaro Castro, dos raros produtores regionais a defender uma variedade originária do Dão, que ocupa o 2ºlugar nas tintas mais plantadas (2.332 hectares), que é corresponsável pelo prestígio do Dão antigo e que continua a ser desprezada pela região não só a nível vitícola como também institucional (não surge entre as castas recomendadas para DOC Dão).
Estes vinhos não foram incluídos na prova que aqui relatamos por não pertencerem à vinha velha que constitui o embrião do projecto de Álvaro Castro e que serviu de rampa ao produtor para ele subir ao podium dos vignerons nacionais. Esta vinha e muitas outras espalhadas por Portugal constituem um repositório genético importantíssimo para o presente e futuro do país vinhateiro.