De outros tempos mantêm o nome e o prestígio, mas onde havia tradições agrícolas dominam agora as pressões imobiliárias. Em Bucelas, Carcavelos e Colares, a vinha luta agora pela sobrevivência. Roteiro enoturístico pela cintura verde que enfrenta a maré de betão da zona metropolitana de Lisboa.
TEXTO Luís Francisco
FOTOS Ricardo Palma Veiga
Em Oeiras, um hectare de terra em zona urbanizável pode custar entre um e dois milhões de euros. Que ainda prosperem vinhas é quase inimaginável, mas os terrenos da Estação Agronómica Nacional resistem à pressão urbanística e é aqui que se mantém erguida a bandeira do histórico vinho Carcavelos. Em Colares, há menos de 20 hectares de vinha em chão de areia, em tempos a imagem de marca da região. Até em Bucelas os ecos da expansão urbana se fazem ouvir há já algum tempo. Pode a viticultura resistir na franja de uma grande cidade?
A resposta não é fácil, nem linear, mas os sinais apontam para que sim. Haverá até quem diga que a viticultura, em particular, e a agricultura, em geral, são indispensáveis para conter os delírios urbanísticos e preservar a identidade dos locais. Nos últimos tempos, o processo de extinção dos vinhos da periferia lisboeta parece ter sido travado. Ainda é cedo para cantar vitória, mas as notícias são animadoras.
No que ao enoturismo diz respeito, a proximidade de um grande centro populacional – para mais, no centro da atenção mediática mundial – é um manancial de oportunidades. Resta aproveitar a maré humana que todos os dias desagua em Lisboa e saber cativá-la com propostas interessantes. E este processo parece estar a ser (ainda) mais lento do que o da recuperação do entusiasmo pela vitivinicultura. Normalmente, a prioridade é dada ao vinho e só depois vem o enoturismo. Mas neste cenário, as receitas e notoriedade que se garantem através dos turistas podem ser a verdadeira locomotiva para os vinhos da cintura verde da capital.A região é Bucelas, mas, para quem vai de Lisboa pela A8 ou A9, nem é preciso fazer o caminho todo: A-das-Lebres fica logo ali, junto a Loures. E a Quinta das Carrafouchas está na linha da frente, não só da actividade enoturística como também vitivinícola – num dos seus extremos já cresce uma pequena urbanização. São quatro hectares de vinha (3,5 tinta e 0,5 branca) e um mundo de surpresas que se escondem por trás da longa fachada cor-de-rosa estendida ao longo da estrada.
Entramos por uma sala de provas, com painéis de cortiça para os turistas assinarem e um balcão de madeira africana e pedra que já conta mais de 80 anos. Cá fora, uma extensão do espaço, para dias mais quentes; a seguir um salão para eventos com decoração rústica e onde as mesas redondas são, na verdade, bobinas de cabos eléctricos; no exterior, uma zona coberta limitada por paredes de vidro para apreciar a paisagem de copo na mão. Um dia, essa paisagem incluirá o rebanho de ovelhas saloias, uma espécie em risco de extinção, pastando por ali. As ovelhas já existem, o terreiro está a ser preparado.
É assim nas Carrafouchas: há sempre alguma coisa a ganhar forma. Mas também há sempre alguma coisa a acusar os efeitos do tempo. Nos últimos anos, a propriedade foi ganhando espaços funcionais para o turismo, mas o seu verdadeiro encanto está na profusão de recantos românticos que nos transportam para outros tempos. A construção actual data de 1714, mas já havia edifícios no local antes disso.
Descemos um caminho que bordeja as vinhas e damos de caras com um tanque rodeado em anfiteatro por painéis de azulejo representando as quatro estações. A água chega de uma mina encaixada num retábulo com uma enorme bacia em pedra e mais azulejos do século XVIII (num deles, são bem visíveis enormes garrafas de vinho num recipiente com água – a preocupação com as temperaturas de serviço não são uma modernice!). Mais à frente, um enorme tanque de 20x10m também semi-rodeado de muros ornamentados; colina acima encontramos uma nascente encaixada num pequeno edifício quadrangular, com azulejos, claro. Junto à casa, para lá de uma sebe de cedros, a surpresa de um jardim romântico de planta semicircular. O pátio exterior, com chão em calçada portuguesa e painéis de azulejos na varanda sobranceira. E a surpresa final da bem preservada capela.
Ainda um relance pela adega antiga, com o lagar e os velhos pipos de madeira, antes de regressar à sala de provas. Mesmo às portas de Lisboa, há muito para descobrir. Não esquecendo os vinhos, claro.
QUINTA DAS CARRAFOUCHAS
R. Francisco Franco Cannas, A-das-Lebres, Santo Antão do Tojal
Tel: 917 262 385
Mail: quintadascarrafouchas@gmail.com
Web: www.quintadascarrafouchas.com
A prova de vinhos (dois tintos e um branco, com petiscos regionais) custa 15 euros por pessoa, se incluir visita ao património da quinta o preço passa para 25 euros. Solicita-se marcação antecipada. O proprietário recebe pessoalmente, todos os dias (das 9 às 20h de segunda a sexta, das 9 às 12h e das 18h às 21h aos sábados e domingos).
Originalidade (máx. 2): 2
Atendimento (máx. 2): 2
Disponibilidade (máx. 2): 2
Prova de vinhos (máx. 3): 2
Venda directa (máx. 3): 2
Arquitectura (máx. 3): 2,5
Ligação à cultura (máx. 3): 2,5
Ambiente/Paisagem (máx. 2): 2
AVALIAÇÃO GLOBAL: 17
Há edifícios em volta praticamente em todas as direcções e lá fora, para além dos muros de pedra e dos portões (abertos), há carros a circular, gente que se apressa a caminho sabe-se lá do quê, um supermercado com grandes letreiros. Mas aqui, nos terrenos da Estação Agronómica Nacional, entre oliveiras, cedros e vinhas, um ventinho frio soprando de norte, o brilho do mar cintilando ao longe para lá das colinas, estamos noutro mundo.
Estamos em Oeiras e quase soa a bónus que nestes terrenos cresçam as uvas que mantêm viva a tradição de um vinho generoso à beira da extinção. Mas é assim mesmo. Com 12,5 hectares de vinha (castas: Galego Dourado, Ratinho e Arinto, nas brancas; Castelão e Trincadeira, nas tintas) e duas adegas funcionais, a Câmara Municipal de Oeiras é, neste momento, o único produtor com actividade continuada que faz DOC Carcavelos, o mais esquecido dos nossos grandes vinhos licorosos.
A visita começa na Adega do Casal da Manteiga, instalada num edifício de planta hexagonal que era, a um tempo, infra-estrutura produtiva (abrigava os animais de trabalho e espaços para manteigaria e queijaria) e um local de lazer (a torre que remata o edifício funcionava como pavilhão de caça para o Marquês de Pombal (também conde de Oeiras) e seus convidados. Agora, uma das alas serve de adega, a outra está repleta de barricas, em galerias onde ainda são visíveis as antigas manjedouras em pedra.
Mas é mais abaixo, no vale, que esta dupla função produtiva e de lazer se afirma de forma mais evidente, testemunhando o pensamento pragmático do Marquês e exibindo soluções arquitectónicas e conceptuais que hoje parecem evidentes, mas que teriam o seu quê de revolucionário no século XVIII. A segunda adega, a Adega do Palácio, ocupa um edifício que inclui o recuperado Lagar de Azeite e ambas as infra-estruturas são contíguas ao palácio e seus jardins românticos cruzados pela ribeira da Lage.
Com 70 metros de comprimento e orientação Norte-Sul, a adega auto-ventila-se por acção dos ventos dominantes e a frescura no Verão é assegurada pela mina de água que corre por baixo do chão. Em cima, um telhado “flutuante” deixava espaço para a secagem de cereais, o que funcionava como isolamento natural. As surpresas aparecem por todo o lado – na casa de banho das senhoras, por exemplo (uma parte das instalações alberga escritórios dos serviços da câmara), ainda são visíveis vestígios dos antigos lagares em pedra.
Entre as duas adegas, há quase 1200 barricas e é neste cenário que provamos os vinhos, com a novidade de um Carcavelos tinto (10 Anos) que em breve sairá para o mercado. Cá fora, silêncio e luz. No total, a Quinta do Marquês tem 135 hectares murados. Um oásis de verde no mar de betão.
VILLA OEIRAS
Adega Casal da Manteiga
R. da Mina, Tremês (GPS: 38º 42′ 16,04″ N, 9º 19′ 13,72″ W)
Adega do Palácio Marquês de Pombal
R. Aqueduto 222, Oeiras (GPS: 38º 41’ 34,44” N, W 9º 18’ 52,54” W)
A filosofia de animação turística do Palácio do Marquês está a mudar e, com ela, também os horários e os programas de enoturismo. Para informações actuais, consultar o site da Rota dos Vinhos Bucelas, Carcavelos e Colares (www.rotadosvinhosbcc.com), a Confraria do Vinho Carcavelos (Paulo Rocha: 912 714 554 / 924 014 860) ou a Câmara Municipal de Oeiras (www.cm-oeiras.pt).
Originalidade (máx. 2): 2
Atendimento (máx. 2): 2
Disponibilidade (máx. 2): 1
Prova de vinhos (máx. 3): 2,5
Venda directa (máx. 3): 1,5
Arquitectura (máx. 3): 3
Ligação à cultura (máx. 3): 3
Ambiente/Paisagem (máx. 2): 2
AVALIAÇÃO GLOBAL: 17
De uma região que esteve à beira da extinção para outra que também parece ter escapado a esse destino. Em Colares, onde nunca foi fácil fazer vinho, a pressão imobiliária levou ao desaparecimento de muitas vinhas e o sector acabou reduzido a um punhado de produtores. Hoje, há menos de 20 hectares plantados em chão de areia, a imagem de marca destes vinhos feitos em cima do mar. Também aqui, tal como acontece em Bucelas e Oeiras, a natural preocupação com a sobrevivência tem deixado o enoturismo para segundo plano. Mas as coisas estão a mudar e Colares, neste particular, segue na frente.
A Adega Regional de Colares, fundada em 1931, é a mais antiga adega cooperativa do país (hoje tem cerca de 35 sócios) e um destino turístico com movimento muito significativo – são dezenas de visitantes, em média, por dia, levando os números anuais para cima dos 20.000. Mesmo quem chega sem aviso tem acesso à adega dos tonéis, que se estende a partir do espaço da loja ao longo de dezenas de metros. Estão aqui mais de 90 tonéis, o maior dos quais com capacidade para 19.590 litros – a capacidade total é de 700.000 litros. A lista de madeiras (tropicais) usadas nos depósitos é, só por si, um achado: câmbala, macaúba, vinhático…
Se é um enoturista viajado, não se espante se a visão lhe trouxer à memória o Moscatel de Setúbal – o edifício onde se encontra pertenceu, em tempos, à José Maria da Fonseca, que aqui tinha um armazém, e a traça arquitectónica é semelhante à que encontramos em Azeitão. Hoje, a Adega de Colares produz cerca de 100.000 litros anuais (só uma pequeníssima fracção provém de chão de areia, como se imagina; o resto é do chamado chão rijo, terrenos argilo-calcários) e a sua capacidade de armazenamento fala-nos de um passado em que Colares era uma generosa fonte de vinho para todo o país.
A visita guiada leva-nos pelos espaços sociais que estão a ser dinamizados (salas com capacidade para receber até 600 pessoas), pelos jardins e acessos que ligam os vetustos edifícios do complexo murado. E desagua na adega, uma verdadeira montra da evolução tecnológica do sector da vinificação – encontramos, lado a lado, equipamento técnico moderno e antigo (lagares em cimento, depósitos em inox, cubas troncocónicas em madeira com taça para remontagem automática), o que permite explicar a evolução das técnicas ao longo do tempo.
De regresso à loja, podemos optar por uma das várias provas disponíveis no cardápio e saborear o carácter único de uma região cheia de história. É uma bela forma de encerrar o périplo pela cintura verde de Lisboa, porque em nenhum outro lugar ele é tão intenso como aqui, na face Norte da serra de Sintra.
ADEGA DE COLARES
Alameda Cel. Linhares de Lima 32, 2705-351 Colares
Tel: 219 291 210
Mail: geral@arcolares.com
Web: www.arcolares.com
As visitas guiadas (com prova de dois vinhos) custam 15 euros por pessoa e estão sujeitas a marcação prévia e disponibilidade. Mas quem aparecer na loja sem aviso pode sempre dar uma volta pela adega dos tonéis e decidir depois se pretende fazer alguma das provas disponíveis, com preços que vão dos 4 aos 10,65 euros por pessoa. Horário: de segunda a sexta, das 9h30 às 12h e das 14h30 às 17h. Eventos para grupos com preços sob consulta.
Originalidade (máx. 2): 2
Atendimento (máx. 2): 2
Disponibilidade (máx. 2): 1,5
Prova de vinhos (máx. 3): 2,5
Venda directa (máx. 3): 2,5
Arquitectura (máx. 3): 2,5
Ligação à cultura (máx. 3): 2,5
Ambiente/Paisagem (máx. 2): 1,5
AVALIAÇÃO GLOBAL: 17
ESTAÇÃO DE SERVIÇO
Não faltam opções para reconfortar o estômago neste périplo pelos arredores de Lisboa e seus sobreviventes vínicos. O carácter cosmopolita da região permite encontrar de tudo um pouco, mas escolhemos três restaurantes que simbolizam outros tantos estilos: o toque regional do Barrete Saloio, em Bucelas; a cozinha mais elaborada da Casa da Dízima, em Paço de Arcos; e a pureza dos produtos do mar do Adraga, na Praia da Adraga. Sempre com bons vinhos a acompanhar. Bom apetite!
BARRETE SALOIO – R. Luís de Camões 28-30A, Bucelas; 219 694 004
CASA DA DÍZIMA – R. Costa Pinto 17, Paço de Arcos; 214 462 965
ADRAGA – Praia da Adraga, Sintra; 219 280 028 / 961 910 833
Edição nº14, Junho 2018