Um Alentejo muito especial

Na zona de transição para as serranias de Portalegre, ali entre o regadio intensivo e zonas selvagens, recolhe-se um Alentejo muito especial. Excluídas da geometria dos grandes eixos viários, estas são terras onde encontramos a tradição no seu estado mais puro. E onde há sempre muito para descobrir. No prato, no copo, em conversa com quem lá vive.

 

TEXTO Luís Francisco FOTOS Ricardo Palma Veiga

MESMO quem não vai pela facilidade de imaginar o Alentejo como uma entidade geográfica e culturalmente una pode ser surpreendido pela paisagem e ambiente em constante mutação que encontramos por estas paragens. De Avis ao Crato vão escassas dezenas de quilómetros, mas é quanto basta para passarmos das ondulações suaves e das culturas de regadio para fragas rochosas e uma agricultura tradicional. É aqui que o Alentejo começa a soar a Beira Baixa, por terras e gentes em luta constante contra a distância.

Não há auto-estradas e nem a linha descontínua do IP2 serve de consolo rodoviário. O comboio, esse dinossauro em vias de extinção por estas paragens, serve de raspão algumas terras, mas invariavelmente com horários minimais e estações longe dos núcleos urbanos. E se é verdade que o isolamento e a pobreza carimbaram essa maravilha moderna que é um Alentejo ainda puro e preservado, então aqui temos a certeza de estar em contacto com o que a região guarda de mais puro e genuíno. Os números não deixam dúvidas: o Alentejo é enorme. Com 31.552 quilómetros quadrados, estende-se por cinco distritos (Beja, Évora e Portalegre na totalidade, mais uma parte de Santarém e a metade sul de Setúbal) e ocupa um terço do território continental. É maior do que a Bélgica, por exemplo – aliás, se fosse um país independente, estaria em 33º lugar (entre 49 estados e territórios) na lista por área.

Mas os seus 760.000 habitantes representam apenas 7,4% da população portuguesa – a densidade populacional do país é de 112,5 habitantes por quilómetro quadrado; no Alentejo, fixa-se nos 24… O cenário fica ainda mais radical quando apertamos a malha geográfica: estamos no distrito de Portalegre, o menos povoado do país, com 118.000 habitantes e uma densidade de 19,6. Avis tem pouco mais de 4500 habitantes (densidade: 7,4/km2), no Crato vivem 3700 pessoas (9,3/km2). Escusado será dizer que por aqui reinam os grandes espaços.

Pontuadas pelo casario branco das vilas e aldeias, as ondulações suaves do terreno foram em tempos terra de searas, mares de cereal banhando azinheiras e sobreiros. Mas os tempos mudaram e agora a marca mais saliente da agricultura é mesmo o enfileirar denso de olival intensivo, em regime de regadio. Num ano de seca extrema, a imensa barragem de Maranhão (capacidade máxima: 205 milhões de metros cúbicos, a oitava maior do país) aparece como uma paisagem irreal: a água resiste apenas nos canais principais e muito lá no fundo; os braços laterais da albufeira estão transformados em ermos de pedra solta, ruínas submersas durante décadas torram agora ao sol de um Verão que não acaba. Quando a chuva regressar, a paisagem voltará a alterar-se.

Herdade Fonte Paredes
Mesmo às portas de Avis, à beira da EN243 que leva a Fonteira, a Herdade Fonte Paredes é fácil de encontrar para quem chega à vila, graças à boa sinalização existente – um pormenor sempre de realçar. Adquirida em 1999 pelos irmãos Joaquim e Rui Cerejo, a geração mais recente de uma família que há muito tem no vinho um foco especial, a empresa está, aos poucos, a abrir-se para o mundo. É que, apesar do “low profile” dos proprietários e da sua filosofia de recato, a verdade é que já são mais de 100 hectares de vinha e uma capacidade produtiva projectada para breve que pode chegar ao milhão de garrafas. Aumentar a visibilidade dos vinhos Fonte Paredes, cujo mercado se distribui em proporções semelhantes entre as frentes nacional e de exportação, parece um desígnio inevitável.

Para os visitantes, a sensação mais forte de que não estão propriamente a visitar um pequeno produtor é a visão da adega. Cá de cima, do passadiço aéreo, é praticamente impossível ver o chão… o espaço está todo ocupado com depósitos de inox de capacidades diversas. A linha de engarrafamento está a funcionar e só deixamos este bulício para trás das costas quando espreitamos a sala de barricas e, depois, subimos para a sala de provas e refeições.

Antes já tínhamos passado pela loja, espaçosa e de decoração simplista, mas elegante. Cá em cima, no piso superior, a madeira impera: uma mesa comprida, longos bancos corridos, um balcão. Mas o olhar foge de imediato para o pátio exterior, onde nos podemos sentar a provar os vinhos enquanto espreitamos as vinhas, que começam logo ali, mas – e vamos descobri-lo em breve – se estendem a perder de vista.

O passeio pelas vinhas numa 4L é um clássico da oferta enoturística de Fonte Paredes. Espantosamente – ou não, para quem esteja mais familiarizado com a resistência do vetusto utilitário da Renault – só mesmo em condições muito exigentes se torna necessário recorrer a um veículo todo-o-terreno. Começamos pela vinha mais nova, plantada já em 2017 e que cresce a ritmo impressionante, rumo ao depósito de água e ao telheiro onde uma enorme mesa de mármore pode ser usada para refeições e provas ao ar livre. Daí seguimos em direcção a um dos braços da barragem do Maranhão, sempre na companhia das videiras, que se estendem numa faixa interminável até se lançarem em inclinações mais pronunciadas junto à albufeira.

Regressamos ao núcleo central da herdade. Para sermos saudados pelos rafeiros alentejanos e descobrirmos o enorme cercado onde galinhas de todas as cores e feitios convivem com patos, gansos, coelhos, pavões. Para os mais novos, descobrir ovos recém-postos na pilha de lenha pode ser um desafio aliciante. Isto é Alentejo.

HERDADE FONTE PAREDES
Morada: Quinta de Santa Ana, Apartado 76, 7480-999 Avis
Tel: 242 413 076
Fax: 242 413 077
Mail: info@herdadefonteparedes.pt
Web: www.herdadefonteparedes.pt
GPS: Latitude: 39.0431472; Longitude: -7.8747639
A loja e a sala de provas funcionam de segunda a sexta-feira (8h-12h30, 13h30- 17h). A prova, com quatro vinhos (branco, tinto e dois reserva) custa 16 euros por pessoa, mas o preço pode ser acertado em função dos vinhos pretendidos, petiscos e do número de participantes. Requer-se marcação antecipada, também exigida para os passeios nas vinhas, piqueniques e almoços ou jantares. Preço sob consulta. A reserva de caça (600 hectares) funciona entre Agosto e Fevereiro, mediante marcação prévia.

Herdade da Rocha
Fazemo-nos à estrada, para uma viagem curta mas que nos transporta até um mundo completamente diferente. Das grandes explorações agrícolas a terrenos semi-selvagens, do olival intensivo para o mato e a floresta, do terreno suavemente ondulado para fragas rochosas. Da atmosfera genuína de uma unidade agrícola para o ambiente sofisticado de um lodge exclusivo. Chegámos à Herdade da Rocha, no Crato, para nos instalarmos na Olive Residence & Suites.

A tarde vai avançada e há qualquer coisa de profundamente apaziguador na visão destas casinhas de madeira que se encavalitam no ponto mais alto da paisagem, rodeadas de vinhas e emolduradas ao longe por manchas de eucaliptal. Daqui a pouco, apreciaremos o pôr-do-sol em cima de um penedo de granito e é aí que nos assalta a sensação de que, subitamente, fomos transplantados para outro sítio. A visão da vinha cortada por afloramentos rochosos, por exemplo, lembra-nos imediatamente o Dão. Alguém disse uma vez que a zona de Portalegre é um resumo concentrado do país inteiro. E estava certo.

A envolvência natural joga a favor deste inovador e ambicioso projecto turístico, mas tudo o resto está a ser feito com preceito. Há 8 alojamentos – quatro quartos no edifício principal e quatro suítes à volta do jardim (com nomes de variedades de oliveira), onde crescem coqueiros e encontramos uma piscina “guardada” por estátuas de inspiração oriental. Uma enorme lareira sobre carris promete conforto nas noites mais frescas para quem se instale no telheiro e, caso esse argumento não chegue para nos atrair ao exterior, há sempre a Olive, o poço de mimo em forma de cadela que faz questão de receber cada visitante como um amigo do peito. E o termo visitante, aqui, não se restringe à espécie humana: a Olive Residence & Suites aceita animais.

A propriedade tem 58 hectares, dez dos quais de vinha. Ao fundo, a adega está instalada perto de duas pequenas represas (uma delas atravessada por uma ponte de madeira) e as obras continuam no interior, para criar espaços de turismo e trabalho com uma
filosofia de decoração, no mínimo, sedutora. Na encosta entre a adega e a casa dos proprietários, ligada à unidade hoteleira por um “túnel” de vinha, o verde intenso faz lembrar… sim, isso mesmo: é um mini-campo de golfe, para já com 3 buracos, serão 6 no futuro. E, uma vez que falamos de planos, avance-se desde já com o projecto de criar um grande cercado para veados, do outro lado da vinha, que ocupa uma bacia de solo fértil entre encostas rochosas.

O futuro anuncia-se cada vez mais interessante. Mas, para já, depois de passarmos pelos quartos, pequenos, mas arranjados com requinte, o que conta é isto: a atmosfera familiar de um copo de vinho bebido à volta da mesa, a música ambiente no jardim, o silêncio dos grandes espaços lá fora numa noite sem vento. Imperdível.

HERDADE DA ROCHA
Morada: Lugar Couto do Saramago, 7430-019 Crato
Tel: 910 988 603
Mail: geral@herdadedarocha.pt
Web: www.herdadedarocha.pt
Os preços dos quartos e suítes variam entre os 75 e os 150 euros. Os hóspedes têm ao seu dispor bicicletas para passeios nas redondezas e programas diversos que incluem provas de vinhos, piqueniques e, em breve, golfe. Proximamente, haverá um programa para a apanha da azeitona. Existem planos para isso, mas ainda não se servem refeições.

Fundação Abreu Callado
O leque de propostas para este mini- roteiro enoturístico por terras da barragem de Maranhão já incluiu um produtor familiar e um projecto de nicho. Em Benavila, a poucos quilómetros de Avis, encontramos o terceiro “estilo”, uma casa que aposta tudo na rusticidade. A Fundação Abreu Callado é muito mais do que um produtor de vinho: gere uma Escola Profissional e suporta um Centro de Convívio e Apoio Social, só para dar dois exemplos de intervenção na vida pública da região. E não espanta, por isso, que uma visita às suas instalações seja uma experiência que vai muito para lá do mundo dos vinhos.

À chegada ficamos logo com a sensação de estarmos num sítio especial. O complexo de edifícios, datado de 1758, exibe paredes de um branco imaculado com os lambris debruados a azul forte e estende-se graciosamente em redor de um grande pátio central, prolongando-se do outro lado da rua numa sequência de áreas de serviço recuperadas para se transformarem em espaços didáticos. Um deles é o Museu Rural, onde podemos ficar a conhecer alfaias e maquinaria de antanho, incluindo uma debulhadora Tramagal do século XVIII, que funcionou originalmente a vapor e foi depois adaptada para receber potência de um tractor, através de uma correia transmissora. É uma visão extraordinária, quase irreal, como se os seus tons pastel não pertencessem a um objecto tridimensional, mas estivessem antes impressos na parede…

Outro espaço nesta zona exterior é a Casa do Feitor, que replica a organização e o mobiliário das antigas casas rurais. Dentro de muros encontramos o Lagar, onde não se faz azeite desde 2004, mas, garantem, toda a maquinaria está pronta a funcionar; a Loja, uma antiga tulha de cereais adaptada com pormenores de decoração que reportam ao tempo em que a casa era sede de uma eguada de Lusitanos; e a Casa da Matança, que de talho passou a sala de provas, mantendo as instalações de desmancho dos porcos e os varões para pendurar os enchidos. A intervenção nestes locais procurou ser minimalista, de forma a preservar o carácter rústico das instalações, respeitando assim o seu passado.

Encontramos mobiliário, decorações e utensílios que durante gerações acompanharam a vida das pessoas – em muitos casos, quem tenha ligações familiares ao Alentejo pode mesmo fazer uma viagem no tempo… E este carácter didático associado a uma vertente emocional é, provavelmente, a melhor forma de terminar uma visita a paragens alentejanas ainda banhadas numa atmosfera de profunda e genuína autenticidade. Onde a hospitalidade é muito mais do que apenas uma palavra. Abra-se uma garrafa de vinho e deixe-se correr a conversa. Estamos quase a meio de Outubro e lá fora estão 32 graus. Parece que o tempo por aqui passa mesmo mais devagar.

FUNDAÇÃO ABREU CALLADO
Morada: Travessa Abreu Callado, 7480-228 Benavila (Avis)
Tel: 242 430 000
Fax: 242 434 284
Mail: fundacao@abreucallado.pt
Web: www.abreucallado.pt
Encerra aos domingos. As visitas às vinhas e à adega, Museu Rural, Lagar de Capachos, salas de estágio de vinhos e sala de provas durante a semana (9h-13h/15h-18h), com prova de um vinho, são gratuitas. Ao sábado, só com marcação antecipada, que se recomenda também nos restantes dias. Provas de vinhos para grupos até 15 pessoas, com petiscos regionais: entre 10 e 12,5 euros, com marcação antecipada (48 horas). Almoços para grupos (mínimo: 25 pessoas), com visita e prova de vinhos: entre 30 e 45 euros.

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