Quando, em breve, os portugueses abrirem uma garrafa de espumante para celebrar o Natal ou o Ano Novo, é muito provável que se estejam a preparar para beber Raposeira ou Murganheira, as duas marcas de topo do mercado nacional. Em jeito de preparação para estes momentos, fomos visitar as caves onde estes vinhos repousaram, abraçando a lenta alquimia do tempo.
TEXTO Luís Francisco FOTOS Ricardo Palma Veiga
ESTAMOS no mês das grandes festas do Natal e Ano Novo, alturas em que será bem provável ouvir um pouco por todo o lado o “pop” mais ou menos discreto das rolhas de espumante a saltarem das garrafas. Estando em Portugal, um país com grande tradição vinícola mas escassa cultura das bolhinhas, é muito provável que esta seja, para muitos (principalmente se não viverem na região da Bairrada), a única ocasião do ano em que saboreiam este tipo de vinho, sempre especial mas ainda com tanto por descobrir.
E é uma pena, porque os espumantes reúnem um conjunto de virtudes que parece feito à medida para os ritmos e as vivências da moderna sociedade cosmopolita. São, por norma, menos alcoólicos do que os vinhos tranquilos; podem beber-se nos vários momentos da refeição (como aperitivo, com a comida, no final) e acompanham um vasto leque de pratos, incluindo sabores mais exóticos; e têm uma imagem de juventude e sofisticação. Acontece que, apesar de tudo isso, muita gente ainda não os descobriu. E isso explica o seu consumo residual: segundo dados da ViniPortugal referentes à época 2014/15, o espumante representava apenas 0,6 por cento do vinho produzido em Portugal e o consumo anual era de 0,34 litros por pessoa, contra os 41 litros por pessoa dos vinhos tranquilos. E este é ainda o único sector vinícola em que as importações superam as exportações.
A região por excelência dos vinhos espumantes nacionais é a Bairrada, terra onde nascem cerca de dois terços dos néctares nacionais com bolhinhas, mas há outra que se destaca neste campo. A pequena região de Távora-Varosa, encaixada entre o Dão e o Douro, desenvolve-se em solos predominantemente graníticos e a altitudes que oscilam entre os 500 e os 800 metros. Argumentos de peso para garantir a frescura dos vinhos-base para espumante, que aqui têm dois dos seus maiores paladinos em Portugal: a Sociedade Agrícola e Comercial do Varosa (com a marca Murganheira) e as Caves da Raposeira. Ambas fazem parte do mesmo grupo e, juntas, representam à volta de 60 por cento do mercado nacional.
É por estas terras de vales cavados e extensas cristas montanhosas que traçamos o nosso roteiro enoturístico. Para conhecermos melhor as instalações da Murganheira e da Raposeira, assim em jeito de estágio para os grandes desafios da quadra festiva que se avizinha. Tracemos então rumo para Lamego, sede dos mais populares espumantes portugueses.
Caves Murganheira
Dois números marcam desde logo as primeiras impressões à chegada. Primeiro, o de visitantes: cerca de 25.000 por ano, um total muito respeitável e que nos dá a imagem exacta do profissionalismo de quem aqui trabalha e da qualidade da experiência que nos aguarda. O segundo é ainda mais impressionante: o enorme painel de parede que representa um conjunto de flutes foi feito com 20.000 muselets, o nome das armações de arame que seguram as rolhas das garrafas… A obra de Acácio de Carvalho, professor da Faculdade de Artes do Porto, demorou quatro anos a ficar completa. E o tempo é tema central desta visita.
Estamos na sala de provas e loja, uma vasta divisão que ocupa o andar superior da adega e que se abre numa parede envidraçada para uma paisagem esmagadora, dominada pela silhueta ondulada da serra das Meadas e, mais ao longe, pela pirâmide negra e imponente do Marão. O vale que se estende à nossa frente, verdejante e salpicado de casinhas, não podia ter um nome mais sugestivo: Vale Encantado.
E, por baixo dos nossos pés, outras maravilhas nos aguardam. As caves da Murganheira foram, literalmente, arrancadas à montanha. Estamos em terras de granito azul, conhecido por ser o mais duro de todos, mas isso não demoveu os homens de aqui escavarem túneis, muitas vezes à força de explosivos – em alguns locais, são ainda visíveis nas paredes as perfurações onde foram colocadas as cargas que exploraram as falhas nesta fortaleza natural e permitiram abrir os espaços subterrâneos onde agora estagiam os espumantes que um dia teremos no copo.
O espumante faz-se com uvas, muito conhecimento técnico e… tempo. Muito tempo. E na Murganheira não se poupa em nenhum destes “ingredientes”. Dispondo de 30 hectares de vinhas próprias, distribuídas por três parcelas, a empresa faz cerca de 1,2 milhões de garrafas por ano, o que, naturalmente, implica comprar uvas a produtores da região. E são cerca de uma centena. Os vinhos não se limitam a cumprir os estágios em garrafa definidos para cada categoria; duplicam ou triplicam esses tiveperíodos, que podem ultrapassar os seis anos nalguns casos. Não espanta, por isso, que a quantidade de garrafas aqui armazenadas seja impressionante: um milhão nesta adega, seis milhões no total.
Percorremos as galerias de pedra onde a temperatura ronda os 12/13 graus todo o ano, tectos pingando água aqui e ali das “estalactites” de fungos, paredes irregulares quase invisíveis por trás das pilhas de garrafas. Antes recebemos uma lição rápida, mas recheada de pormenores deliciosos, sobre o processo de vinificação e depois acabaremos a ronda nas linhas de engarrafamento (a manual e a automática). Mas é este silêncio, esta magia da obscuridade, onde o tempo parece ter parado, que nos fica na memória.
Cá fora, de novo deixando escorrer o olhar pelo vale Encantado e pelas montanhas que o emolduram, damos uma vista de olhos pelo restaurante e acabamos a provar um espumante na sala de entrada. A conversa leva-nos até à história do rótulo do novo espumante Chardonnay, chamado Único por ser, na altura em que foi lançado, inédita a utilização desta casta para espumantização. O rótulo traz-nos de imediato à ideia o genérico dos filmes de James Bond… E é isso mesmo: este foi o vinho servido em Nova Iorque e Lisboa na ante-estreia de uma das mais recentes aventuras do espião ao serviço de Sua Majestade.
CAVES MURGANHEIRA
Morada: Abadia Velha, 3610-175 Ucanha
Tel: 254 670 185/6
Fax: 254 670 187
Mail: geral@murganheira.com
Web: www.murganheira.com
Há quatro visitas diárias (preço com prova de um espumante: 2,5 euros) que não carecem de marcação antecipada – às 10h, 11h, 15h e 16h. A marcação antecipada recomenda-se para grupos com mais de 10 pessoas e é indispensável no caso de visitas mais técnicas, que exijam a presença do enólogo, ou no caso de se pretender degustar um petisco (bola regional) juntamente com o vinho. Por marcação, e com preço sob consulta, organizam-se refeições, a cargo da equipa do chefe Rui Paula (DOP e DOC).
Caves Raposeira
Se a Murganheira fica perto de Lamego, as Caves Raposeira ficam mesmo dentro do perímetro urbano da cidade. Se na Murganheira a quantidade de vinho em estágio impressiona, na Raposeira ele esmaga- nos: aqui repousam entre 10 e 11 milhões de garrafas! Uma realidade que só muito recentemente passou a ser possível conhecer, porque o enoturismo na maior cave portuguesa de espumantes só tem três meses.
Passamos pela zona de vinificação antes de entrarmos nas caves, aqui de paredes construídas pelo homem. A cave velha existe desde o início do século XX e estende-se por baixo das vinhas, que ocupam a encosta sobranceira à adega – às uvas vindas daqui juntam-se as compradas a mais 300 produtores da região. Os anos explicarão alguma coisa, os materiais outro tanto, mas o que salta à vista é a profusão de bolores que se agarram às paredes e pendem do tecto. Numa das salas, há mais do que isso: pequenos cachos de uvas, agora completamente camuflados, lembram o tempo em que era aqui que se secavam as uvas para fazer passas – eram usadas para acompanhar as garrafas e compor um kit de Ano Novo. Foi-se a moda, ficaram os cachos mumificados em vida suspensa.
Milhões de garrafas e muitos metros de túneis depois, desembocamos num salão mais vasto, onde apreciamos maquinaria antiga antes de sairmos para o exterior e rumarmos à loja, situada num edifício exterior decorado com mesas altas e estantes de madeira com garrafas antigas, instrumentos de laboratório que já tiveram a sua época, rótulos, cartazes e outros suportes de memória de uma casa fundada em 1818.
Já de copo na mão, saímos para o terraço panorâmico, ainda e sempre a serra das Meadas e o Marão que se adivinha para lá dos prédios de Lamego. Ali à frente fica o vale do Douro, mas daqui nem se adivinha. O sol começa a baixar e o frio vai descendo sobre o vale; melhor voltar para dentro e apreciar a paisagem (e o vinho) sentados à janela, decoradas com aqueles banquinhos a que chamavam “dos namorados”. Abaixo do edifício, ouve-se correr água e um relvado promete frescura e sossego para dias mais quentes.
As vinhas, como já se disse, ficam logo ali, atrás da imponente fachada da adega, coroada com um anúncio luminoso de proporções gigantescas. E é para lá que seguimos, começando por perceber porque é que a Raposeira é das poucas casas em Portugal autorizada a usar uvas de duas regiões distintas: é que a primeira parcela de vinha, uma pequena faixa mesmo junto ao edifício, ainda fica na região demarcada do Douro. Távora-Varosa começa logo a seguir, do outro lado da estrada de terra batida.
As vinhas trepam por esta encosta de solos graníticos até à linha de cedros que marca a crista da montanha. Para lá deste bosque ficam, de um lado, os terrenos de um convento integrado no Santuário de Nossa Senhora dos Remédios (cujos pináculos se descortinam mais abaixo); e, do outro, o campo de treino dos Rangers. Em Lamego, o espumante é uma religião bem guardada.
CAVES RAPOSEIRA
Morada: Lugar da Raposeira, Apartado 9, 5101-909 Lamego
Tel: 254 655 003
Fax: 254 655 928
Mail: geral@cavesdaraposeira.com
Web: www.cavesdaraposeira.com
Há quatro visitas diárias (preço com prova de um espumante: 2,5 euros) que não carecem de marcação antecipada – às 10h, 11h, 15h e 16h. A marcação antecipada recomenda-se para grupos com mais de 10 pessoas e é indispensável no caso de visitas mais técnicas, que exijam a presença do enólogo, ou no caso de se pretender degustar um petisco (bola regional) juntamente com o vinho.