Rio abaixo, de copo na mão

Os vinhos do Tejo estão, de forma segura e consistente, a vencer o preconceito. E se o que nos chega ao copo é bom, então vamos descobrir o que está por trás, as histórias, os terroirs e as pessoas que dão corpo e alma a uma região que se reafirma. “Descemos” o Tejo, parando pelo caminho para retemperar o corpo e o espírito.

TEXTO Luís Francisco
FOTOS Ricardo Palma Veiga

A região vitivinícola do Tejo é muito recente, mas tem uma história secular. Paradoxo? Nem por isso. A tradição de fazer vinho no vale da metade oeste do maior rio da península Ibérica tem a sua origem nos tartessos, um povo oriundo da região do Guadalquivir (sul de Espanha), que terão introduzido a vinha no que viria a ser o território português por volta de 2000 anos antes de Cristo. Um milénio depois, os fenícios trouxeram novas castas para as regiões onde estabeleciam comércio, nomeadamente a embocadura dos grandes rios, como o Guadiana, o Sado, o Tejo e o Mondego. Em 1170, no foral de Santarém, já D. Afonso Henriques menciona o vinho. E o resto é história.
Mas quando se fala de vinhos do Tejo estamos a olhar para pouco mais de uma década: a região vitivinícola do Tejo só ganhou este nome em 2008, enterrando – no papel, ainda que não de imediato nas mentalidades – a antiga região Ribatejo. Esta reorganização lá terá tido a sua argumentária burocrática, mas o propósito subjacente desde sempre ficou claro: era preciso mostrar aos consumidores que se vivia uma nova era. O vinho do Tejo já não era o “carrascão” produzido em grandes quantidades e despachado para as carvoarias e tascas de Lisboa. Nascia o futuro.
Hoje, o Tejo engloba cerca de 17 mil hectares de vinha e é responsável por cerca de dez por cento da produção nacional (média de 650 mil hectolitros/ano). Espraia-se ao longo do rio desde praticamente o centro geográfico do país (Mação, Ferreira do Zêzere) até às portas da cintura urbana de Lisboa (Azambuja, Benavente). O rio define os três terroirs da região: junto à água, as férteis planícies do Campo; na margem esquerda, os solos arenosos da Charneca; na margem direita, os terrenos argilo-calcários do Bairro.
Mas isto é saber de biblioteca (ou internet, nos tempos que correm). É preciso pôr os pés ao caminho para descobrir tudo o que o Tejo tem para dar, no seu cruzamento de rituais e culturas (das Beiras, do Alentejo, das influências litorais que chegavam nos barcos e, naturalmente, desse imenso Ribatejo que alberga esta região). Começámos no Tramagal, junto a Abrantes, e descemos o grande rio até ao Cartaxo, com paragem em Almeirim. De copo na mão e espírito aberto. Já temos saudades.

Há muito tempo que se produz vinho por aqui, mas a “era moderna” da Quinta do Casal da Coelheira começou em 1986, quando foi adquirida pelos actuais donos. Nessa altura, vendia-se toda a produção em garrafão e foi preciso criar marcas, investir na adega, reconverter as vinhas. Em pouco tempo, a qualidade desse trabalho teve expressão nos vinhos. Mas ainda havia um problema, explica Nuno Rodrigues, enólogo e proprietário: “A imagem dos vinhos, o que as pessoas sentiam no copo, não correspondia ao que encontravam aqui.” E há seis anos o espaço foi remodelado.
As linhas tradicionais da unidade agrícola ribatejana continuam lá, com os edifícios compridos a delimitarem um pátio interior (enriquecido com incríveis painéis de azulejo que mantêm toda a frescura ao cabo de quase 40 anos), um antigo poço no centro do espaço. A diferença é que numa das alas, em vez de celeiro e estábulos, temos agora uma loja, um espaço multiusos e uma sala de provas. Visual moderno e simplista, com madeiras claras e superfícies vidradas coabitando em harmonia sob um altíssimo tecto forrado a madeira mais escura.
Entramos pela loja, onde os vinhos da casa se mostram em expositores e armários de madeira, enquanto num ecrã passa em vídeo a história deste projecto. Duas grandes portas levam-nos ao salão, capaz de albergar eventos para até uma centena de pessoas e onde encontramos alguma maquinaria antiga e pedestais com as garrafas mais emblemáticas da casa. Por cima de quem entra, um cubo de madeira projecta-se sobre o espaço – é um escritório. Ao canto, um balcão; parte do chão fez-se aproveitando antigos esteios da vinha, em pedra.
Uma porta ao fundo leva-nos até à “sala das vaidades”, assim chamada por ter as paredes forradas a diplomas conquistados pelos néctares da Coelheira ao longo de décadas. É aqui que se fazem provas de vinhos, em mesas e cadeiras de madeira. Numa das paredes, duas imagens pintadas a vinho, por um artista local; ao canto um velho alambique. Abaixo deste nível fica a sala de barricas, do outro lado do complexo a adega, as vinhas (cerca de 55 hectares) a um quilómetro de distância.
Abrantes (apesar da sinuosidade da estrada; que, por outro lado, oferece magníficas vistas sobre o Tejo) fica a poucos minutos e há a promessa de uma nova ponte para aceder directamente do Tramagal à A23. O Casal da Coelheira recebe à volta de 1500/2000 visitas por ano, sem grandes grupos, que não são fáceis de gerir naquele espaço. Famílias, casais e grupos de amigos encontram aqui um espaço moderno e funcional integrado num complexo com toda a sedução dos velhos tempos. Quanto aos vinhos, ano após ano marcam presença segura entre os melhores da região.

CASAL DA COELHEIRA
Estrada Nacional 118, nº1331, Tramagal
Tel: 241 897 219 / 241 897 802
Mail: geral@casaldacoelheira.pt
Web: www.casaldacoelheira.pt
GPS: 39,26º 58,38N | 8,15º 04,20W
As visitas podem ser efectuadas entre as 9h e as 12 e entre as 14h e as 18h aos dias de semana. Sábados, das 9h às 12h. Mínimo duas pessoas, máximo 15. A visita com prova de três vinhos (branco, rosé, tinto) custa 10 euros por pessoa ou 20 euros por pessoa com prova de três vinhos topo de gama da casa à escolha dos visitantes. A loja funciona no mesmo horário, encerrando ao domingo.

Originalidade (máx. 2): 1,5
Atendimento (máx. 2): 2
Disponibilidade (máx. 2): 1,5
Prova de vinhos (máx. 3): 2,5
Venda directa (máx. 3): 2,5
Arquitectura (máx. 3): 3
Ligação à cultura (máx. 3): 2,5
Ambiente/Paisagem (máx. 2): 1,5

AVALIAÇÃO GLOBAL: 17

Se as instalações do Casal da Coelheira não renegam a sua ligação à terra (chamava-se mesmo Centro Agrícola do Tramagal), mais abaixo no rio entramos numa zona fortemente marcada pela presença aristocrática das grandes famílias que frequentavam a corte – a zona de Almeirim era Coutada Real desde 1424 (D. João I). Os exemplos de grandes propriedades que aliam latifúndio e belos palacetes são vários e extraordinários – Lagoalva de Cima, em Alpiarça; Casal Branco e Alorna, em Almeirim, por exemplo. Escolhemos, desta vez, a Alorna, tutelada historicamente pela figura notável da Marquesa de Alorna, poetisa e mulher de causas que viveu na transição do século XVIII para o século XIX, numa altura em que ao universo feminino estavam reservados tradicionalmente papéis de bem menor protagonismo.
De um lado da EN118, as instalações de trabalho; do outro os jardins e o palácio, com a (agora) anacrónica fachada principal virada de costas para a estrada – mas de frente para a Vala Real, via por onde chegavam, vindas do Tejo, as embarcações que transportavam a fidalguia lisboeta até à lezíria. Com o tempo, nos terrenos contíguos, para lá do arvoredo, cresceram a adega e edifícios de apoio, mas a silhueta esbelta do palacete continua a dominar a paisagem.
A loja fica junto à estrada, na outra “margem”, e no terreiro delimitado pelos edifícios agrícolas cresce uma espantosa planta, um arbusto que só as regras da botânica obrigam a que se chame assim, tal a sua dimensão. Chamam-lhe “bela-sombra”, nome científico phytolacca dioica, também conhecida pelos nomes comuns ombú ou umbú e originária das pampas da América do Sul. Uma bela imagem para nos enquadrarmos na dimensão da quinta: 2.500 hectares, 220 de vinha, produção projectada para 2019 de 2,4 milhões de garrafas.
Visitamos a adega, espreitamos a imponente sala de barricas, passeamos pela alameda ajardinada e admiramos o palacete que reina sobre a imensa lezíria (o interior do edifício está fora do roteiro turístico), as arribas de Santarém ao fundo, a silhueta da ponte Salgueiro Maia mais à esquerda. Junto aos jardins, uma vinha que junta as 27 castas existentes na propriedade, justamente apelidada Jardim das Castas.
Fechamos a visita na loja, para apreciarmos a elegância e funcionalidade das instalações e nos demorarmos no espaço que fica atrás, copos e garrafas sobre mesas que são pipas, conversa fluindo ao ritmo do vinho. Em 2018, não contando naturalmente com o enorme movimento exclusivo da loja, passaram pela quinta cerca de 2.000 enoturistas. Esperam-se mais em 2019. E não espanta: os vinhos são extraordinários, as histórias que vêm com eles também.

QUINTA DA ALORNA
Estrada Nacional 114, Almeirim
Tel: 243 570 706
Mail: geral@alorna.pt; carolina.gomes@alorna.pt
Web: www.alorna.pt
As visitas (centro equestre, adega, exterior do palácio, mas sem prova de vinhos) custam 5 euros por pessoa, 8 euros (prova de dois vinhos), 11 euros (três vinhos) ou 35 euros (seis vinhos, incluindo os Marquesa de Alorna). Ao domingo, segunda e terça o enoturismo funciona das 10h às 12h30 e das 14h às 18h. Quartas, quintas, sextas e sábados, o horário prolonga-se mais meia hora da parte da tarde. A loja está aberta todos os dias, no horário normal.

Originalidade (máx. 2): 2
Atendimento (máx. 2): 2
Disponibilidade (máx. 2): 2
Prova de vinhos (máx. 3): 2,5
Venda directa (máx. 3): 2,5
Arquitectura (máx. 3): 2,5
Ligação à cultura (máx. 3): 2,5
Ambiente/Paisagem (máx. 2): 2

AVALIAÇÃO GLOBAL: 18

Depois de uma empresa familiar e de uma propriedade com história e “pedigree”, o retrato do actual Tejo fica bem composto com a nossa próxima paragem: a Adega Cooperativa do Cartaxo. Antes de mais, um louvor a quem pegou nos destinos desta instituição com quase sete décadas de actividade (foi fundada em 1954) e apostou na sua modernização. Não há-de ser fácil encontrar um nome mais susceptível ao estigma do que este: não lhe basta ser adega cooperativa e ser do Ribatejo, como ainda é do Cartaxo! E, no entanto…
Quando, há alguns anos, a crítica e o público acordaram para o bom trabalho que estava a ser feito por aqui, já a “má fama” dos vinhos ribatejanos levara fortes estocadas de produtores da região que apostavam na qualidade e ambicionavam a excelência. A este lote juntou-se, por direito próprio, a Adega Cooperativa do Cartaxo, que gere cerca de 600 hectares de vinhas, vinifica à volta de 11 milhões de quilos de uva por ano e faz entre cinco e seis milhões de garrafas, mais “bag-in-box”. E se houver dúvidas sobre o gigantismo da operação, basta espreitar as traseiras da adega e pasmar com a dimensão impressionante dos três depósitos em inox que ali se alinham: dois deles têm capacidade para 500 mil litros, o maior chega ao milhão!
Estes, e outros instalados numa ala exterior do edifício de quatro andares (dois abaixo do solo) que alberga a adega, armazéns, laboratório, sala de barricas e, enfim, toda a unidade produtiva, são a resposta para um bom problema: a Adega Cooperativa estava a operar no seu limite e em 2018 nem sequer pôde aceitar novos sócios. A aposta na qualidade e na consistência do trabalho (há 25 anos que Pedro Gil é responsável pela enologia) trouxe frutos e o futuro comercial anuncia-se de crescimento sustentado.
Perante o que atrás foi descrito, facilmente se percebe que a aposta no enoturismo não foi, durante muito tempo, prioritária. Mas as coisas estão a mudar. A inauguração da nova loja, de visual moderno e com sala de provas, logo à entrada das instalações, justificou-se pela elevada procura, mas abarcou igualmente o universo do turismo. Até porque, na última vindima, criaram-se pela primeira vez programas para visitantes e a adesão foi de tal modo entusiástica que ficaram bem claras todas as potencialidades desta actividade. Vai ser melhorado o percurso pela adega e dinamizada a oferta enoturística. Para já, quem for ao Cartaxo não dará o seu tempo por mal empregue. E, ainda melhor, poderá descobrir um lote de vinhos de enorme qualidade a preços bem interessantes.

ADEGA COOPERATIVA DO CARTAXO
EN 365-2, Cartaxo
Tel: 243 770 987
Mail: geral@adegacartaxo.pt
Web: www.adegacartaxo.pt
GPS: 39º 09’ 20.33’’N | 8º 48’ 33.18’’W
As visitas (adega, zona de vinificação, sala de barricas, cave) custam cinco euros por pessoa, convertidos em vale de desconto para a aquisição de produtos na loja. Solicita-se marcação antecipada com 72 horas de antecedência. Na altura das vindimas, estão disponíveis dois programas, um com visita à adega e prova de vinhos comentada (5 euros por pessoa), o outro (30 euros) juntando visita às vinhas com explicação das castas e almoço. Os preços indicados são os de 2018.

Originalidade (máx. 2): 1,5
Atendimento (máx. 2): 2
Disponibilidade (máx. 2): 1,5
Prova de vinhos (máx. 3): 2,5
Venda directa (máx. 3): 2,5
Arquitectura (máx. 3): 2,5
Ligação à cultura (máx. 3): 2,5
Ambiente/Paisagem (máx. 2): 1,5

AVALIAÇÃO GLOBAL: 16,5

ESTAÇÃO DE SERVIÇO
Numa região tão extensa e variada, é quase impróprio recomendar apenas três mesas onde o viajante poderá “reabastecer”. Mas, sem prejuízo para tantos outros locais onde a gastronomia – local, ou outras – está muito bem representada, aqui ficam três sugestões. E não deixe de pedir um vinho da região para acompanhar.
Restaurante Santa Isabel – Rua Santa Isabel, 12, Abrantes; 916 777 068, 967 893 970 (encerra aos domingos e feriados)
Taberna Ó Balcão – Rua Pedro de Santarém 73, Santarém; 243 055 883; www.tabernaobalcao.pt
Taberna do Gaio – Estrada N3 – Cruz do Campo, Cartaxo; 243 759 883; tabernadogaio@hotmail.com; GPS – 39º 07’46.38’’N / 8º 48’50.96’’W

Edição nº22, Fevereiro 2019

 

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