O sol de Primavera já por aí anda há uns tempos e o apelo da praia intensifica-se. Por isso, fomos dar uma volta com os pezinhos na areia – não à beira-mar, mas pelas vinhas da Península de Setúbal. Um roteiro por terras acolhedoras, com vinhos excelentes e… muita bicharada!
TEXTO Luís Francisco
FOTOS Ricardo Gomez
Das margens do estuário do Sado às planuras de fronteira com o Alentejo, das zonas urbanas da cintura de Lisboa aos espaços abertos da costa atlântica, a Península de Setúbal é rica e multifacetada. Na geografia, na paisagem, na tradição – há quem garanta que foi por aqui, há cerca de 4000 anos, que foram plantadas as primeiras vinhas da Península Ibérica. É também aqui que encontramos a segunda região demarcada mais antiga do país, depois da do Vinho do Porto: em 1907, o Moscatel de Setúbal viu o seu estatuto único reconhecido.
Hoje, com 9500 hectares de vinha, a região vitivinícola da Península de Setúbal produz mais de meio milhão de hectolitros de vinho (em 2017/18: 525 milhões), cerca de oito por cento do total nacional. E se o Moscatel de Setúbal continua a ser a maior bandeira de excelência, é impossível fechar os olhos a uma realidade que se afirma: com boas produções e enologia cada vez mais cuidada, os vinhos da região conquistam os mercados internos e externos com a sua notável relação preço/qualidade. Grandes campeões de vendas (Bacalhôa, José Maria da Fonseca, Casa Ermelinda Freitas, Cooperativa Agrícola de Pegões) e muitos produtores de menores dimensões povoam uma região onde imperam os terrenos de areia.
Palmela é o concelho português com mais área de vinha e é quase impossível andar na estrada sem ver as tabuletas que indicam “adega”, um pouco por todo o lado. Mas, desta vez, fugimos do epicentro do sector e formos procurar experiências enoturísticas por outras paragens em redor. Começamos por Setúbal, nas margens da ribeira de Marateca; passamos por Azeitão, fomos até Canha e depois terminamos no Poceirão. Três produtores, quatro propostas para umas horas ou dias bem passados, por entre belos vinhos, boa comida, paisagens que nos fazem esquecer a proximidade dos grandes centros urbanos, gente que sabe receber e muita bicharada. Sim, promete-se interacção com criaturas peludas e penudas. Venham daí, que o sol já vai alto e a jornada promete.
A Gâmbia é um país africano, pois, mas é também uma localidade do distrito de Setúbal e uma herdade que lhe foi buscar o nome. Saímos da EN10 poucos quilómetros a leste da capital de distrito e num instante esquecemos os prédios, os semáforos e os mares de gente. Enormes sobreiros, casas térreas brancas debruadas a azul, ao longe o brilho ofuscante dos planos de água. A maré cheia transforma a foz da ribeira de Marateca num espelho imenso (algumas horas depois, é apenas um canal de água rodeado de planícies de lodo), percebem-se a estrutura rectilínea das salinas e o pontilhado das aves em constante movimento.
A Herdade de Gâmbia tem 650 hectares, 30 dos quais de vinha, de onde saem uvas para os vinhos da casa (a cargo da Sociedade Agrícola Boas Quintas e do enólogo Nuno Cancela de Abreu) e para vender a outros produtores da região. A cortiça, o pinhal e alguma pecuária completam a actividade agrícola da herdade, mas o turismo está a ganhar cada vez maior importância. O espaço Lugar dos Pernilongos (nome de uma ave aquática, já agora), que junta zona de refeições, forno a lenha, terreiro de areia e um telheiro cheio de brinquedos, salta à vista logo à entrada, mas a sua essência está alguns metros mais à frente, nos terrenos e construções contíguos ao núcleo central da herdade: a quinta pedagógica.
Num instante estamos “à conversa” com a Pamela, que se deita no chão de barriga para o ar, à espera de festas. A Pamela é uma porca vietnamita, que aqui chegou depois de anos a viver fechada num apartamento. Com ela estão a Flor de Sal (uma ovelha gorducha), o Ernesto, a Emília e a Papoila (família de cabras anãs), a burra Alfarroba e o seu marido Malaquias. E há coelhos, galinhas, patos e gansos, porcos e cavalos, uma pavoa e uma tartaruga. E um cão, já agora.
Como a miudagem tem muito com que se entreter (incluindo aprender a fazer pão, ou conhecer os segredos da lã, por exemplo), os pais podem aproveitar para se aventurar nos trilhos da herdade, para caminhadas ou sessões de observação de aves. Isto, claro, com a promessa de belos vinhos para provar no regresso. Mesa posta no jardim, com vista para a ribeira, a passarada a chilrear por ali, um sol que desmente o calendário e faz esquecer o Inverno. Uma vinha estende-se até à linha de arvoredo que separa os terrenos agrícolas da zona de influência da maré e há um cavalo que espreita para lá das sebes.
À saída, mediante marcação prévia, podemos sentar-nos no telheiro para desfrutar uma refeição no campo. E é obrigatório passar pela loja para levar os vinhos da casa connosco. Mas leva-se sempre muito mais do que isso quando voltamos à estrada.
HERDADE DE GÂMBIA
Rua da Liberdade, 2910-219 Setúbal
Tel: 265 938 050 / 964 179006 (Lugar dos Pernilongos)
Mail: herdadegambia@gmail.com / lugardospernilongos@gmail.com
Web: www.herdadegambia.com
GPS: 38.553150, -8.760399
Para além das actividades da quinta pedagógica, a herdade oferece a possibilidade de passeios pedestres (com ou sem guia) e observação de aves. O passeio pelos observatórios (há três, nas margens da ribeira da Marateca) custa apenas um euro por pessoa, sem guia – a presença deste será orçamentada em função das circunstâncias. Solicita-se marcação antecipada. Há seis programas de provas de vinhos (mínimo: 4 pessoas), variando entre os 5,5 euros por pessoa (3 vinhos, sem canapés) e os 12,2 euros (cinco vinhos, incluindo Reserva e Moscatel, com canapés). Refeições para grupos mediante consulta.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]
Originalidade (máx. 2): 2
Atendimento (máx. 2): 2
Disponibilidade (máx. 2): 2
Prova de vinhos (máx. 3): 2,5
Venda directa (máx. 3): 2
Arquitectura (máx. 3): 2,5
Ligação à cultura (máx. 3): 2,6
Ambiente/Paisagem (máx. 2): 2
AVALIAÇÃO GLOBAL: 17,5
Num instante mudamos de mundo. A atmosfera bucólica da Herdade de Gâmbia cede o passo ao ritmo aristocrático de Azeitão e, passando ao largo da casa do treinador José Mourinho, eis-nos perante as primeiras vinhas da Quinta de Catralvos, sede da Malo Wines. São 22 hectares exclusivamente de castas brancas (ou quase, porque há uma parcela de Moscatel Roxo), em terrenos planos ou levemente ondulados em redor da adega.
Entramos na loja e vemos muitos vinhos tintos. Como é que… Bom, a explicação é simples: as vinhas tintas ficam noutro espaço da empresa, que é propriedade do médico Paulo Malo. Lá iremos, ao Monte da Charca, em Canha. Mas, por agora, vamos conhecer as instalações deste produtor que faz à volta de 500 mil garrafas por ano, mas cuja adega presta serviços a mais de uma dezena de clientes externos, responsáveis por outro meio milhão de garrafas.
A adega, naturalmente, é ampla, com uma capacidade instalada de 1,2 milhões de litros, termicamente isolada por um prado que cresce na cobertura e com os seus espaços mais “nobres” ocupados por barricas onde estagiam tintos e envelhecem moscatéis. No edifício contíguo, junto à loja, o enorme salão para eventos, com capacidade para até 500 pessoas, e o espaço do restaurante (tem chef residente, mas não está aberto ao público, recebendo apenas eventos e refeições de grupos mediante marcação).
Nas traseiras, o módulo dos quartos, cinco ao todo, com uma sala comum. O regime aponta para uma lógica de self-service, com o pequeno-almoço a ser deixado à porta. Aqui predominam os visitantes estrangeiros, na sua maior parte verdadeiros enoturistas, que visitam a região com o foco nos seus vinhos. É diferente a algumas dezenas de quilómetros dali, numa zona onde três regiões – Península de Setúbal, Tejo e Alentejo – se encontram. Dirigimo-nos a Canha, rumo ao Monte da Charca, um local mais procurado por famílias.
O contraste com Catralvos é ainda mais evidente na atmosfera campestre (chega-se lá por estrada de terra batida, com a surpresa de passarmos por um enorme parque de painéis solares) e na composição das vinhas, que só contemplam castas tintas. Não há adega, porque as uvas são colhidas à noite e seguem para Azeitão. O Monte da Charca é uma verdadeira unidade de alojamento rural, com os quartos rodeados de vinha e bicharada, silêncio total e um céu que explode em estrelas. Quando a Grandes Escolhas lá esteve, estavam em fase adiantada obras de remodelação, que prometiam transformar o local num destino de eleição.
Então vejamos: piscina coberta e spa, piscina exterior e barragem com uma ilha, planos para criar um alojamento num barco e outro numa camioneta vintage, restaurante, muito espaço e um verdadeiro zoo nos cercados ali à volta. Uma família de gamos, outra de avestruzes, javalis, um lama, cavalos, burros, um rebanho com mais de 300 ovelhas… a lista poderia continuar, mas não podemos esquecer os cães. Vários, grandes e pequenos, à solta pelos relvados, sempre prontos para saudar quem chega.
Com 55 hectares de vinha ali à volta, boas estradas de terra batida e caminhos bem desenhados, passear a pé ou de bicicleta é quase obrigatório. Passamos pelos cercados e percebemos que muitos dos animais apreciam o contacto com os humanos – um gamo que encosta a cabeça à grade para ser coçado, as avestruzes que se aproximam curiosas e… gulosas, burros que gostam de festas. Já os javalis procuram esconder-se e o lama, bom, esse mira-nos com ar desconfiado. Uma ponte de madeira permite-nos chegar à ilha, só para descobrirmos que uma parte das ovelhas se adiantou e já ocupa as melhores sombras…
Resta dizer que a gama de tintos feitos com as uvas do Monte da Charca é extraordinária e que, quanto mais não fosse, vale a pena a visita só para ficar sentado a ouvir o silêncio com um copo na mão.
QUINTA DE CATRALVOS
EN379, 2925-708 Azeitão
Tel: 212 197 610
Mail: geral@quintadecatralvos.com
Web: www.quintadecatralvos.pt
As provas de vinhos (que podem incluir visitas à adega e às vinhas) custam entre seis euros por pessoa (grupos com mais de 50 pessoas, três vinhos) e 12,5 euros (entre duas e nove pessoas, três vinhos com queijo ou torta de Azeitão). A experiência vínica, em que os visitantes vestem o papel de enólogo, fica a 28,5 euros por pessoa (grupos entre 10 e 50 pessoas). O preço dos quartos varia entre os 68 e os 98 euros por noite.
Originalidade (máx. 2): 2
Atendimento (máx. 2): 2
Disponibilidade (máx. 2): 2
Prova de vinhos (máx. 3): 2,5
Venda directa (máx. 3): 2
Arquitectura (máx. 3): 2,5
Ligação à cultura (máx. 3): 2,5
Ambiente/Paisagem (máx. 2): 2
AVALIAÇÃO GLOBAL: 17,5
MONTE DA CHARCA
Olho De Bode De Cima, 2985-708 Canha
Tel: 212 197 610
Mail: geral@quintadecatralvos.com
Web: www.quintadecatralvos.pt
O preço dos quartos oscila entre os 75 e os 150 euros por noite. Os programas enoturísticos são centralizados na Quinta de Catralvos, mas é sempre possível realizá-los no Monte da Charca, mediante marcação.
Originalidade (máx. 2): 2
Atendimento (máx. 2): 2
Disponibilidade (máx. 2): 2
Prova de vinhos (máx. 3): 2,5
Venda directa (máx. 3): *
Arquitectura (máx. 3): 3
Ligação à cultura (máx. 3): 2,5
Ambiente/Paisagem (máx. 2): 2
AVALIAÇÃO GLOBAL: 18*
(*nota ponderada; a filosofia do local não contempla a existência de loja)
As mulheres, por estas bandas, têm muito que se lhe diga. Estamos na Quinta da Invejosa, sede do produtor Filipe Palhoça, e em frente, do outro lado da estrada, está a Quinta da Teimosa… O comentário é feito, em tom de brincadeira, enquanto contemplamos a paisagem que rodeia as instalações da Filipe Palhoça Vinhos, no Poceirão. E se a vista é bonita daqui, da enorme varanda no primeiro andar, também é muito interessante lá de baixo, contemplando o edifício.
Cinzento e amarelo, com uma fachada central mais escura, feita com painéis de cortiça. A descrição até pode soar estranha, mas há toda uma elegância que ressalta deste visual que nos remete para as antigas civilizações mediterrânicas, sensação reforçada pela colunata lateral. As obras ainda decorriam quando a Grandes Escolhas visitou a quinta, mas já se podia ter uma noção bem segura do resultado final. É o investimento mais recente de uma casa que começou a apostar no enoturismo há menos de dois anos.
A Quinta da Invejosa tem 18 hectares de vinha (ao todo, a empresa possui 95 hectares de vinhedos), em solos planos de areia, uma adega com capacidade para 1,2 milhões de litros, loja moderna e decorada num misto de tradição e modernidade, salão para eventos e provas. Em breve, terá também uma esplanada exterior com vista para a vinha pedagógica (onde estão plantadas as duas dezenas de castas trabalhadas pela empresa) e um quintal interior onde se planeia promover a interacção com animais domésticos.
As obras de remodelação cortaram o ímpeto inicial da procura enoturística, mas agora não há desculpa para falhar a visita a este local. O cuidado nos detalhes é evidente (o balcão tem uma zona rebaixada, para facilitar o acesso a quem se desloque em cadeira de rodas – e isto é só um exemplo), há peças muito interessantes para apreciar – como o alambique e caldeira que se alinham numa parede interior da loja – e o leque de experiências pode incluir uma refeição ou prova de vinhos na nave de barricas.
Na cave, para além das barricas, há também um pequeno espaço onde estão expostas algumas garrafas que contam a história da casa. O primeiro vinho engarrafado (S. Filipe, um tinto de Castelão) data de 1995 e desde aí a gama alargou-se para três marcas: S. Filipe, Quinta da Invejosa e Filipe Palhoça. Há também Moscatel, claro, e aguardente. Escolha-se um destes néctares e passe-se o olhar em redor, pelas planuras onde as vinhas começam a despontar, pelas linhas de arvoredo ao longe, o casario disperso. A haver aqui espaço para a inveja, será certamente de quem passa na estrada e não pode parar para saborear a vida…
QUINTA DA INVEJOSA
EN5, km 24,8, 2965-213 Poceirão
Tel: 265 995 886
Mail: geral@filipepalhoca.pt
Web: www.filipepalhoca.pt
GPS: N 38º37’18’’ | O 8º43’30’’
Há duas visitas guiadas por dia – 10h e 15h30 no Verão (Abril a Outubro); 10h30 e 15h no Inverno (Novembro a Março). Aos domingos, solicita-se marcação antecipada e um mínimo de oito participantes. Os preços variam conforme a prova de vinhos escolhida e vão desde os quatro euros por pessoa (três vinhos) até aos 14 euros (cinco vinhos e produtos regionais, mínimo quatro participantes). Há também uma prova de espumantes com harmonizações (10 euros, mínimo quatro pessoas). Refeições para grupos mediante consulta. A loja está aberta de segunda a sábado, entre as 9 e as 13h e das 14h às 18h.
Originalidade (máx. 2): 1,5
Atendimento (máx. 2): 2
Disponibilidade (máx. 2): 2
Prova de vinhos (máx. 3): 2
Venda directa (máx. 3): 2,5
Arquitectura (máx. 3): 3
Ligação à cultura (máx. 3): 2
Ambiente/Paisagem (máx. 2): 2
AVALIAÇÃO GLOBAL: 17
ESTAÇÃO DE SERVIÇO
Nem sempre é fácil navegar no dédalo de estradas que cruzam na enorme planície de aluvião que caracteriza esta zona da península de Setúbal e a maioria dos restaurantes alinham pela filosofia de estabelecimento de estrada. Mas há alternativas muito interessantes para “reabastecimento” dos visitantes. Aqui ficam três sugestões, desde os grelhados da Casa das Tortas de Azeitão aos petiscos da Pérola da Mourisca, passando pelo estilo wine bar e sala de chá do Mar Até Cá.
CASA DAS TORTAS DE AZEITÃO – São Lourenço (Vila Nogueira de Azeitão), Praça da República, 37A | 969 146 996
MAR ATÉ CÁ – Rua 5 de Outubro, Cajados | 962 465 120
PÉROLA DA MOURISCA – Rua Baía do Sado, 9, Setúbal | 265 793 689
Edição nº24, Abril 2019