A Touriga Franca é um dos pilares dos vinhos portugueses. Tem um papel decisivo nos vinhos do Porto, aparece em lotes de alguns dos melhores vinhos de mesa do país e timidamente começa a surgir igualmente em rótulos como monovarietal.
TEXTO Dirceu Vianna Junior MW
FOTOS Arquivo
A Touriga Franca deve sua popularidade pelo facto de ser produtiva, versátil e responsável por vinhos equilibrados. Por ser uma casta fácil de lidar, tando no campo quanto na adega, agrada simultaneamente quem planta a uva e quem faz o vinho. Ainda que ligada sobretudo ao Douro aparece em várias regiões do país proporcionando vinhos ricos em cor, sedosos, exibindo exuberância de frutas e delicadas notas florais que asseguram elegância.
Casta que gosta de sol
Portugal dispõe das condições ideais para que a Touriga Franca se desenvolva perfeitamente, um dos motivos pela qual é a segunda mais plantada do país com 12.667 hectares. Trata-se de uma casta onde exposição solar é fortemente aconselhada explica Carlos Agrellos, diretor técnico da Quinta do Noval e Quinta da Romaneira. Pelo facto de necessitar calor para se desenvolver plenamente, adapta-se muito bem na região do Douro onde domina as plantações com 10.121ha, segundo dados do Instituto da Vinha e do Vinho.
Paulo Coutinho, enólogo responsável da Quinta do Portal, concorda sobre a afinidade da Touriga Franca com locais quentes, mas alerta que o excesso de calor pode levar a planta ao stress hídrico, causando interrupção temporária do ciclo de maturação. Outro significativo desafio é o ataque das traças. Touriga Franca é resistente ao oídio e ao míldio, mas detesta humidade. Domingos Soares Franco, vice presidente e enólogo chefe do grupo José Maria da Fonseca, admite que a decisão de plantar vinhedos na serra da região da Península de Setúbal, em encostas voltadas ao norte, décadas atrás, foi uma experiência que não revelou bons resultados, pois em zonas com maior humidade é mais sensível às doenças fúngicas e não atinge o grau de maturação adequado. Hoje seus melhores vinhedos de Touriga Franca estão por isso em solos arenosos, menos férteis e locais mais quentes.
Apesar de ser moderadamente vigorosa, a planta tem porte erecto facilitando o manuseio da canópia. Alexandre Relvas, da Casa Agrícola Alexandre Relvas, explica que a planta necessita de alguns anos para se desenvolver. Antes dos sete anos continua frágil e suscetível a bloqueios de maturação, especialmente em anos quentes e condições áridas com e o caso da sub-região de Redondo, no Alentejo. Já na Vidigueira, devido à presença de solos mais ricos, com melhor disponibilidade de água, a planta sofre menos stress e atinge boa maturação.
O rendimento é geralmente uniforme e consistente, mas pode variar desde 0.5 até 3,5 kg por planta. Tipicamente atinge entre 1,5 to 2,5 kg por planta. Para obter um vinho de qualidade nas condições do Douro o ideal, na opinião de Paulo Coutinho, é buscar rendimentos abaixo de 1 kg por planta, mas varia dependendo do ano, da zona e da idade da vinha. Carlos Agrellos considera normal 35 hl por hectare podendo decair até aos 12 hl/ha em vinhas velhas. Quando a produção é excessiva, as uvas podem não atingir o nível de amadurecimento adequado resultando em vinhos com menos cor, estrutura adstringente e que não possibilitam a elaboração de monovarietais de qualidade, segundo Carlos Agrellos. No Alentejo, Alexandre Relvas acredita que é possível produzir cerca de 7 a 8 toneladas por hectare sem sacrificar qualidade. Nas condições de Setúbal, Domingos Soares Franco prefere restringir o rendimento para cerca de 5 ou 6 toneladas para proteger suas características e riqueza aromática.
Muda consoante o local
Uma particularidade da Touriga Franca, explica Domingos Soares Franco, é que os sabores encontrados na fruta na época da colheita são bastante subtis e não mostram o que vai ser o vinho no futuro. Alexandre Relvas não aconselha ficar à espera de concentração e exuberância no bago. Por esse motivo é preciso conhecer intimamente as parcelas. Além disso, a maturação nas condições do Alentejo não é previsível. Em poucos dias o potencial de álcool pode saltar de 10% para 12,5%. No Alentejo amadurece no meio da vindima juntamente com a Touriga Nacional e Alicante Bouschet, antes de Cabernet Sauvignon e Petit Verdot. Curiosamente no norte do país amadurece mais tarde, o que pode atrair danos provocado por pássaros.
A Touriga Franca manifesta características distintas dependendo das condições edafo-climáticas locais. Uma parcela localizada em altitude de 550 metros, na margem direita do rio Pinhão, origina vinhos com boa acidez e potencial alcoólico na casa de 13%, ideal para compor um lote, declara Paulo Coutinho. Em contraste, outra parcela localizada numa altitude de 300 metros na margem esquerda recebe maior incidência solar e é capaz de atingir nível de maturação superior. Os vinhos são mais estruturados, encorpados e capazes de constituir excelentes monovarietais ou utilizados em lotes de vinhos de alta gama. Com relação ao seu comportamento em solos distintos, Domingos Soares Franco explica que vinhas plantadas em xisto resultam em vinhos elegantes, com boa acidez e certa mineralidade. Em solos arenosos revela estilo mais potente, exuberante, com complexidade, mas sem a mineralidade associada ao Douro.
O bago tem tamanho médio e é envolvido por uma película espessa de cor negra-azulada. Tanto a fruta quanto as folhas são resistentes às altas temperaturas. Os cachos variam em tamanho, entre médio e grande, e são compactos representando um desafio, pois em condições húmidas estão sujeitos a podridão que pode acontecer de dentro para fora. Quando o ataque se torna visível pode ser demasiado tarde. Outro perigo é a chuva quando a fruta já está em estado avançado de maturação. Pode causar crescimento em demasia do bago, possível ruptura e estimular desenvolvimento de podridão.
Fácil de lidar na adega
Na adega é uma casta de fácil extração e, de forma geral, fácil lidar afirma Alexandre Relvas. Um desafio para Paulo Coutinho é a conexão entre o bago e o engaço ser resistente, portanto um obstáculo a desengaçar. Por isso é importante que a fruta seja colhida no seu melhor estado de maturação. Em condições mais frescas quando existe algum engaço verde é prudente não abusar nas macerações longas. Carlos Agrellos explica que a vinificação pode ser feita em lagares com a inclusão de engaço, mas o uso de inox é mais frequente. Caso seja usada como um componente de lote é recomendável fazê-lo o mais cedo possível. Se não for parte de um ‘field blend’ que seja logo no início da fermentação, diz Paulo Coutinho. Touriga Franca responde positivamente ao uso de madeira. Paulo Coutinho prefere barricas novas de tosta média a forte, mas Alexandre Relvas acredita que tonéis grandes de 2500 e 5000L e velhos são melhores para preservar o perfil da fruta e a senso de lugar do Alentejo.
Carlos Agrelos explica que devido à sua qualidade e versatilidade, a Touriga Franca é maioritariamente utilizada em vinhos de lote. Além da contribuição do perfil aromático mais complexo, o facto de ter um álcool provável mais baixo ajuda equilibrar os lotes. Para Paulo Coutinho, a Touriga Franca ajuda harmonizar o conjunto, mesmo quando presente em pequena proporção é capaz de equilibrar o lote e manter as outras variedades no lugar como uma espécie de cola.
Touriga Franca vs Touriga Nacional
A Touriga Franca pode não possuir a mesma exuberância aromática que Touriga Nacional, mas possui textura sedosa e esbanja elegância. É uma casta robusta, capaz de produzir vinhos estruturados e com grande potencial de guarda. Para Carlos Agrellos, Touriga Nacional é mais intensa, explosiva e também capaz de produzir vinhos equilibrados, frescos e exibindo notas frutadas e florais. Ambas se complementam muito bem e são capazes de representar a tipicidade dos vinhos de determinadas regiões. Paulo Coutinho alerta que a Touriga Franca, ao contrário da Nacional, raramente impressiona ao primeiro contacto. É recomendável paciência durante a fase inicial da evolução, tanto com tempo em garrafa quando após servida, deixar revelar-se no copo. Entre as duas, Alexandre Relvas confessa preferência pela Touriga Franca, pois quando atinge maturação ideal é capaz de desenvolver maior concentração, elegância e complexidade. Para Domingos Soares Franco é simplesmente a melhor casta tinta portuguesa.
De acordo com Paulo Coutinho, após os primeiros anos pode mostrar-se agreste. Perde a timidez e começa a revelar suas qualidades e complexidade após o quarto ano. Lembra da colheita de 1997 a qual já havia julgado estar em decadência, mas após sete anos surpreendeu e hoje oferece admirável complexidade aromática. Domingos Soares Franco concorda que as características permanecem inicialmente escondidas e recomenda paciência pois são capazes de despertar vivacidade como é o caso das colheitas de 1999 e 2000 cujos vinhos continuam mostrando excelente características.
Em Portugal e no mundo
Apesar de se portar muito bem em regiões de clima quente a Touriga Franca raramente aparece fora de Portugal. Plantações experimentais existem na Tasmânia. Na Califórnia é possível encontrá-la em San Antonio Valley, Sacramento, Lodi e Paso Robles. Natalie Folsom, Gerente Geral da propriedade Cinquain Cellars, explica que a Touriga Franca foi plantada em 2002 e se porta muito bem nas condições quentes de Paso Robles. Além de compor lotes de vinhos fortificados contribui positivamente na estrutura e exuberância aromática de vinhos tranquilos, juntamente com Touriga Nacional e Tinta Cão. Em Portugal aparece nas denominações DOC do Porto, Douro, Távora-Varosa, Bairrada, Óbidos, Alenquer, Arruda, Torres Vedras e Tejo. No DOC Alentejo é permitida desde que não exceda 25% do lote. A legislação permite que seja usada em lotes de vinhos regionais (IG) na maioria das regiões incluindo Trás-os-Montes, Douro, Beiras, Dão, Lisboa, Tejo, Península de Setubal, Alentejo e Algarve.
O passado e futuro
A Touriga Franca tem um passado evasivo visto que sua origem ainda não foi inteiramente estabelecida. Na opinião de Domingos Soares Franco, baseada em conversas com produtores da região do Douro, a casta teve origem na França, o que ajuda explicar o nome. Por outro lado, existem relatos explicando que a casta foi denominada Touriga Francesa meramente em homenagem à Escola de Hibridação Francesa que serviu de inspiração aos trabalhos de investigação feitos em Portugal no final do século XIX com o objetivo de encontrar plantas resistente a filoxera. Além disso existem narrativas que atribuem a criação da Touriga Franca a um curioso e autodidata do Douro chamado Albino de Sousa, eis a explicação de um dos sinônimos, embora não oficial, pela qual a casta é conhecida localmente. Opiniões divergem com relação a origem e não existem evidências conclusivas que suportem qualquer uma dessas teses, mas um facto incontestável é o parentesco. Antonio Graça, diretor de investigação e desenvolvimento da empresa Sogrape, afirma que os progenitores da Touriga Franca são a Touriga Nacional e o Marufo também conhecido pelo sinónimo de Mourisco Roxo. A casta passou no final do século XX a ser reconhecida como Touriga Franca, para evitar ambiguidade, mas alguns produtores, como Domingos Soares Franco, consideram isso um erro visto que o sector não foi devidamente consultado na época. Insiste em usar a terminologia original na espera que os ambos nomes sejam autorizados no futuro.
Não obstante alguns detalhes do passado sejam contenciosos, o futuro parece mais previsível para essa casta que está perfeitamente adaptada às condições climáticas de Portugal, mas dependerá do comportamento climático das próximas décadas. Como a opinião da maioria dos especialistas prevê condições mais quentes e áridas, as plantações continuarão crescendo. Entretanto, caso essas alterações ocorram de forma dramática isso poderá comprometer o ciclo regular de maturação. Por esse motivo é preciso pensar no futuro distante e plantar vinhedos em locais hoje considerados marginais. Paulo Coutinho sugere explorar locais de maior altitude e, no caso do Douro, entrar pelos afluentes do rio principal, normalmente mais frescos que no vale do Rio Douro.
Raridade…uma questão de mercado?
Um aspecto intrigante é o facto de que apesar de ser a segunda casta mais plantada do país, raramente aparece como vinho monovarietal. Na opinião de Alexandre Relvas não existem mais vinhos monovarietais simplesmente por uma questão de mercado devido ao foco que o país em geral tem com a Touriga Nacional. À medida que houver mais interesse por parte de jornalistas e sommeliers e mais confiança por parte dos produtores, os consumidores terão a oportunidade de descobrir os encantos da Touriga Franca que é uma excelente alternativa para os apreciadores de vinhos frutados, exuberantes e sedosos como Malbec, Merlot, Shiraz. Carlos Agrellos utiliza a casta há muitos anos e faz parte de muitos vinhos da Quinta do Noval e da Quinta da Romaneira. O primeiro monovarietal da Quinta da Romaneira Touriga Franca Vinhas Velhas 2016 foi lançado recentemente. O sucesso comercial imediato levou à produção de todas subsequentes colheitas que serão lançadass nos próximos anos.
A Touriga Nacional pode ser considerada a rainha das castas tintas de Portugal, mas a tímida Touriga Franca é capaz de surpreender com sua excepcional elegância. O termo elegância, na terminologia vínica, é frequentemente usado mas raramente explicado. Embora seja um descritor essencial, não existe definição concreta ou explicação científica para ele. Os vinhos elegantes possuem uma certa precisão, equilíbrio e subtileza. Não se trata de sabores específicos, mas como eles interagem e se revelam no copo. É algo difícil de descrever, pessoal e intangível, mas uma coisa é certa: sabemos quando a encontramos. Na medida que surjam mais vinhos monovarietais de Touriga Franca, mais consumidores irão descobrir o que significa elegância no vinho.
Edição n.º32, Dezembro 2019