Artigo publicado na edição nº 33, Janeiro 2020
O tempo normal das vindimas já lá vai há muito, mas eis os trabalhadores na vinha. E tesouras. E caixotes que se enchem de uvas. Os últimos meses do ano são a época dos Colheita Tardia, vinhos delicados e doces que nascem da anacrónica simbiose entre tempo frio e húmido, fungos cinzentos e muita sabedoria. Chamam-lhe podridão nobre.
TEXTO Luís Francisco
FOTOS Ricardo Gomez
Se o saudoso Vasco Santana, actor incontornável das comédias portuguesas dos anos 1930 e 40, estivesse aqui, não deixaria de saudar esta visão com a adaptação livre de uma das suas mais famosas falas no filme “A Canção de Lisboa”: “Esta planta está muito doente!” E tem todo o ar disso, de facto. Se na longa-metragem de José Cottinelli Telmo o boémio e cábula candidato a médico interpretado por Vasco Santana via doença nas manchas da girafa, aqui mais razões teria para desconfiar da salubridade destas uvas: bolor, podridão, todo um leque de anomalias. E, no entanto…
Felizmente, há aqui gente sabedora, com muitos anos disto. De tesouras na mão – uma mais forte, para destacar os cachos, outra de pontas finas, para aparar os bagos que interessam –, decidem com rapidez e gestos precisos o que vai para o caixote e rumará à adega e o que fica no chão, enriquecendo o solo para colheitas futuras. É assim, afinal, em todas as vindimas. Um olhar mais atento permite, no entanto, descortinar uma diferença fundamental: as uvas que se aproveitam não são as de ar mais saudável, antes as que se encontram cobertas por uma suave teia de bolores cinzentos, as películas num tom arroxeado.
Afinal, o que se passa aqui?
O dia chegou com nuvens no céu, mas boas abertas, depois da chuva da véspera. O vento mal incomoda as folhas nas encostas suaves do vale de Santar, ajudando a suportar uma temperatura que ronda os 4 graus centígrados. Parece uma meteorologia pouco clemente para final de Verão, mas a verdade é que não estamos no Verão. O Outono já vai adiantado. Estamos em Novembro e é agora que se faz uma vindima muito especial: a das uvas destinadas aos vinhos Colheita Tardia.
Os Colheita Tardia são vinhos de sobremesa, delicados, aromáticos, quase incongruentes na sua alquimia de doçura e leveza. E são o produto da podridão das uvas. Não uma podridão qualquer, como facilmente se percebe observando o trabalho da dezena e meia de pessoas que se afadigam na vinha e escutando as explicações do viticólogo da GlobalWines, Aurélio Claro.
Há cachos que estão já castanhos, completamente podres e com um cheiro avinagrado. Estes não prestam, já passaram o ponto. Outros apresentam-se em tons verdes ou amarelados, típicos das uvas saudáveis de castas brancas. Nada feito, ainda não chegaram onde era preciso. As uvas que interessam estão colonizadas no exterior por um fungo cinzento, a botrytis cinerea, mas a polpa continua sumarenta e solta-se facilmente da película. É com elas que faz o Colheita Tardia.
Pequenas quantidades
As uvas que mãos e olhos sábios colhem esta manhã em Santar, nas vinhas da Casa de Santar, geridas pela GlobalWines, foram aqui deixadas propositadamente para este fim. São, ao todo, três longas fileiras (uns 300 metros cada uma) de Encruzado e outras duas de Furmint, casta que na Hungria está na base dos afamados Tokaj, um dos mais valorizados néctares do mundo dos vinhos. Dito assim, parece pouco, mas um cálculo por alto do enólogo Osvaldo Amaro aponta para uns 8 a 10 mil quilos nesta vinha (a que junta outro tanto numa vinha adjacente). Deste total, apenas entre 10 a 20 por cento são uvas com a qualidade necessária para fazer Colheita Tardia. Todas as outras acabam no chão.
Só que o crivo da qualidade não se esgota aqui. Depois de levadas para adega – são feitas apenas três prensagens pneumáticas; a primeira sem qualquer aperto (dá origem ao chamado mosto-flor), as outras com apertos suaves – destas uvas extraem-se mostos que vão, separados, para depósitos em inox, onde se procede à clarificação estática durante três a cinco dias. Daí passam para barricas de 225 litros de segundo uso com mais de dez anos, onde se dá a fermentação alcoólica. Este processo decorre, mais ou menos, durante 30 dias e é interrompido com frio, permitindo que o vinho mantenha a doçura que o caracteriza e um grau alcoólico controlado. Segue-se a alquimia do tempo. A estabilização microbiológica e a maturação podem durar entre 12 e 48 meses. Só então estes vinhos especiais ficam prontos para chegarem ao copo.
É muito trabalho. E pouco vinho, uma vez estas uvas não têm tanto sumo como as colhidas na época normal das vindimas. Não espanta, por isso, que os Colheita Tardia sejam uma pequena preciosidade, vendidas em garrafas de menores dimensões e a preços mais elevados. A marca Casa de Santar é comercializada em meias garrafas (375ml) que custam qualquer coisa a rondar os 20 euros.
Até porque, apesar dos cuidados na vindima e do acerto dos procedimentos na adega, estamos a falar de um processo natural de apodrecimento que nem sempre produz os resultados desejados. “Todos os anos é feita a vindima do Colheita Tardia. Mas o histórico diz-nos que só se engarrafa o vinho aí umas três vezes por década”, explica Osvaldo Amaro. O crivo é apertado: “Este é um Colheita Tardia onde procuramos a nobreza da podridão tardia”, sublinha. Há outras maneiras de fazer vinhos de sobremesa, mas o enólogo da GlobalWines é taxativo: “Deviam ter outro nome.”
O saber de muitos anos
Voltemos à Vinha do Judeu, onde se apanham as uvas para o Colheita Tardia. Os vindimadores avançam devagar, mas persistentemente, ao longo das linhas, ouve-se o “tique-tique” das tesouras, aqui e ali o arrastar de um caixote, de vez em quando uma instrução ou pedido dirigidos a alguém. Fala-se pouco, toda a atenção é necessária para selecionar as uvas na vinha. É aqui que está o segredo.
Conceição Neves tem 55 anos e “já uns aninhos” disto. Apesar da insistência dos repórteres, não se estica em comentários nem se faz à fotografia: está concentrada na escolha das uvas que vão para o caixote. Garante, no entanto, que “esta vindima é mais trabalhosa, exige outra atenção”. Só se consegue abrir uma brecha nesta compostura com uma pequena provocação. Depois de tanto trabalho, deve ser um gosto beber um copinho de Colheita Tardia… “Gosto muito”, atira, finalmente com um sorriso. “É maravilhoso!”
Por volta das 9h30, já com umas boas duas horas e meia de trabalho no corpo, o pessoal interrompe a vindima para comer uma bucha. Por esta altura, a temperatura subiu uns graus e até há quem ande manga curta. Um exagero, assuma-se, que isto ainda é uma manhã bem fresquinha de Inverno. No entanto, este frio é bom para as uvas, porque protege a sua frescura enquanto aguardam que o tractor as recolha para as levar para a adega; e também para as pessoas. Trabalha-se melhor ao fresco, sim, mas o argumento mais forte tem a ver com a reduzida actividade das vespas, nomeadamente as asiáticas, que hão-de aparecer daí a algum tempo, com o sol mais alto no horizonte, atraídas pelos aromas estonteantes das uvas podres que se vão amontoando nos caixotes – algumas, as escolhidas para o Colheita Tardia – ou no solo. E estas são a maior parte.
Por agora, gozemos a pausa na vindima. Passamos pelo gigantesco sobreiro que vigia a vinha do alto da encosta – e sob o qual crescem cogumelos de dimensões jurássicas – e vamos sentar-nos junto à estrada. Daqui contemplamos um imenso anfiteatro de vinhas, entremeadas com manchas de arvoredo, a paisagem típica do Dão vinhateiro. O mosaico de cores é fantástico, desde o verde berrante da erva fresca aos tons quase vermelhos da folhagem de algumas castas, passando por toda uma paleta de amarelos, ocres, castanhos e cinzentos. A paisagem fala por si. E justifica para lá de qualquer explicação o nome do vinho que daqui sai. Este é o Outono de Santar.