À sombra do vulcão

Em menos de cinco anos, a Azores Wine Company revolucionou por completo o negócio e a imagem dos vinhos do Pico. O lançamento dos novos brancos de 2017 foi o pretexto para uma visita à belíssima ilha vulcânica. O que lá encontrei, reforça a urgência de voltar.

 “O vinho do Pico não só he muito, mas justamente o melhor, o que muito mais se deve entender do vinho que n’aquella Ilha chamão vinho passado, porque he tão generoso, e tão forte, que em nada cede ao que em a Madeira chamão Malvazia. “

 – in Saudades da Terra, Gaspar Frutuoso, 1589

TEXTO E FOTOS Luís Lopes

O apreciador de vinhos que, pela primeira vez, visita a ilha do Pico, não está preparado para o que vai encontrar. A paisagem vitícola é absolutamente esmagadora, de uma força telúrica apenas comparável ao Douro vinhateiro, e tal como este, justamente elevada a Património Mundial pela Unesco, em 2004. Os periclitantes muretes (currais ou curraletas, lhes chamam) de blocos de lava, empilhada pedra a pedra para libertar espaço no solo e abrigar as vinhas da brisa marítima, revelam um trabalho minucioso, quase insano, feito ao longo dos séculos. Mas ainda mais impressionantes do que os muros que se admiram, em aparentemente aleatórias quadrículas, são os muros que se adivinham escondidos pelo mato denso e quase impenetrável e que comprovam a importância avassaladora que, em tempos, a cultura da vinha teve nesta ilha atlântica.
Gaspar Frutuoso (1522-1591), historiador, teólogo, sacerdote e humanista nascido em Ponta Delgada, escreveu um conjunto de obras de referência sobre as ilhas atlânticas da Madeira, Açores e Canárias que nos dão uma visão muito realista da vida e actividades locais na época. Mais do que uma vocação, a viticultura no Pico foi uma necessidade, uma vez que o terreno pedregoso e inóspito e a escassez de água determinaram que poucas culturas ali vingassem e limitaram a criação de gado.

Com base nos registos históricos e nas provas evidentes no terreno, a ilha do Pico foi, outrora, um mar de vinha, com cerca de 6 mil hectares em produção e centenas de adegas e alambiques, que exportavam vinho e aguardente através do porto da Horta, capaz de admitir navios de maior porte, na vizinha ilha do Faial. O Pico produzia, os comerciantes do Faial, através de empreendedores britânicos, exportavam o vinho (para as Américas, do Norte e do Sul, sobretudo), tornando o eixo Pico/Faial numa plataforma de relevo nas rotas transatlânticas.
O vinho gerava uma economia fervilhante que acabaria abruptamente arrasada pela praga do oídio, em 1853, e pela filoxera algumas décadas mais tarde. A vitivinicultura do Pico nunca mais recuperou da catástrofe. Dos 6.000 hectares de outrora, e apesar dos esforços abnegados de muitos carolas e viticultores apaixonados, congregados na sua esmagadora maioria em torno da Cooperativa Vitivinícola da Ilha do Pico, fundada em 1949, em 2003 existiam apenas cerca de 120 hectares.

A classificação Unesco, em 2004, foi o primeiro passo para a mudança. Com ela veio a atenção do mundo, dos governantes, dos fundos europeus. Centrada nas zonas dos Lajidos da Criação Velha e de Santa Luzia, foi aí que os trabalhos de reabilitação começaram tendo, de então para cá, sido investidos cerca de 20 milhões de euros na recuperação de muros e conservação de vinhedos. A intervenção nas vinhas do Pico, esteve quase toda confinada à zona classificada Unesco e à chamada “zona tampão” que a envolve, o que obriga a que a recuperação seja feita reabilitando os muros, respeitando a geometria pré-existente, e mantendo as castas e métodos tradicionais. Existem vinhas que têm uma quadrícula mais apertada, outras quadrículas mais aberta. O apoio variou consoante a quantidade de muros a recuperar. O valor máximo do apoio terá chegado aos €28.000 por hectare em quadrícula apertada, e a €19.000 em vinhas sem muros internos. O suficiente para incentivar muitos viticultores a recuperar o património existente. Em 2014, dez anos depois da elevação a Património Mundial, a área de vinha na zona classificada e na zona tampão tinha passado de pouco mais de 100 hectares para 340.
Mas património é uma coisa e negócio é outra. Para se criar (ou recriar, no caso) uma economia vitícola, não basta recuperar e preservar património. É preciso que a uva seja transformada em vinho de qualidade, que esse vinho entre nos canais de comercialização adequados, e que seja capaz de gerar as mais valias necessárias para remunerar de forma compensadora os viticultores. A viticultura do Pico estava agora preservada do ponto de vista histórico e patrimonial, mas faltava dar-lhe o impulso de profissionalismo que a tornasse num negócio compensador. E foi aí que a Azores Wine Company, de António Maçanita, Paulo Machado e Filipe Rocha, teve um papel determinante.

A afirmação não podia vir de fonte mais insuspeita. Daniel Rosa, respeitado empresário local e vice-presidente da Cooperativa Vitivinícola da Ilha do Pico, o maior produtor da região (recentemente premiado pela Grandes Escolhas como Adega Cooperativa do Ano), não tem meias palavras: “Há um antes e um depois de António Maçanita ter chegado ao Pico. Com ele, tudo mudou”.
Vinda de quem vem, um “concorrente”, a frase reforça mais ainda o papel que António e seus sócios têm tido na revolução por que hoje passam os vinhos do Pico. A estória conta-se em poucas palavras. O enólogo António Maçanita, com carreira firmada no Alentejo desde 2004, há muito se interessava pelos vinhos do Açores, de onde sua mãe é natural. Com o apoio do Governo Regional, realizou diversos trabalhos de investigação a partir de 2010 sobre as castas locais (nomeadamente o trio maravilha, Terrantez do Pico, Arinto dos Açores e Verdelho) e o seu entusiasmo cresceu com os resultados obtidos. Em 2013, quando orientava uma acção de formação para viticultores açorianos, surgiu a hipótese de criar um apoio técnico à generalidade dos produtores da região. O projecto regional não avançou, mas a visão de António Maçanita despertou o interesse de Paulo Machado.

Agrónomo, de uma família ligada à viticultura do Pico desde há várias gerações e proprietário da Insula Wines, viu aí uma oportunidade e desafiou o enólogo para fazer um vinho em conjunto. O resultado, um Arinto dos Açores, agradou de tal forma a ambos que resolveram ir mais além, criando um projecto agregador e de grande potencial. O desafio incluiu outro açoreano, Filipe Rocha, até então ligado à formação turística e hoteleira em Ponta Delgada, e que ficou incumbido da gestão financeira e comercial do novo projecto. Em 2014 nascia a Azores Wine Company (AWC) e de então para cá, como refere Daniel Rosa, nada mais foi como dantes na ilha do Pico.

Em 2013, só estavam disponíveis os 12 hectares de vinha de Paulo Machado. Foi com muita coragem e bastante ambição que os três sócios se lançaram na tarefa de fazer crescer a fonte de matéria prima, através de uvas compradas, vinhas arrendadas e, é claro, plantação de novas vinhas. Começaram por adquirir 33 hectares de terrenos tapados de mato, colocando depois a descoberto os muros originais, recuperando-os e plantando vinha. A pouco e pouco a empresa foi adquirindo outras parcelas, chegando aos 50 hectares. Paralelamente, realizaram arrendamentos de longo prazo em terrenos que foram igualmente recuperados e plantados: 38 hectares em Baía de Canas, 32 em São Mateus, mais 5 no Lajido de Santa Luzia, em plena área Património Mundial. Entre as vinhas da empresa e as de Paulo Machado estão sobretudo plantadas as castas brancas Arinto dos Açores, Verdelho, Terrantez do Pico, Boal de Alicante e Malvasia (a que chamam Boal dos Açores) e as tintas Saborinho, Bastardo, Rufete e Malvarisco, para além de híbridos como a Isabela, casta em que assentou a recuperação dos vinhedos açorianos após a filoxera. Aparte a vinha própria ou arrendada, a AWC adquire uvas a cerca de 90 pequenos viticultores.
Partindo da pequena produção inicial, a empresa já vinificou em 2018 cerca de 140 mil litros. Pode parecer pouco em termos de litragem (não esquecer que castas como Verdelho, Arinto dos Açores ou Terrantez do Pico produzem a ridicularia de pouco mais de 1.000 Kg por hectare…) mas estes investimentos mexeram totalmente com a forma como os picoenses passaram a encarar a cultura da vinha. Acima de tudo porque a valorização dos vinhos da AWC (a exportação, para 20 mercados, supera os 60%) contagiou toda a produção local, fazendo disparar os preços das uvas: em 2004, os preços médios andavam entre os €0,90 e €1,20 por quilo de uva; em 2018, o Terrantez do Pico chegou a €4,80 (€5,50/Kg nas uvas adquiridas em São Miguel), o Verdelho a €4,70, o Arinto dos Açores a 3,60€ e as castas tintas a €2,20. Resultado? Dos 340 hectares de vinha existentes em 2014, a ilha do Pico passou para 940 hectares e, tudo o indica, brevemente chegará ao milhar. Para se ter uma ideia do que isto significa, lembremo-nos que a Madeira tem cerca de 450 hectares de vinha certificada…
Talvez a maior prova do acreditar da AWC no futuro dos vinhos do Pico esteja na nova adega agora em construção no Cais do Mourato, concelho da Madalena. São cerca de 2.000 metros quadrados, num investimento de 2,9 milhões de euros e que, em velocidade de cruzeiro, produzirá 250 mil garrafas. Se pensarmos que o vinho mais barato da AWC custa €16 e o mais caro cerca de €100, andando todos os outros por preços intermédios, convenhamos que 250 mil garrafas bem vendidas é qualquer coisa…

Os vinhos são absolutamente entusiasmantes. Naquelas curraletas basálticas, lavadas pelo vento salgado, nascem uvas que originam vinhos naturalmente diferentes, mas onde a qualidade, mercê do talento de António Maçanita e Cátia Laranjo (enóloga residente), acompanha sempre a diferença. Personalidade, frescura, firmeza, assim posso globalmente caracterizá-los, brancos ou tintos.
Tive oportunidade, durante a visita, de fazer uma prova vertical dos vinhos das várias castas brancas, desde a primeira colheita comercializada até aos mais recentemente lançados no mercado (apresentados em separado nestas páginas), e a conjugação entre solo, clima, uva e intervenção humana é reveladora. Os vinhos de Verdelho mostram uma elegância contida, menos atractivo o 2014 (a podridão inerente à vindima chuvosa não ajudou), leve e bonita evolução no 2015, muito fino e expressivo o 2016, ainda bem jovem. O Arinto dos Açores é todo ele acidez e firmeza, e aqui destaco a complexidade do 2014, o afinamento do 2015, as belas notas salinas e de pólvora do 2016. Na versão Arinto dos Açores “sur lies” os resultados são diferentes, com alguns vinhos um pouco mais envelhecidos, o 2014 macio e suave, faltando a precisão ácida, o 2015 profundo, untuoso, de grande equilíbrio, o 2016 mais evoluído que o seu congénere “normal”. Globalmente, poderia ser questionável a opção “sur lies”, não fora o extraordinário 2017…
O Terrantez é mineralidade, salinidade, especiaria. Tive no copo a primeira experiência, 2010, o vinho que lançou António Maçanita na recuperação da casta, e mostrando natural evolução, está ainda muito bem. Excelente o 2013, cheio de raça, mais maduro e menos fresco o 2015 (ano quente), muito salino, com excelentes amargos, belíssimo o 2016.
Os brancos dos Açores estão bem acima dos tintos no foco das atenções dos apreciadores. Mas também há tintos, e os que provei, da AWC e de outros produtores, reforçaram uma convicção que tenho desde há muito: o futuro dos tintos açorianos (e, já agora, madeirenses) não está nos Merlot, Syrah e Cabernet, geralmente bem inferiores aos seus congéneres de outras paragens. O futuro pode estar, isso sim, na “proibida” Isabela (não se arranja uma excepção legislativa?) para resolver o problema das baixas produções, ou no Saborinho (Tinta Negra), para se alcançar o patamar da excelência.
De qualquer forma, com brancos e tintos destes, o futuro será aquilo que os açorianos quiserem.

SIGA-NOS NO INSTAGRAM
SIGA-NOS NO FACEBOOK
SIGA-NOS NO LINKEDIN
APP GRANDES ESCOLHAS
SUBSCREVA A NOSSA NEWSLETTER
Fique a par de todas as novidades sobre vinhos, eventos, promoções e muito mais.