Muitos momentos de conversa entre dois grandes amigos, circa 2019, originaram um grande vinho. Reza a lenda que foi numa caminhada nocturna, tarde e a más horas, que se “selou o negócio”. Anselmo Mendes, referência incontornável do Alvarinho de Monção e Melgaço, e Mário Sérgio Nuno, ícone da Bairrada, decidiram produzir um branco em conjunto e à sua medida.
Para isso, o primeiro foi buscar o seu melhor Alvarinho, e o segundo o seu melhor Bical, ambos provenientes de parcelas especiais, “representativas do melhor que as regiões podem produzir”: a Vinha do Paço, na Quinta da Torre, em Monção — com solo de terraços fluviais e origem granítica — e a Vinha do Cabeço, na Quinta das Bágeiras — de solo argiloso com forte componente calcária — encaixaram que nem duas peças de puzzle. “Se não tivesse enólogo e pudesse escolher um, seria o Anselmo, sempre disse isto.
Há uma identificação não só no estilo de vinho, mas na parte humana. Crescemos os dois numa família de agricultores, e há muita coisa que temos em comum na nossa ‘meninice’”, confessou Mário Sérgio Nuno, na apresentação do Corta Fogo à imprensa. Na verdade, esta é a primeira vez que a Quinta das Bágeiras entra numa parceria deste género. “Eu nunca estive inclinado para este tipo de colaborações, porque o nosso projecto é muito focado em uvas próprias e na nossa região. Por isso, ao fazer um vinho ‘partilhado’, só poderia ser com o Anselmo, pela nossa afinidade”, desenvolveu o bairradino, nascido e criado na Fogueira, uma pequena aldeia da freguesia de Sangalhos, Anadia. Anselmo Mendes reiterou: “Pensámos, toda a gente se junta a fazer vinhos, porque não nós?”. O resto é história.
A vinificação foi feita em separado, cada um na sua adega, mas da mesma forma, em barricas usadas de 400 litros no caso do Alvarinho, e de 500 litros no caso do Bical. O estágio foi de nove meses nas barricas, e depois juntaram-se os vinhos na adega de Anselmo Mendes, em Melgaço, para o engarrafamento em Junho de 2021. “Antes de chegarmos ao lote final, trouxemos várias hipóteses para cima da mesa, sobretudo para a mesa do Mugasa”, brincou Anselmo Mendes, referindo-se ao reconhecido restaurante de leitão, na Fogueira.
A escolha do Alvarinho por parte do monçanense, para integrar o lote do Corta Fogo, é óbvia. Mas Mário Sérgio Nuno poderia ter considerado outras castas brancas típicas da Bairrada, como Cercial ou Maria Gomes. Então, porquê Bical? “Porque, para ser com uma uva branca rainha da Bairrada, para mim teria de ser esta. Por exemplo, face à Maria Gomes, acho que a Bical daria sempre mais estrutura ao vinho”, explicou o produtor. “Eu já contactei de forma próxima com a Bical, e é uma casta que tem imensa personalidade. Em prova cega, consigo sempre dizer onde está a Bical”, completou Anselmo Mendes, que dá apoio enológico ao projecto bairradino Kompassus.
Quanto ao nome, Corta Fogo, Mário Sérgio Nuno não se retraiu ao invocar alguma emoção. “Primeiro, fogo tem que ver com Fogueira. Depois, uma linha de corta fogo pode significar muita coisa, nomeadamente um caminho que estreita laços de amizade. Uma linha de equilíbrio. Além disso, ‘corte’ pode ser sinónimo de ‘lote’. Há várias interpretações possíveis”. E avançou, convicto: “Com este vinho, queríamos também fazer algo pelo vinho português. Se há algo que eu aprendi com as minhas viagens, sobretudo a França, é que temos de fazer alguma coisa por nós, enquanto país produtor. Mostrar ao mundo o que pode ser o vinho português. Lá fora dizem-me que os meus vinhos de 20 euros são mais caros que os de 100 de qualidade equivalente. E esta é uma percepção que temos de alterar. Um vinho como este pode ser um contributo”.
O Corta Fogo, de apenas 2622 garrafas, é, acima de tudo, um branco com a ambição e genuinidade dos seus criadores. “Isto não nasceu de um grande ‘business plan’, nem houve aqui um plano de marketing elaborado, a pensar que íamos fazer um grande negócio por nos juntarmos num vinho”, esclareceu Anselmo Mendes. Conhecendo a dupla, é fácil perceber que é assim mesmo. Um vinho que surgiu da vontade de dois amigos com os mesmos valores, inspirado nas vivências de quem ouviu muitas estórias dos avós à lareira.
(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2023)