Após importante reorientação estratégica, a Companhia Agrícola da Barrosinha tem recuperado lentamente a sua vida agrícola, e produz arroz, pinhão, cortiça, madeira, gado e uvas para vinho. A sua albergaria deu origem a um hotel de quatro estrelas e os vinhos voltaram ao mercado. 75 anos depois de ter sido criada, muito tem mudado na vida desta emblemática propriedade de Alcácer do Sal.
Texto: José Miguel Dentinho Fotos: Ricardo Palma Veiga
Quem atravessa o rio Sado junto a Alcácer do Sal é difícil não notar o complexo de edifícios da Companhia Agrícola da Barrosinha. Criada há 75 anos para abastecer as necessidades da Abel Pereira da Fonseca, uma das mais fortes empresas comerciais de vinhos e licores do início do século 20, teve uma vida de altos e baixos que quase terminou com o fecho da maioria das suas actividades, agrícolas e outras. A sua integração no Fundo ECS Capital está a contribuir para a revitalização da empresa e da sua propriedade, incluindo a adega, que produz vinhos mais consensuais e adaptados ao mercado. Para o futuro, está prevista a construção de mais um hotel, para além do actual, e diversos aldeamentos turísticos.
Carlos Trindade, 55 anos, aceitou, há quase 10 anos, o repto de gerir todo o negócio agrícola da Sociedade Gestora de Fundos ECS Capital, proprietária da Barrosinha. “Foi um desafio muito interessante para quem estava, há 20 anos, na consultoria de gestão aplicada ao sector agrícola, principalmente de aprendizagem sobre o que é o dia a dia de um agricultor e tudo o que isso acarreta”, conta.
Com propriedades em diversas regiões nacionais, do Douro ao Algarve, o património agrícola da ECS Capital integra, entre outros, o Solar da Rede, na primeira região, que tem, segundo o gestor, sobretudo grande potencial turístico. Outra propriedade é o Morgado do Reguengo, no Algarve. Com 900 hectares de área, fica perto de Portimão e inclui dois campos de golfe e um hotel, os seus principais negócios. Mas também tem 32 hectares de vinha plantados há quatro anos. “Quando a adquirimos, a empresa proprietária tinha direitos de plantação que estavam quase a caducar, mas nós decidimos aproveitá-los”, conta Carlos Trindade, referindo que, por agora, o vinho produzido no Algarve é vendido a granel.
Dois mil hectares de área
O sector agrícola da ECS Capital engloba um pinhal de 600 hectares perto da Nazaré, diversas propriedades próximas de Reguengos de Monsaraz, que incluem montado de azinho e pastos para gado e, é claro, a Companhia Agrícola da Barrosinha, com os seus cerca de dois mil hectares de área.
A empresa nasceu em 1947, segundo Carlos Trindade como produtora de vinhos para a Abel Pereira da Fonseca, que tinha sido criada por um dos mais importantes empresários portugueses do início do século 20. O seu negócio, que se tinha expandido até ocupar quase um quarteirão do Bairro de Marvila, em Lisboa, dedicava-se inicialmente à produção e comercialização de vinhos e licores. Mas foi depois alargado a uma rede de mercearias que chegou a ter mais de 100 unidades abertas na capital.
A Barrosinha “produzia, na altura, vinho a granel, como é evidente, mas também arroz”, conta Carlos Trindade, afirmando que essa foi a época mais pujante da empresa. “Depois houve o ciclo que se iniciou com a revolução de 25 de Abril, com as ocupações, intervenção, “desintervenção” e devolução aos seus proprietários que, na época, não se mostraram interessados em permanecer, e venderam a propriedade”. Na fase posterior, que terminou após o falecimento de um dos sócios, o aparelho produtivo da companhia esteve ligado à pecuária intensiva de bovinos, suínos e aves. Houve depois uma cisão da empresa e quem ficou com a Companhia Agrícola da Barrosinha tentou implementar um projeto imobiliário que envolvia a construção de aldeamentos turísticos e mais um hotel, com um total de três mil camas, que não chegou a acontecer.
Um projeto desafiante
“O projecto entrou numa situação financeira complicada devido à crise na construção e foi por água abaixo, apesar de ainda manter o estatuto de Potencial Interesse Nacional (PIN)”, conta Carlos Trindade, acrescentando que a aposta no imobiliário tinha levado à descontinuação da maior parte do projeto agrícola e agroindustrial, pois a fábrica de rações e de descasque de arroz já não existiam quando chegou, tal como a suinicultura. Por tudo isto, quando Carlos Trindade começou a geri-la, a recuperação da Companhia Agrícola da Barrosinha era um projeto desafiante, não só por causa da sua dimensão, mas também por incluir muitas áreas de negócio que era preciso revitalizar.
No sector agrícola produz hoje arroz, pinhão, cortiça, madeira de eucalipto, gado bovino e vinho. Também foram reactivadas actividades adormecidas, por uma ou outra razão. Foi assim que o posto de combustível foi de novo aberto, tal como o restaurante do hotel e a taberna da propriedade, que voltou a ser lugar onde as gentes de Alcácer do Sal vão comer, pelos sabores dos seus pratos e pelos preços cómodos praticados.
Foi igualmente recuperada a antiga Albergaria da Barrosinha, hoje um hotel de quatro estrelas, com 37 quartos, e reconvertidas sete moradias para exploração turística, anexas a esta unidade. “Este é o princípio de um projecto imobiliário muito maior na Barrosinha, que inclui um plano de urbanização em fase de aprovação na Câmara de Alcácer do Sal, para a construção de um hotel e diversos aldeamentos turísticos”, conta Carlos Trindade.
A serração, que “estava moribunda”, foi recuperada e está hoje a cargo de Mircea Anghel, artista de origem romena que aceitou o desafio de se mudar, com a mulher, Joana Cabral, e os três filhos, para a Barrosinha. Muito mais do que um carpinteiro ou marceneiro, que o é, é um artista conceituado a nível internacional, com peças cotadas em dezenas de milhar de euros. Basta pesquisar um pouco na internet para o constatar.
A única indústria ainda em actividade quando Carlos Trindade começou a gerir a Barrosinha era a adega, que estava praticamente intacta, mas produzia vinhos sofríveis, vendidos a granel. Era preciso recomeçar.
Primeiro, investindo na melhoria da sua qualidade, “porque a entrada dos nossos vinhos no mercado podia trazer mais visibilidade e chamar a atenção que o público dava há 50 anos à Barrosinha, quando era uma propriedade emblemática”, explica Carlos Trindade, defendendo que isso já foi conseguido. A mudança começou sob a batuta do enólogo António Saramago, a quem foi lançado o desafio de produzir vinhos de qualidade, mas fáceis de beber. “É alguém que sabe muito bem fazê-los com capacidade para se beberem hoje ou daqui a 10 anos e nós estamos agora a usufruir disso, porque temos alguns reservas que têm essa idade e estão fantásticos”, conta o gestor. O processo implicou também uma aposta mais forte na comunicação e a mudança de imagem das garrafas e rótulos.
Revolução enológica
Há quatro anos, António Saramago, que tem actualmente 60 anos de profissão, decidiu reformar-se e diminuir a intensidade do seu trabalho. Assim, a Barrosinha contratou Felipe Sevinate Pinto e Frederico Vilar Gomes, dois experientes enólogos consultores, o que contribuiu para melhorar ainda o perfil dos vinhos. Sara Carapucinha, que entrou um pouco depois, é a enóloga residente.
Como a produção de uva não estava a acompanhar, também foi preciso fazer alterações na viticultura. A Barrosinha produzia uva a partir de uma vinha de sequeiro com 100 hectares, com mais de 30 anos, cujos rendimentos estavam abaixo do desejado. Por isso, foi iniciado um processo de mudança da zona produtiva para terrenos de cota mais baixa da herdade, junto ao rio Sado, onde há disponibilidade de água para assegurar uma produção mais estável e volumosa todos os anos. A vinha nova tem actualmente 15 hectares, três dos quais plantados em areias e os restantes 12 sobre solos argilo-calcários, segundo conta Sara Carapinha. Revela também que as mudanças climáticas estão a afectar o ciclo da videira na Barrosinha, e “a vindima, que habitualmente começava em meados de Setembro, inicia-se agora um mês antes”. Para além disso, “castas que habitualmente eram colhidas no fim, acabaram por ser as primeiras”, revela. Foi o que aconteceu com a Alicante Bouschet, habitualmente a última a ser vindimada e este ano a primeira na vinha de sequeiro da Barrosinha.
A colheita iniciou-se a 16 de Agosto, como habitual pelas castas brancas e pelas tintas destinadas à produção de vinho rosé. Mas o grau álcool teimou um pouco em evoluir nestas últimas, “o que nos trouxe um sentimento de incerteza”, diz a enóloga, acrescentando que 2022 foi um ano muito atípico, completamente diferente dos anteriores, apesar de a produção dos cerca de 100 hectares de vinha ter sido de 320 toneladas de uva, volume significativamente superior ao habitual, que rondava entre 180 e 200 toneladas, valor muitíssimo baixo. A vindima na Barrosinha é feita casta a casta e à máquina, porque não é fácil arranjar mão de obra para colher as uvas. Para além do Alicante Bouschet, na vinha da Barrosinha pode encontrar-se Castelão, Trincadeira, Cabernet Sauvignon e Aragonez, entre as variedades tintas, sendo as brancas Fernão Pires, Arinto, Antão Vaz, Verdelho e Moscatel.
O mais recente Grande Reserva tinto da empresa foi produzido com uvas das castas Alicante Bouschet e Cabernet Sauvignon “porque dão vinhos com mais personalidade, corpo e cor”, explica Sara Carapinha. Foram fermentadas em cubas argelinas, onde decorrem entre 80 e 150 remontagens durante os 8 a 10 dias em que decorre a fermentação, cuja temperatura é controlada por um tubo de refrigeração. Depois, estagia entre 16 a 18 meses em barrica, enquanto os vinhos vão sendo provados até à decisão do lote final que foi engarrafado.
Para a produção do lote do ano é sempre usado, como testemunho, o vinho do ano anterior, para que se equipare em termos de aroma e sabor, o que não significa, necessariamente, que tenha as mesmas percentagens de cada casta. “Temos clientes fiéis que não querem alterações no perfil do vinho”, explica Sara Carapinha, acrescentando que habitualmente se produzem entre 15 a 20 mil litros de Barrosinha branco e 20 a 23 mil de tinto. “O rosé é um pouco menos”. Esta e outras marcas são vendidas sobretudo nos concelhos de Alcácer do Sal e de Grândola, região onde a Barrosinha está inserida, mas também em Lisboa, sobretudo na restauração.
A casa faz também a marca dos Hotéis Nau, que pertencem ao mesmo grupo empresarial. “Depois temos a loja, que representa entre 20 e 25% das nossas vendas totais de vinhos em valor, conta Carlos Trindade, acrescentando que “foi uma conquista que aconteceu logo desde que a abrimos, porque as pessoas de Alcácer e de Grândola voltaram a comprar e beber vinhos da Barrosinha”.
(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2023)