Brancos que falam com o tempo

Nos anos mais recentes o gosto pelo vinho branco tem sofrido algumas mutações. Hoje há muito mais consumidores interessados em provar coisas diferentes que possam ir além dos aromas e sabores frutados e sem segredos. Recuperou-se assim, agora com mais saber, uma prática que vinha de longe. São os vinhos brancos com longo estágio ou de lote de várias colheitas.

 

Texto: João Paulo Martins

Fotos: Ricardo Palma Veiga e Adega Mãe         

A ideia para este trabalho nasceu de uma constatação: há cada vez mais produtores a lançarem no mercado, num segmento de gama alta, vinhos brancos que aqui há alguns anos não encontrariam apreciadores. São vinhos que reúnem uma de várias características: têm já muitos anos de garrafa mas só agora foram colocados à disposição do público; são de uma só colheita mas o estágio foi sobretudo feito em barrica durante vários anos e só então engarrafados; correspondem a um lote de vinhos de várias colheitas, em proporções diversas. Têm em comum o facto de serem vinhos fora de moda mas, ao invés de vinhos oxidados e mortos (que tantas vezes encontramos nas provas dos vinhos velhos), aqui temos brancos que, em virtude do muito acompanhados que foram, se mostram em muito boa forma, com invulgar complexidade e personalidade.

Recuar no tempo

A tradição portuguesa do consumo de vinhos brancos nunca os colocou no mesmo patamar dos tintos; sempre se quedaram num nível de menor apreço. Também por esta razão os vinhos brancos foram sempre parentes pobres a que poucos davam atenção. Os vinhos muitas das vezes não evoluíam bem, oxidavam num instante e perdiam interesse e procura por parte dos consumidores. Havia excepções em várias regiões, mas era sobretudo no Dão e na Bairrada que os brancos mais perduravam no tempo. Empresas da Bairrada que negociavam com vinhos do Dão – como é o caso das Caves S. João – tinham no seu portefólio brancos que resistiam muito bem e se mostravam com muita saúde durante muito anos. Também a Vinícola do Vale do Dão, propriedade da Sogrape, engarrafava vinhos brancos que adquiria em adegas cooperativas locais. A marca emblemática era Dão Pipas e são brancos que mostram que a região tinha muitas virtudes e capacidades para gerar vinho longevos. Esse Dão Pipas, marca que se manteve até aos anos 90, serviu um pouco de inspiração para um branco criado na Quinta dos Carvalhais e que, pode dizer-se, foi no Dão o vinho fundador destas novas tendências. Criado pelo enólogo Manuel Vieira, o Colheita Seleccionada ganhou foros de “estrela” pelo apreço que o importador belga mostrou em relação a este branco, tendo sido exportado e esgotado com grande sucesso. As barricas onde fermentava o Encruzado eram depois de novo atestadas para não ficarem em vazio e assim, lembra Manuel Vieira, “íamos juntando 30 a 40 barricas por ano; a certa altura já havia barricas a mais e resolvi fazer um lote e dei a provar à administração. A reacção foi tão entusiástica que logo se decidiu avançar com a produção periódica”. Na reorganização do portefólio dos Carvalhais houve necessidade de criar um branco Reserva – mais fresco e com mais madeira nova – e assim o Colheita Seleccionada deixou de se produzir. Como ainda assim havia muitas barricas nasceu a ideia do Branco Especial, neste caso, lote de várias colheitas.

Também na Quinta da Gaivosa se iniciou na colheita de 2001 produção de um vinho branco com as uvas recolhidas nas vinhas velhas de onde era costume fazer vinho do Porto branco e onde existia maioritariamente a Malvasia Fina. Inicialmente com o apoio enológico de Anselmo Mendes, era um vinho com uma confecção bem diferente dos outros brancos: dois dias de maceração pelicular, fermentação em bica aberta com híper-oxigenação em meias barricas, parcialmente novas. O resultado era um branco inicialmente castanho, quase com cor de café, como nos disse Tiago Alves de Sousa, mas com o tempo de estágio na barrica muitos polifenóis depositam-se e o vinho perde a cor acastanhada. De início o vinho mostrou-se muito austero (mais alcoólico do que nas versões mais recentes) mas exactamente por já ter a questão da oxidação resolvida, são vinhos que ainda hoje dão boa prova. Mas Tiago não tem dúvida que as actuais edições, com menos álcool e mais frescura, irão ainda mais longe, seguramente para lá dos 20 anos após o lançamento. À época foi uma novidade no Douro e depois do 2001 foram feitas edições anualmente até 2006. A partir daí teve edições mais espaçadas: 2008 (ano a partir do qual se vindimou mais cedo e a graduação baixou), 11, 12 e agora, a mais recente, 2015.

Nem sempre vinhos deste perfil que hoje falamos, resultam de uma ideia prévia ou um projecto arquitectado para atingir este fim; não raramente, o acaso tem aqui um papel importante, a lembrar-nos que nem sempre controlamos ou entendemos tudo o que se passa durante a evolução de um vinho. Celso Pereira, enólogo no Douro, conta-nos que o Quanta Terra branco 2012 nasceu torto mas acabou por se revelar uma grande e positiva surpresa. Naquele ano duas barricas de branco foram consideradas não aptas para entrarem no Grande Reserva e só passados alguns anos é que se percebeu que o vinho tinha evoluído muito bem e foi então comercializado. Só a partir de 2015 (que irá ser a próxima colheita comercializada mas pela qual ainda teremos de esperar uns anos) é que se começou a deixar intencionalmente vinho em estágio. O que aconteceu com Celso Pereira acontece com frequência nas adegas quando é preciso seleccionar barricas para um determinado lote. O que fazer ao que fica é a pergunta difícil de responder, mas os brancos actuais estão a sugerir vários caminhos.

Brancos falam tempo
O longo estágio em barrica faz parte da identidade do Quinta de Carvalhais Branco Especial.

Requisitos e exigências

Quando há a intenção de fazer um branco de longa guarda em barrica há que estar a tento às características as uvas. A acidez elevada é um requisito que ajuda muito: castas com acidez moderada ou baixa não podem ser usadas porque originam vinhos que não evoluem bem. Mas só a acidez não basta, é preciso, salienta Manuel Vieira, que os vinhos tenham gordura, volume de boca. Temos então de ter, como primeiro requisito, vinhos estruturados, de boa acidez. Para os vinhos que estagiem na madeira coloca-se sempre a questão da oxidação e por isso o atesto das barricas é fundamental. Há uma ligeira oxidação, controlada, mas essa oxidação é fundamental para que os vinhos resistam depois ao tempo; “os vinhos no futuro ficam inoxidáveis, já oxidaram tudo o que tinham de oxidar”, lembra Manuel Vieira. As meias barricas têm uma capacidade oxidativa maior e são mais manuseáveis e, por isso, funcionam muito bem para estes vinhos, algo que Tiago Alves de Sousa também subscreve. Se estivermos a falar de estágios em barricas já usadas os atestos podem ser mensais porque a barrica usada “bebe” muito menos que a barrica nova. E, para evitar uso excessivo de sulfuroso, é mesmo melhor ter as barricas atestadas.

No caso dos vinhos que juntam colheitas de anos diferentes, a arte do lote ganha toda a importância. É preciso fazer vários ensaios e, como lembra Manuel Vieira, “fazer o teste à mesa; levávamos o vinho para o restaurante e provávamos com a comida; se não funcionava fazíamos novo lote e foi assim que, passo a passo, chegámos ao lote final”. Neste tipo de vinhos pode ter mais peso o gosto pessoal do produtor ou do enólogo. Porquê? Porque é preciso dosear as percentagens de cada ano e, sobretudo, decidir que quantidade de vinho mais novo deverá levar o lote final. Assim, se levar uma percentagem significativa do vinho mais novo poderá não apresentar aquele carácter resinoso e oxidativo que associamos com estes vinhos; ao invés, com pouca percentagem de vinho novo o lote ganha um perfil mais austero e evoluído. São assim possíveis várias nuances. No caso do Branco Especial de Carvalhais, a actual edição no mercado (5000 garrafas), que já é da responsabilidade da enóloga Beatriz Cabral de Almeida, inclui 13 lotes de oito colheitas diferentes, começando em 2004 e acabando em 2018. O trabalho é ainda mais minucioso porque a adega dispõe de cerca de 100 barricas até à colheita de 2015. Além do Encruzado também por lá existe Sémillon e Gouveio. Agora procura-se fazer o Branco Especial com menos graduação, vindimando mais cedo e decidindo à partida o que vai ou não vai para estágio prolongado.

Brancos falam tempo
O Alves de Sousa Pessoal nasceu em 2001.

De Norte a Sul

Este tipo de vinho não é específico de uma região. Pelos exemplares que aqui mostramos até pode parecer que é um privilégio do Douro e Dão, mas de facto o número de amostras é maior nessas regiões do que noutras porque por ali houve mais produtores que se abalançaram nesta aventura. Vendo bem, até foi em Setúbal, com a marca Pasmados, que tudo começou e, como nos disse Domingos Soares Franco, da casa José Maria da Fonseca, “durante muitos anos sempre me criticaram por insistir neste modelo, mas agora dão-me razão, agora há mercado e consumidores para isto. Fermentou metade do mosto – Viosinho, Viognier e Arinto – em barrica e o resto em inox”. Também em Monção e Melgaço estão reunidas as condições para este modelo. Na Quinta do Regueiro juntaram-se vinhos de 2007 até 2010 para este primeiro lote e a próxima edição sairá este ano. A pequena quantidade produzida – 1900 garrafas – não chegou para os pedidos. Na região de Lisboa, a Adega Mãe lançou um branco de idade com Viosinho, Alvarinho e Arinto, castas que Diogo Lopes verificou que mantinham a acidez durante mais tempo, factor tido por fundamental. No Dão, é a casta Encruzado aquela que melhor se adapta a este conceito e os três produtores que aqui apresento foi nela que apostaram. Mas o vinho dos Caminhos Cruzados é o resultado de uma só colheita, neste caso de barricas que não entraram no Teixuga, a marca emblemática da casa. No Douro apresento aqui três vinhos de uma só colheita e outros três de lote de várias colheitas. Pisa a pé das uvas brancas, longas macerações peliculares, oxigenação intensa são algumas das técnicas usadas. Os resultados mostram-se muito bons e, sabemos entretanto, vários outros produtores estão a trabalhar neste modelo. É a vitória dos vinhos brancos!

Brancos falam tempo
Adega Mãe

E à mesa, como é?

Estes vinhos, digamos, difíceis, são muito desafiantes à mesa porque podem ligar muito bem com pratos inesperados, com culinárias diferentes. E o desafio estende-se a vários produtos – peixes, carnes, queijos – e a formas diferentes de confecção. Assim sendo, não adianta muito ter opiniões definitivas sobre os sins e os nãos na ligação com a comida. Por experiência própria já liguei, com um tremendo e inesperado sucesso, o Branco Especial de Carvalhais com uma sopa de peixe picante (tem mesmo a referência caseira de “estupidamente picante…”) mas Tiago Alves de Sousa leva o seu Alves de Sousa Pessoal para zonas menos óbvias como polvo à lagareiro, embora reconheça que “com foie-gras é a ligação preferida”, mas também sugeriu risotto de cogumelos. A ideia é ligar o vinho com pratos de sabores intensos para que assim exista um bom equilíbrio. Cremos que mesmo com cabrito assado ou peixes no forno estes vinhos podem tornar-se um enorme sucesso.

E, regressando às origens, ao tal Colheita Seleccionada da Quinta dos Carvalhais, lembro-me de um jantar num restaurante 3 estrelas Michelin – Oud Sluis – de Sergio Herman, algures na fronteira Holanda/Bélgica em que o vinho do Dão fazia parte do menu degustação e, não por acaso, dizia o importador que desde Janeiro (estávamos em Março) já tinha vendido 200 garrafas daquele vinho.

Estes vinhos têm uma relação inesperada com a música. Aqui os acordes não são Sol e Dó, aquela ligação simples que toda a gente entoa e que é fácil de entrar no ouvido; aqui temos acordes mais ásperos, com quintas diminutas e sétimas aumentadas. Tudo parece estranho até encontrarmos a fórmula de soarem bem. E, quem não gosta de desafios???

(Artigo publicado na edição de Fevereiro de 2021)

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