Colecção – O templo do deus Whisky

A paixão de Alfredo Gonçalves pelo whisky vem desde os seus tempos em Angola, quando começou a juntar garrafas que trazia das muitas viagens ao estrangeiro. Décadas de dedicação criaram um espólio notável do que se vai destilando pelo mundo. Hoje, em Lisboa, mora uma das maiores colecções privadas do planeta de garrafas e artigos ligados ao whisky.

Texto: Luís Francisco
Fotos: Ricardo Gomez

A 20 de Dezembro de 2005, o Livro Guinness dos Recordes emitiu um certificado: “Alfredo Gonçalves, de Lisboa, Portugal, juntou 10.500 garrafas de whisky diferentes e dos mais diversos formatos. A sua colecção está aberta ao público na sua loja Whisky & Co, em Lisboa, Portugal.” Quase década e meia depois, o número de garrafas subiu para perto das 13.000 e, apesar a de entidade que regista os recordes não ter respondido em tempo útil ao pedido de esclarecimento enviado pela “Grandes Escolhas”, esta é, certamente, uma das maiores colecções privadas de garrafas de whisky no mundo.
Alfredo, com 90 anos, continua a frequentar o templo dedicado à bebida que sempre foi a sua paixão, mas a condução dos negócios e a gestão do museu estão agora nas mãos dos filhos. O certificado do Guinness de 2005 continua lá, emoldurado, num dos poucos centímetros quadrados de espaço não ocupado por garrafas ou outros artigos alusivos ao whisky. Actualizá-lo implica a elaboração de um novo dossier e essa é uma tarefa que leva o seu tempo… Apesar da ajuda de Alfredo Gonçalves, cuja memória prodigiosa lhe permite desfazer dúvidas e omissões, os filhos ainda estão a “ganhar coragem” para deitarem mãos à tarefa.
Quem o assume é Luísa Gonçalves, que nos recebe nas instalações da Whisky & Co, ali entre o Campo Pequeno e Entrecampos. Quem entra na loja, bem organizada e de visual bem equilibrado entre a funcionalidade moderna e a beleza rústica de elementos tradicionais, mal pode imaginar o que está lá ao fundo, nas salas por trás do balcão. São três divisões, literalmente forradas a whisky… Um local único, belíssimo, de uma magia muito especial. A verdadeira essência da Whisky & Co. Sim, porque o museu não nasceu por causa da loja; o processo foi exactamente o oposto: existe loja porque havia uma colecção.
À entrada, as melhores e mais prestigiadas marcas estão à venda. Lá dentro, aguarda-nos uma surpresa incrível, marcada desde logo pela divisão inicial, dedicada ao bourbon (whisky norte-americano). Os americanos têm destas coisas e, pelos vistos, adoram engarrafar a sua bebida favorita das mais inacreditáveis formas e feitios.
Há telefones, camiões, botas, peças em porcelana, motivos de Natal, estátuas de Elvis Presley (com música!), Marylin Monroe, uma reconstituição do célebre duelo no OK Corral… E pares que dançam, animais, o Space Shuttle, carros dos bombeiros, tractores, comboios, capacetes, trenós, barcos, carroças, aviões e helicópteros, carrinhos de mão e bicicletas. Nem vale a pena continuar – o melhor será mesmo passar por lá e descobrir, prateleira após prateleira, sala após sala, o mundo incrível das garrafas de whisky que são tudo menos garrafas.

Whisky do Nepal

Passamos à segunda sala, onde as vitrinas exibem magníficas garrafas e do tecto pendem canecas. Logo à entrada temos o “registo” da família, com uma garrafa do ano de nascença de cada um dos membros – Alfredo e a sua mulher, Alice, numa prateleira; os quatro filhos, noutra; os seis netos, abaixo. Junto à entrada, a secção dedicada aos whiskies japoneses (quem viu o filme “Lost in Translation”, de Sophia Coppola, conhece pelo menos uma: Suntory); no resto do espaço reinam os maltes escoceses e irlandeses.
A colecção está organizada por destilarias e as peças notáveis vão surgindo por todo o lado. Os Family Casks da Glenfarclas de 1952 a 1994, as pequenas amostras que fazem pensar numa loja de perfumaria, algumas garrafas que são armas (adagas, espingardas), outras dedicadas a pilotos de Fórmula 1 (David Coulthard ou Jim Clark, por exemplo), exemplares artísticos em vidro branco modelado nas mais diversas formas (globos, barcos, elefantes, sapatos, etc…).
Mas é na terceira sala, dedicada aos blends, que estão os exemplares mais antigos da colecção. Foi aqui que o museu começou a ganhar forma. “No princípio”, explica Luísa, “tudo isto estava em casa, depois veio para aqui e foi ocupando cada vez mais espaço.” Neste momento, dirá um leigo, não cabe mais nada, mas há sempre maneira de ir arrumando e rearrumando, encaixando mais alguma peça neste puzzle fantástico. E, por falar em peças, eis que deparamos com dois tabuleiros de xadrez de grandes dimensões em que as figuras, claro, são recipientes de whisky.
Num dos cantos, uma área particularmente curiosa da colecção: os whiskies de países menos habituais. Genericamente, há cinco “escolas” de whisky reconhecidas internacionalmente: Escócia, Irlanda, EUA, Canadá e Japão. Mas isso nunca impediu ninguém de emular o seu estilo favorito e isso explica que encontremos aqui rótulos da Áustria, da Argentina, de Angola, do Brasil, da Bélgica, de Marrocos, da Turquia, da Índia, do Chile, da Jamaica, de Cuba, do Egipto, do Butão, da Bulgária, do Nepal, do Laos, do Paquistão, da Tailândia, do Vietname, do Sri Lanka, da Nova Zelândia… Entre muitos outros.
Portugueses, também. Várias garrafas de whisky Ricardo (engarrafado por Celestino Dias Sardinha, de Encarnação, Mafra); ou o Old Anchor, das Fábricas Âncora, em Lisboa. Do “famoso” “whisky de Sacavém” é que nem sinal…
Adiante. Colecção completa da Guerra dos Tronos? Sim. Todos os presidentes dos EUA? Confere. Dezenas de papas diferentes? Estão lá. Rótulos espectaculares com imagens da autoria de pintores escoceses, em séries subordinadas a temas como “The Sea” ou “The Animals”. Um armário de miniaturas. Garrafas envoltas em cabedal, cantis, pequenas barricas, baldes de gelo e caixas sobre os expositores, até chegarem ao tecto. Uma garrafa de Jameson numerada e com o nome “Alfredo Gonçalves” no rótulo.

Tudo começou em Angola

Algumas das peças aqui expostas podem valer muito dinheiro – um leigo dificilmente as distingue no meio de tanta coisa vistosa, mas algumas garrafas da colecção estão avaliadas em milhares de euros. E, no entanto, o museu tem entrada gratuita. “Nunca cobrámos”, explica Luísa. “Para o fazermos, acho que teríamos de oferecer outras condições, tornar a exposição mais didática. Talvez um dia…”
Quem visita a loja pode sempre solicitar a entrada nas salas das traseiras e, mediante disponibilidade de quem está a atender, circular por entre estes testemunhos da universalidade da bebida espirituosa mais popular no mundo. Um casal de jovens noruegueses faz exactamente isso, espantando-se com as peças que surgem a cada passo. Quanto a nós sentamo-nos para conversar um pouco sobre as histórias que estão por trás desta notável colecção.
Alberto Gonçalves já não se sente em condições de enfrentar a exposição mediática, mas Luísa e José Carlos, o outro filho que trabalha na Whisky & Co, recordam que tudo começou nos anos 1960, quando o pai estava em Angola. “Ele gostava muito de descobrir novos whiskies e em Angola não havia muita coisa. Como tinha uma agência de viagens, andava muito pelo mundo e ia comprando umas garrafas. Não se bebia todo e ele foi guardando.” Em 1975, na sequência do processo de descolonização, Alberto e a família regressaram a Portugal e ele conseguiu trazer consigo muitas das garrafas que começara a coleccionar.
“Até 2001, quando a loja abriu, era uma colecção exclusivamente particular. Depois abrimos este espaço e começamos a aceitar visitas, grupos pequenos – e tem de ser assim, porque não pode haver muita gente naquele espaço. Os corredores são apertados e basta um descuido para alguma coisa se partir”, explica Luísa.
No princípio, a maior parte das raridades e peças curiosas eram adquiridas durante as viagens pelo mundo, viagens em que Luísa foi muitas vezes a companhia do pai. Pormenor curioso: por uma razão ou por outra, ela nunca foi à Escócia… “É uma vergonha!”, assume, com um sorriso. A partir do momento em que a loja abriu, a colecção recebeu um grande impulso: fornecedores, amigos, contactos, muita gente começou a contribuir. “E também houve muitas garrafas compradas na Garrafeira Nacional, que a dada altura era o único sítio onde se encontravam algumas marcas.”
De uma maneira ou de outra, Alberto foi juntando artigos ligados ao whisky. Hoje serão perto de 13.000 garrafas e, ainda que sem ver renovado o reconhecimento oficial lavrado por escrito em 2005, esta continua a ser uma das maiores colecções privadas do género no mundo. Imperdível.

TEMPLOS DE GARRAFAS

No mundo do colecionismo, as quase 13.000 garrafas exibidas nas instalações da Whisky & Co, em Lisboa, são um dos números mais impressionantes a nível mundial. Mas há outros. Em Itália, nos arredores de Veneza, Diego Sandrin, proprietário do bar Lion’s Whisky, exibe uma colecção que pode andar entre os 20.000 e os 25.000 exemplares. O mais famoso museu do género é o The Scotch Whisky Experience, em Edimburgo, que junta quase 4000 garrafas – o espólio pertence à distribuidora Diageo, que o adquiriu ao colecionador brasileiro Claive Vidiz. Em Sassenheim, na Holanda, estão cerca de 3000 garrafas, das mais raras do mundo (o museu, integrado nas instalações de uma empresa de investimentos, adequadamente chamada Scotch Whisky International, exibe a colecção do italiano Valentino Zagatti). Finalmente, e porque isto de ver é bonito, mas beber é ainda melhor, os fanáticos do whisky não podem perder uma visita ao bar do Hotel Skansen, na ilha sueca de Öland: lá poderão escolher entre 1179 marcas diferentes.

 

Edição Nº26, Junho 2019

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