Cozinha, não sejas francesa

A gastrónoma Maria Emília Cancella de Abreu foi uma das pessoas que mais lutou pela identidade da cozinha portuguesa, nos anos 1960 e 1970. Um novo livro lembra o seu trabalho à frente da revista Banquete.

TEXTO Ricardo Dias Felner

Estávamos em Março de 1960. O objectivo anunciado no primeiro número parecia modesto e tinha o ar do tempo. A directora da estreante revista Banquete queria uma publicação “sem pretensões e unicamente com a finalidade de ajudar as donas de casa na preparação das suas ementas, quer estas sejam simples ou de alta cozinha, de execução rápida ou demorada”.
Dito assim, parecia só mais um folhetim de receituário para domésticas com foco nos sabores nacionais, “não esquecendo que Portugal vai desde Valença do Minho ao longínquo Timor”. Mas pouco depois ficou claro que havia mais. Maria Emília Cancella de Abreu, mãe de nove filhos, nascida numa família de títulos nobres, não só era talentosa na escrita como tinha, afinal, uma missão maior: lutar pela culinária regional portuguesa, contra a hegemonia exercida por Paris.
No editorial do terceiro número, chamado “À Volta da Mesa”, o relato de uma viagem deprimente pelo Minho é exemplo desse panorama triste, confuso, perdido — que se pretendia alterar. “Nas ementas que me apresentaram havia uma impressionante falta de originalidade”, lamentava Cancella de Abreu. “A torto e a direito, encontrei os neurasténicos filetes de peixe com salada mais ou menos murcha, a triste pescada cozida e o melancólico bife de uma vitela já com netos”, escreveu, para depois rematar com humor: “Quando, num restaurante minhoto, pedi o característico arroz de forno, o criado não me olhou com mais espanto do que aquele que teria se eu lhe tivesse encomendado uma refeição tipicamente chinesa”.
Não era só a ausência de um prato regional que a zangava, mas também esse tique, presente sobretudo nos restaurantes de hotéis, da cozinha com sotaque francês. O arroz de forno não se fazia, mas o “criado” espantado era rápido no gatilho do menu francófono. “Se eu desejasse poderia mandar servir-me um linguado meunière ou uns tornados parisienne”, recorda Cancella de Abreu, no mesmo editorial.
A campanha que perpassa nestas palavras, em favor de um identidade da cozinha portuguesa, terá dados os seus frutos. É pelo menos essa a tese de Fátima Iken, autora do livro Códice dos Sabores Portugueses, publicado em Outubro, para quem a directora da Banquete iniciou uma revolução política nesta matéria. “Paulatinamente, as autoridades oficiais vão mudando a sua atitude para com a cozinha portuguesa, legislando no sentido de proteger ou lançando concursos nacionais para a população em geral e para os hotéis e restaurantes”, escreve a autora, concretizando algumas dessas alterações. “Foi assim que, por sugestão de Maria Emília Cancella de Abreu, o SNI (Serviço Nacional de Informação, antiga Sociedade de Propaganda Nacional) passou a legislar no sentido de ser obrigatório haver nos restaurantes um prato português”.
No texto, não se faz prova de causa-efeito, mas a pressão da Banquete no sentido de dignificar os pratos mais tradicionais, contra o modismo dominante, é notória. Como exemplos dessa portugalidade, Cancella de Abreu citava o leitão da Bairrada, a lagosta suada de Peniche, o presunto de Chaves, as migas do Alentejo, as alheiras de Trás-os-Montes, a chanfana da Beira ou as tripas à moda do Porto.

Francesismos idiotas, a 25$00 cada

A revista era propriedade da Sacor, empresa de combustíveis do Estado Novo, que viu na Banquete uma possibilidade de divulgar o uso do fogão a gás Cidla (uma marca da casa) nas casas portuguesas de então, mas também os seus postos de abastecimento automóvel. Uma das rubricas mais curiosas foi uma espécie de crítica de restaurantes de estações de serviço.
Ao seu lado na equipa, muito curta, a directora contou com outros célebres companheiros de luta. Um dos poucos críticos gastronómicos regulares daquele tempo, Luís Sttau Monteiro, foi um dos mais brilhantes representantes da causa. Com crónica regular no Diário de Lisboa e na revista Almanaque, o escritor e publicitário apontou aos mesmos alvos de Cancella de Abreu, atingindo sobretudo os novos-ricos. “A esta gente é indiferente comer sopa de pacote, caldo verde da véspera ou seja o que for desde que a sopinha figure na lista como sendo vichyssoise e custe, pelo menos, 25$00. Não espanta, nestas circunstâncias, que os proprietários dos restaurantes se riam e sirvam alcunhada de vichyssoise qualquer restinho de puré de batata que tenham no frigorífico e ainda esteja em estado de poder ser misturado com um pouco de leite e uns restinhos de cebola promovida a alho-porro”.
Ainda assim, as figuras verdadeiramente capazes de influenciar o povo, em matéria de comida, contavam-se pelos dedos de uma mão. A cara mais conhecida era Maria de Lurdes Modesto, que nunca escreveu na Banquete nos 15 anos que ela durou. Fátima Iken retrata-a como alguém que divulgava receitas “inicialmente, maioritariamente, francesas”, quer enquanto apresentadora do programa Culinária, que passava na RTP, quer como “autora de fichas culinárias, sob o pseudónimo francês de Francine Dupré, com o patrocínio do Instituto Culinário Vaqueiro”.
Logo a seguir faz-se outra afirmação, que de alguma forma indicia uma rivalidade entre Maria de Lurdes Modesto e Maria Emília Cancella de Abreu. “Mais tarde, em 1961, apresenta na RTP o Concurso Nacional de Cozinha e Doçaria Portuguesas, promovido pelo Secretariado Nacional de Informação, o que permitiu reunir elevado número de receitas de cozinha e doçaria portuguesas. Mas a verdade é esta: essas receitas premiadas foram divulgadas em primeira mão pela Banquete”, diz Fátima Iken. Maria de Lourdes Modesto comentou à Grandes Escolhas: “Éramos as duas Senhoras da culinária e, para mim, nunca passou disso.”

Uma autora a requerer de (re)conhecimento

Maria Emília Cancella de Abreu acabou, no entanto, por não ter o mesmo reconhecimento público que Lourdes Modesto. O filho, Jaime Cancella de Abreu, director da Prime Books — editora que publicou o Códice dos Sabores Portugueses —, põe a questão nestes termos. “[A minha mãe] foi alguém que aliava um profundo conhecimento da cozinha portuguesa à sobriedade e modéstia próprias da sua personalidade, razão pela qual nunca aceitou fazer campanhas de publicidade televisivas para marcas de produtos alimentares, com isso perdendo a possibilidade de massificar o seu nome junto de gerações futuras”, disse à Grandes Escolhas.
Em todo o caso, o esforço valeu a pena, quanto mais não fosse porque a Banquete permitia a toda a família Cancella de Abreiu deleitar-se com manjares raros — “porquanto todos os cozinhados e respetivas fotografias eram realizados em nossa casa, e nenhuma receita saía na revista sem que antes fosse testada pela nossa mãe” — concretiza o filho. Curiosamente, o prato favorito de Jaime era uma novidade no país, “uma fantástica pizza que ela fazia em casa”.
Prova impressiva de como a gastrónoma levava o seu trabalho a sério, foi a sua reacção a uma imprudência do filho, durante a fermentação da massa da pizza. “Lembro-me (…) de uma vez ter levado um bem oportuno tabefe por ter sido apanhado a levantar a toalha que cobria o alguidar com a massa, que descansava de um dia para o outro”.

Edição n.º32, Dezembro 2019

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