Foram 36 os “candidatos” tintos e durienses com preços em euros até ao redondo 10, e o conjunto mostrou ser campeão na relação qualidade-preço, revelando frescura e complexidade. Será este segmento a compra inteligente do Douro?
TEXTO Mariana Lopes
FOTOS Ricardo Gomez
Já se faz vinho no vale do Douro, segundo os mais antigos vestígios, há mais de 2 mil anos. No entanto, se olharmos apenas para os últimos dez, a evolução dos números desta região foi absolutamente notável, principalmente no que toca à produção e à comercialização. Segundo dados estatísticos recolhidos dos sites do Instituto dos Vinhos do Douro e Porto e do Instituto da Vinha e do Vinho, a área total de vinha diminuiu de 2010 (45.553ha) para 2019 (43.608ha). No entanto, a área de vinha apta a Denominação de Origem (DO) Douro e Porto aumentou, no mesmo período, de 38.364ha para 40.071ha, o que significa que aquele decréscimo de área total de vinha representa, na verdade, boas notícias. Falamos de vinhas de uma região (e já que esta Grande Prova assenta em vinhos tintos) em que as castas tintas predominantes são a Tinta Amarela, Tinta Barroca, Tinta Roriz, Touriga Francesa, Touriga Nacional e Tinto Cão, mas onde as (verdadeiras) vinhas velhas escondem dezenas de outras uvas antigas. São precisamente estas seis variedades de uva e também, de forma mais ocasional, a Sousão, que entram nos lotes de vinhos tintos do Douro com preço inferior a 10 euros, apenas variando entre elas e nas percentagens de cada uma. Note-se que a newsletter da associação ProDouro, na sua edição de Maio, deu conta de que já se pode oficialmente voltar a chamar Touriga Francesa à Touriga Franca. Nessa edição, pode ler-se: “Segundo o aviso nº 3999/2020 do Instituto da Vinha e do Vinho, publicado em Diário da República de 6 de Março «são incluídos na lista de castas anexa à referida Portaria [nº 380/2012 de 22 de Novembro] e da qual faz parte integrante as seguintes castas e sinónimos: (…) Casta Touriga-Francesa como sinónimo da casta Touriga-Franca (PRT52205), apenas na rotulagem da DO Porto, Douro e IG Duriense».”
Já no que toca à produtividade, devida aos solos pobres, clima agreste e orografia difícil, o Douro não é uma região que se caracterize por elevado rendimento, estando a produtividade permitida tabelada num máximo de 55 hectolitros (cerca de 7.500kg) por hectare. A produtividade média fica-se, inclusive, pelos 30 hectolitros (cerca de 4.100kg) por hectare, contra, por exemplo, os cerca de 7.600 kg/ha do Alentejo (dado de 2016).
Mas é quando chegamos aos números da produção de vinho que a coisa fica ainda mais séria. Em 2010, a produção total de vinho apto para poder originar DO Douro era de pouco mais de 50 milhões de litros. Em 2019, passou os 81 milhões. Em volume, as vendas de vinho tinto certificado DO Douro passaram, no mesmo período, de 17.543.521 litros para 30.024.831 litros, o que correspondeu, em valor, a um salto dos quase 80 milhões de euros para mais de 134 milhões. Tudo isto com um aumento de 43 cêntimos por litro, dos 4.04 euros para os 4.47, o que conclui que o Douro conseguiu aumentar a produção e as vendas sem baixar o preço, o que é sempre de louvar.
Os anos vitícolas 2017 e 2018
Quase todos os vinhos provados são das colheitas de 2017 (maioria) e 2018, dois anos vitícolas que se revelaram bastante díspares. A família Symington, com mais de 1000 hectares de vinha no Douro, produz óptimos relatórios de vindima que são excelentes apoios para qualquer trabalho, e o disposto a seguir foi baseado nesses mesmos relatórios, podendo ajudar a perceber os perfis dos vinhos destas colheitas. O ano de 2017 foi, em geral, bastante quente e seco, com a maioria dos seus meses a registar um nível de precipitação bem abaixo da média. Março, Abril e Maio foram, inclusive, cerca de 2.6ºC mais quentes do que a média e Abril, em concreto, foi o mais quente desde 1931. Junho também não quis ficar atrás, e foi o mais quente desde 1980, com a temperatura a atingir os 43ºC. Julho manteve-se seco e quente. Já Agosto mostrou-se mais moderado, com noites relativamente frescas. Consequentemente, e devido a esta seca, as produções em 2017 acabaram por diminuir.
A seca prolongou-se até Março de 2018, ano que acabou por divergir bastante do anterior porque em Março, Abril e Maio choveu abundantemente, a um nível que chegou a ser duas vezes acima da média destes meses. Depois, a 28 de Maio deu-se um episódio dantesco que poucos esquecerão: uma tempestade acompanhada de forte granizo, tendo a zona do Pinhão sofrido uma precipitação de 90mm em menos de duas horas. Foi desastroso e muitos produtores viram os seus solos arrastados para o rio e as vinhas destruídas, e também por isso as perdas na produção em 2018 foram muito grandes, mesmo com o resto do ano vitícola (com a excepção de um Setembro bastante mais quente do que o habitual) a revelar-se “normal”, com números próximos da média. Em 2017, a produção total de vinho DO Douro foi de 51.564.497 litros e em 2018 caiu de forma impressionante para os 38.530.429 litros.
Como são os tintos do Douro até €10?
A amostra de 36 tintos do Douro com preço até 10 euros, é já suficiente para que se possam tirar algumas conclusões interessantes, a partir dos pontos em comum que apresentaram, e até dos que divergiram por alguma razão. Em primeiro lugar, é preciso ter em conta que a faixa de preço se situou, na maior parte dos casos, nos 7, 8 e 9 euros. Uma das ilações, e a minha favorita, é o facto de este conjunto dos tintos ter apresentado uma enorme frescura transversal, e também um nível de complexidade já bem “jeitoso” para o segmento de preço. Os enólogos de alguns dos vinhos mais bem pontuados desta Grande Prova vieram ajudar a perceber isto e várias outras coisas. Francisco Baptista, autor do Andreza Reserva 2017, da Lua Cheia em Vinhas Velhas, explica que “o Douro é uma região que se tem adaptado as novas tendências, de vinhos com frescura e complexidade, e isto deve-se à riqueza de todo o vale, como as diferentes altitudes, vinhas em encosta com diferentes exposições, e três sub-regiões totalmente diferentes. Esta vindima [2017] foi complicada, pois começámos em Agosto com imenso calor e a maturação foi rápida nas zonas perto do rio, mas os mostos eram ricos em antocianas, polifenóis e ácidos. Na meia encosta, em vinhas viradas a Norte e nos planaltos, o equilíbrio era extraordinário”. Quanto à complexidade, o enólogo diz que esta “não é de admirar”, porque “a viticultura tem feito um trabalho notável na região e, se as castas estiverem nos sítios certos, a partir daí o trabalho na adega é facilitado”. Manuel Lobo, enólogo-chefe dos vinhos Quinta do Crasto, vai de encontro à ideia da pluralidade de terroirs do Douro com que se pode “jogar”, e acrescenta que “a resposta está na “nova era” de enologia, que assenta os seus pilares no respeito pela vinha e consequentemente pelo seu equilíbrio natural”. Em relação ao ano 2017, Manuel Lobo conta que “para encontrar o equilíbrio e frescura, foi fundamental não falhar o ponto óptimo de maturação, evitando assim os aromas de sobre-maturação, e privilegiar a altitude e exposições Norte e Nascente”. E é precisamente esta a exposição das vinhas que dão origem ao Flor das Tecedeiras, cuja enologia está a cargo de Rui Cunha (também do Quinta dos Avidagos Reserva 2017), que reforça que “isso contribui muito para o seu lado de frescura”. Jorge Moreira, responsável pelos vinhos da Real Companhia Velha, neste caso o Quinta dos Aciprestes 2017, e também pelos Quinta de La Rosa, lembra que “no passado havia uma grande procura por concentração e potência, mas hoje os enólogos estão muito mais virados para o equilíbrio. Assim, a frescura e a própria acidez passaram a ser uma das nossas maiores preocupações”. Paulo Coutinho, que assina os vinhos da Quinta do Portal, é ainda mais assertivo quando fala de complexidade e afirma que esta “vem claramente de um ano quente, pois a vinha, para produzir um bom vinho, precisa de sofrer. Mas, por exemplo, 2003 foi bem mais quente, produzindo ainda maior complexidade, mas faltou acidez e frescura. Já 2017 beneficiou do que 2009 já tinha beneficiado no Douro, que foi uma busca incessante por maior elegância e frescura. O enólogo da região tentou, desde aí, combater a concentração nos anos mais quentes com a acidez, seja recorrendo à altitude, ao portefólio das castas, ou ao controlo na viticultura, com práticas que nos permitem proteger a folha e fruto da agressividade do tempo quente”.
Mas, o que deve ser um vinho deste segmento de preço, tendo em conta o que o consumidor procura neles? José Manuel Sousa Soares, enólogo da Quinta de Ventozelo, da Gran Cruz, elucida de forma muito pertinente que, para si e nesta empresa, é “necessariamente um vinho da gama média em qualidade e com um preço pouco superior à entrada de gama. Pretende-se que a força, o carácter e a complexidade do lugar sejam evidentes num vinho acessível, marcado pela expressividade das castas que o compõem”. Jorge Moreira concorda e, além de falar na identidade regional, refere que “devem ser equilibrados e estar em bom momento para serem consumidos”, e que são vinhos que estão “no nosso segundo patamar qualitativo, tendo em conta que os de entrada de gama têm carácter regional, os do segundo patamar já mostram a Quinta de onde vêm, num terceiro mostram a casta e/ou a vinha, e assim sucessivamente”. Uma hierarquia e perspetiva interessante, demonstrada por este enólogo.
Rui Cunha, por sua vez, defende o contraditório de uma forma válida: “De uma forma geral, nós (e eu também sou consumidor) procuramos aqui vinhos equilibrados, coerentes, com complexidade e bom final de boca. Mas não há uma definição de como deve ser um vinho ‘nesta faixa de preço’. No projecto das Tecedeiras, o Flor das Tecedeiras está na gama de entrada mas, nos Avidagos, o Avidagos Reserva é um ‘premium’. Este é só um dos argumentos”. Já Paulo Coutinho vê esta questão um pouco como um “jogo de cintura”, explicando que “esta é uma gama de preço onde o consumidor procura chegar sempre que quer um pouco mais de sofisticação e complexidade do que o habitual. Já não é o vinho do dia-a-dia. Além disso, é quando o consumidor pensa não só nele, mas na companhia para o tomar, e normalmente escolhe esta gama dos [quase] 10 euros para iniciar o jogo antes de passar o ponto alto, ao nível acima. Assim, tem de ter a complexidade suficiente para não defraudar”. Manuel Lobo acrescenta que “devem ser vinhos que despertem também no consumidor a curiosidade para conhecer melhor a região”.
Na vinha e na adega
Há um elemento comum nas respostas dos enólogos, que é a vinha, o respeito por ela, e a importância da viticultura, e isto não só nesta prova, mas em muitas outras que a Grandes Escolhas já fez. O que nos leva a indagar sobre se, para cada tipo de vinho, haverá ou não uma viticultura especifica, e até, em concreto no Douro, castas favoritas ou “essenciais” para tintos deste segmento. José Manuel Sousa Soares começa por expor que “na viticultura temos de escolher métodos que expressem bem o carácter das castas e dos locais de produção, de forma a que a produção seja equilibrada com o potencial vitícola em causa, quer do ponto de vista qualitativo como quantitativo, e que promova a boa sanidade vegetal. Não há, portanto, soluções únicas nem sempre vencedoras, até porque os anos, do ponto de vista climático, não se repetem e originam alteração do potencial das uvas. É necessário um acompanhamento muito próximo da evolução anual que possibilite a escolha acertada das datas de vindima em cada parcela”. Este enólogo escolheu integrar Alicante Bouschet no lote do Ventozelo 2016, juntamente com Touriga Francesa e Sousão, porque aquela casta “está instalada numa meia encosta virada a Nascente-Norte e, em 2016, apresentava frescura com algum carácter vegetal muito importante para o resultado final”. Além deste pormenor, que confere alguma originalidade, José Manuel Soares acredita que, neste tipo de vinho, “a Touriga Franca [ou Francesa] é essencial na estruturação”. Jorge Moreira e Francisco Baptista também elegem a Touriga Francesa como favorita nestes lotes, este último dizendo que dá “pouco álcool, boa acidez, e fruta vermelha intensa e fresca”. E Manuel Lobo reforça que não há receitas, mas que “é fundamental estarmos presentes. O modelo deve ser de equilíbrio e de respeito pela identidade o que, na minha opinião, só se consegue com uma viticultura de precisão.”. E defende, nestes vinhos, a tríade “Touriga Nacional, para aroma e frescura, Touriga Franca, para volume e estrutura, e Tinta Roriz, que dá elegância e persistência”. Depois de confessar que lhe dá gozo voltar a usar o nome “Francesa”, Paulo Coutinho confessa que esta é a “pacificadora do lote”, mas que adora a Tinta Roriz para esta categoria, achando “incrível para o frutado que pretendo”. E Rui Cunha volta a trazer o fundamental contra-argumento: “De nada serve dizer que uma determinada casta é fundamental se o local não lhe é favorável. Felizmente, a região do Douro é rica em castas que estão muito bem-adaptadas aos variadíssimos ‘micro-terroirs’”.
Quanto à enologia destes vinhos, e quando falamos do ano quente de 2017, Manuel Lobo diz que “foi essencial controlar muito bem as extracções e as temperaturas de fermentação” para que não se perdesse frescura. Jorge Moreira e Paulo Coutinho sublinham a pouca extracção e o primeiro fala também da necessidade de vindimar cedo “quando ainda temos fruta fresca”, e do “cuidado com a madeira nova para não descaracterizar os vinhos”. Rui Cunha toca estes pontos mas acrescenta (e muito bem) o factor higiene. E depois de tudo isto, só há uma coisa a desejar, nos tempos que correm: haja higiene e saúde para beber vinhos desta qualidade!
No products were found matching your selection.
Artigo da edição nº38, Junho 2020