Editorial da edição nrº 80 (Dezembro 2023)
Nunca gostei de ver pessoas ou conceitos arrumados por categorias. Tudo o que é complexo não pode, por natureza, ser confinado numa caixa hermética, imune a influências, nuances, estados de espírito. Poucas coisas são absolutamente brancas ou pretas, há uma infinidade de matizes que podem e devem ser desvendados.
Vejamos o caso dos vinhos. Nos últimos anos, assiste-se a uma tendência, por parte de algumas franjas de mercado, para catalogar os vinhos consoante a forma como são elaborados ou até, no limite do disparate, consoante a “filosofia” que lhes está subjacente (como se uma forma de ser ou estar na vida tivessem um caderno de encargos, uma checklist a ser verificada ponto por ponto).
Cuba inox, lagar, cimento, barro, plástico, barrica nova, barrica usada, tonel, foudre, sulfuroso, flor de castanheiro, ácido tartárico, leveduras seleccionadas, clara de ovo, bentonite, etc. estão entre as muitas ferramentas que se encontram ao dispor do enólogo/produtor, algumas delas com milénios de utilização na transformação da matéria-prima (uva) em produto final (vinho). Maceração longa, maceração curta, maceração carbónica, fermentação com engaço, bica aberta, curtimenta, maloláctica, bâtonnage, remontagem, são algumas das muitas práticas utilizadas no intuito de realizar essa prodigiosa transformação. Do mesmo modo que produção integrada, orgânica, biodinâmica (quando devidamente certificados, atenção!) configuram distintos modelos de produção de uvas/vinhos, nenhum objectivamente melhor ou mais respeitável do que o outro.
Nada disto é absolutamente estanque, permitindo combinações infinitas. Posso ser orgânico, adicionar sulfuroso e usar uma rolha de microaglomerado de cortiça; posso ter vinha e adega em produção integrada e fermentar com engaço e leveduras indígenas; posso ser biodinâmico, fazer macerações muito longas e estagiar o vinho 36 meses em barrica 100% nova.
As únicas categorizações que, a meu ver, se justificam no vinho, são aquelas que implicam a conjugação de dois factores: primeiro, uma certificação absolutamente clara e inequívoca; segundo, um mercado onde essa certificação orienta uma intenção de compra. Por exemplo, seria absurdo chegar a uma loja e ver os vinhos divididos por “barrica nova” ou “barrica usada”. Mas faz todo o sentido haver uma prateleira (ou uma loja!) só para vinhos orgânicos. Do mesmo modo que haverá uma prateleira (ou uma loja) só para vinhos Alentejo. Já um espaço orientado e comunicado como exclusivo para “vinhos de baixa intervenção” seria apenas publicidade enganosa, uma vez que não há qualquer definição, fiscalização ou certificação do modelo/produto. É o mesmo que vender uma pulseira que transmite uma “boa onda”. Acredita quem quer e não vem daí mal ao mundo, somente à carteira dos incautos.
Aqueles que se intitulam “fora da caixa” (sem perceberem que assim se inserem, desde logo, numa caixa e num rótulo) são, frequentemente, os que mais se esforçam por colocar todos os outros vinhos e produtores em caixinhas muito bem fechadas, catalogadas e arrumadas num canto, de preferência escuro e longínquo. Como se o mundo do vinho se resumisse a “nós” e “outros”. Felizmente, para quem aprecia a extraordinária diversidade e complexidade que o Vinho encerra, este é bem mais, bem maior e bem melhor do que isso.