Editorial da edição nrº 92 (Dezembro 2024)
Na Grande Prova desta edição, dedicada aos tintos mais ambiciosos do Alentejo, Nuno de Oliveira Garcia levanta uma questão bem interessante que tem a ver com a identidade regional. Diz o autor que “a prova demonstrou um padrão maioritário de perfil muito bem definido, com várias semelhanças entre si. Vinhos intensos, exuberantes e capitosos, fantásticos na sedução, mas, em vários casos, parecidos uns com os outros. Numa região com sub-regiões tão diversas, e terroirs distintos (…), seria positivo encontrar registos mais diversificados.” Acrescenta Nuno de Oliveira Garcia que o mesmo se passa com outras regiões. E dá o exemplo das recentes provas de Lisboa ou Douro, em que “os topos de gama tendem a uma uniformização no que respeita ao ponto de maturação fenólica e ao uso da barrica”.
Esta é uma daquelas questões em que, como no dito popular, se “é preso por ter cão e preso por não ter”. Por um lado, pretendemos que uma região vitivinícola tenha uma evidente identidade, que os seus vinhos obedeçam a um denominador comum. Ou seja, que os aromas e sabores de um Barolo, um Borgonha, um Douro, um Alentejo, nos remetam para a sua origem. Por outro lado, quando compramos vinhos de uma dada região não queremos que nos cheire e saiba tudo ao mesmo. Sobretudo, quando a região é, em si mesma, diversa. E o Alentejo, é, claramente, a região mais diversa de Portugal, pela dimensão e pela quase infinita combinação de solos, climas e castas que abraça. Não por acaso, o Alentejo está hoje dividido em 8 sub-regiões, um número que até poderia (e deveria) ser alargado. Se conjugarmos identidade e massa crítica, faz hoje todo o sentido que Beja obtenha igual estatuto. E, no futuro, assim adquira produtores suficientes, também o Alentejo litoral.
No que a vinhos respeita, a identidade estabelece-se em três níveis. O primeiro, mais alargado, é o regional. E aqui, o Alentejo cumpre inteiramente. Um “clássico” blend de Alicante Bouschet, Aragonez e Trincadeira sabe a Alentejo, do mesmo modo que um “moderno” blend de Syrah, Alicante e Tinta Miúda sabe a Alentejo.
Um segundo nível de identidade está no perfil sub-regional. E aqui, concedo, são poucos os vinhos alentejanos que o manifestam. Uma das razões poderá estar na generalização do Alicante Bouschet a praticamente todos os tintos de topo produzidos na região. É difícil evitá-lo, já que esta casta alentejana de adopção, quando bem trabalhada na vinha e na adega, dá origens a vinhos esplendorosos, tornando-se a espinha dorsal dos melhores blends ou resultando em varietais de grande impacto. Mas se o propósito for expressar a sub-região (um caminho que cada produtor é livre de seguir ou não) acredito que variedades antigas e hoje minoritárias, como Castelão, Moreto, Alfrocheiro, Tinta Grossa, Tinta Caiada ou, mesmo, Trincadeira, serão bem mais eficazes. Os vinhos das vinhas velhas, que felizmente ainda existem em várias sub-regiões, dão sustento a esta tese.
O terceiro e derradeiro patamar de identidade está no estilo do produtor. Mas para se ter um estilo, reconhecido pelo consumidor, é preciso saber exactamente o que se quer, ser determinado e criativo, seguir o seu caminho, eventualmente contra modas e opiniões. Isso não é para todos, seja no Alentejo, no Douro ou em qualquer outra região de Portugal ou do mundo. No entanto, eles andam aí. Caso paradigmático: apesar de baseados na mesma casta (Alicante Bouschet, o tal “uniformizador”…), estarem ambos situados no norte do Alentejo, e terem origens históricas na mesma família, Gloria Reynolds e Mouchão têm estilos muito próprios, inconfundíveis. E termino com o exemplo do famoso Pêra-Manca, tinto de singular personalidade. Curiosamente, aqui não há Alicante Bouschet, só Trincadeira e Aragonez de parcelas especiais, balseiros para fermentação e tonéis antigos para estágio. Parece fácil, não é? L.L.