Editorial: Do vinoso comum à mineralidade

O trabalho de Valéria Zeferino, publicado nesta edição, sobre o conceito de “mineralidade”, palavra hoje usada e abusada na descrição de vinhos, suscitou-me alguma reflexão sobre a natureza das notas de prova. Na verdade, entre a austeridade mais espartana e os delírios mais imaginativos, há margem para tudo.

 

Editorial da edição nrº 72 (Abril 2023)

Descrever um vinho pode ser extremamente complexo. Ou, ao invés, a coisa mais fácil do mundo. Depende, basicamente, do estilo e, se quisermos, da seriedade de quem o faz. O estilo varia imenso de provador para provador, sejam produtores, enólogos ou críticos. De tal forma que, quando lemos centenas ou milhares de notas de prova, acabamos por associar determinados estilos (ou até descritores) a determinados avaliadores. Lembro-me que, quando comecei a escrever sobre vinhos, em 1989, havia um reputado provador profissional que iniciava todas descrições de vinho tinto com “cor rubi de laivos granada, espuma fugaz rosada e aroma vinoso comum”. Do mesmo modo, duas décadas mais tarde, também não precisaria de pensar muito para de imediato identificar o autor de algo como “repleto de energia, de uma mestria de aromas e sabores quase sinfónica, seduz corajosamente pela fruta farta, pela dimensão imensurável, pela alegria tensa de um final explosivo, mas supinamente elegante.” Mais recentemente, o exótico “aroma peitoral” tem também autoria segura.

Mas a verdade é que a adjectivação, quando não demasiado rebuscada, ajuda muito a descrever um vinho: sólido, elegante, gordo, leve, intenso, discreto, exuberante, são descritores que apontam para diferentes perfis de vinho. Mais complexa é a associação a determinados aromas/sabores, pois nem todos são facilmente reconhecíveis pelo provador e, sobretudo, pelo leitor/consumidor. Todos temos memória olfactiva ou gustativa de limão, menta, amora, cereja, avelã, chocolate, apenas para citar alguns exemplos mais simples. Mas ainda assim, o enquadramento geográfico ou cultural de quem lê (ou ouve) a descrição do vinho é fundamental. Quantas pessoas, em Angola, comeram amoras ou cerejas? Ou, para não irmos tão longe, quantos portugueses “da cidade” cheiraram poejos?

Talvez o caso mais típico deste desfasamento cultural seja a tão conhecida (ou desconhecida…) bergamota, quase obrigatoriamente associada à casta Touriga Nacional. Porquê dizer que um vinho cheira a bergamota quando quase ninguém em Portugal (ou no mundo) cheirou ou provou este citrino verde em forma de pêra, oriundo do sul de Itália e que serve, sobretudo, para fazer óleos essenciais? Com a confusão adicional de, na principal região vinícola do Brasil, Rio Grande do Sul, chamarem bergamota à tangerina…

Por outro lado, existem descritores que acabam por se tornar moda, utilizados para quase todos os vinhos supostamente “nobres”. É o caso do famoso “mineral”, foco do artigo que citei na entrada desta peça. Num restaurante de “fine dining”, é raro o sommelier que não enfatize a “mineralidade” do vinho que está a sugerir; do mesmo modo que é raro o “mineral” escapar à nota de prova de um branco ou tinto mais ambicioso. Se tivéssemos presente que os aromas minerais, (casos da pólvora ou do sílex, por exemplo), nada tem a ver com os minérios presentes no solo (ao contrário do que muitos pensam), e que a sensação de mineralidade na boca está sobretudo associada à acidez, talvez fossemos um pouco mais comedidos na utilização deste descritor.

Mas pouco importa. Felizmente, todos nós, profissionais ou consumidores, somos livres de descrever um vinho como muito bem nos apetecer. O vinho é isso mesmo, prazer e liberdade. Uma coisa, porém, posso garantir: se um dia ler que um vinho cheira a “erva recém cortada por carneiro velho na encosta Norte da Serra da Estrela”, vou a correr comprar uma garrafa. Não quero morrer ignorante.

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