Editorial: E no barro se fez vinho

Nas peregrinações que, desde finais dos anos 80, faço regularmente pelas tabernas e casas de petiscos do grande Alentejo, encontro talhas de todos os tamanhos e formatos, bem como inúmeras nuances na pesga do barro ou nos processos de vinificação, variando a tradição de concelho para concelho, quase de aldeia para aldeia.

 

Editorial da edição nrº 75 (Julho 2023)

 

A publicação nesta edição de julho de um trabalho sobre o projecto XXVI Talhas, em Vila Alva, na sequência de um outro apresentado em junho sobre os vinhos Mamoré da Talha, em Borba, sugere uma reflexão sobre as diferentes formas de expressar esta milenar tradição vínica e cultural do Alentejo.

Os vinhos de talha estão na moda, é um facto. À boleia de um nicho de mercado que quer experimentar a diferença, aquilo que era um produto do Alentejo profundo, das tabernas e casas particulares, transferiu-se das populações rurais para os produtores profissionais, ganhando dimensão e buzz mediático. Agora que toda a gente sabe o que é Vinho de Talha Alentejo seria bom não esquecermos os amadores (no verdadeiro sentido da palavra, “aqueles que amam”) que, teimosamente, ao longo das últimas décadas, mantiveram vivos não apenas a tradição como o conhecimento, o saber fazer. Sem essas muitas centenas de anónimos, o renascer do vinho de talha não teria sido possível.

Dito isto, desenganem-se os que se assumem como guardiões da “verdadeira” tradição do vinho de talha do Alentejo. É que o Alentejo é enorme em todos os sentidos, e o tamanho corresponde à sua diversidade. Nas peregrinações que, desde finais dos anos 80, faço regularmente pelas tabernas e casas de petiscos do grande Alentejo, encontro talhas de todos os tamanhos e formatos, bem como inúmeras nuances na pesga do barro ou nos processos de vinificação, variando a tradição de concelho para concelho, quase de aldeia para aldeia. Para pesgar a talha, nuns sítios usavam resina de pinheiro e cera de abelha, noutros só a cera ou só a resina; alguns pesgavam de 5 em 5 anos, outros usavam as talhas pesgadas pelo pai há duas décadas; enquanto uns colocavam todo o engaço na talha, outros só uma parte, outros ainda somente as uvas esmagadas. Esmagamento que, consoante o hábito local, podia ser feito directamente para a talha ou pisadas as uvas no chão de barro da adega, correndo o mosto para o “ladrão” (talha enterrada) e daí baldeado para as ânforas. A dada altura, algumas dessas talhas começaram a ser revestidas a epoxy (“tinta anti-mosto”, assim lhe chamavam nas aldeias) por razões de facilidade e higiene, perdendo embora o carácter do pez. Destas muitas tradições resultavam e resultam vinhos tão distintos quão diversos são os matizes do cante alentejano ou os ingredientes e temperos do cozido de grão. Há tantos Alentejos…

Em 2010 decidiu a CVRA, e muito bem, regulamentar o Vinho de Talha Alentejo, como forma de preservar a sua origem e identidade, impedindo assim a sua apropriação por terceiros. No entanto, ao só permitir este designativo em vinhos produzidos dentro das 8 sub-regiões, deixou de fora zonas emblemáticas para o vinho de talha. Ao mesmo tempo, aceitou todas as castas autorizadas para DOC. Como resultado, posso fazer um Vinho de Talha Alentejo 100% Syrah ou Touriga Nacional, uma perversão cultural de que, felizmente, os produtores não se têm aproveitado. Mas não posso fazer Vinho de Talha Alentejo, ou sequer utilizar a palavra “talha” no rótulo, se estiver em Campo Maior (histórico centro oleiro de talhas) ou em Cabeção (onde ainda subsistem dezenas de produtores artesanais e centenas de talhas). Será que, com algum bom senso, se consegue resolver esta absurda contradição? O Alentejo, tão diverso quanto único e inimitável, agradece.

 

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