Editorial da edição nrº 79 (Novembro 2023)
“Os olhos também comem”, já dizia a minha avó. A expressão popular traduz um fenómeno que todos conhecemos: a forma ajuda a enaltecer o conteúdo. O desenho ou a embalagem podem induzir uma percepção de qualidade/sofisticação, facilitar a venda, criar notoriedade de marca. Isto é válido para todo o tipo de bens, dos automóveis ao têxtil, do mobiliário doméstico à perfumaria.
Todos sabemos, igualmente, que nem sempre forma e conteúdo (ou forma e função) correspondem. Uma cadeira elegante pode ser altamente desconfortável; um automóvel de estética exuberante pode ser um desastre (literalmente) em termos de condução; uma t-shirt atractiva pode ficar disforme na primeira lavagem. E, como é óbvio, um elaborado empratamento pode corresponder a uma desilusão gastronómica e uma garrafa muito bem vestida ter lá dentro um vinho que não vale metade do que custa.
Vivemos bem com isso, faz parte do jogo de sedução que as marcas fazem connosco. No caso dos vinhos, um dos exemplos mais prementes é o das garrafas pesadas. As incontornáveis desvantagens ambientais são superadas pelas evidentes vantagens comerciais. Dificilmente um vinho de elevada qualidade e preço pode ser vendido numa garrafa leve (só algumas regiões francesas alcançaram estatuto que o permite) ainda que, tudo o indica, a fileira vitivinícola, pressionada pela lei e/ou consciência ambiental, caminhe a pouco e pouco no sentido da leveza.
Mas o que dizer quando a forma é de tal modo impositiva, tão intrusiva, tão “in your face” (para usar a expressão inglesa), que praticamente grita: “seu palerma, o conteúdo não tem qualquer importância, o que estamos a vender é estatuto e diferença”?
Também aqui, a indústria das bebidas é fértil em exemplos. Um dos mais antigos é o dos licores e espumantes com chamativos “flocos de ouro”. E essa até é uma forma barata de usufruir do luxo ilusório. E se for uma garrafa de espumante com 45 litros? Foi o que fez uma conhecida casa francesa (não de Champagne, felizmente, apesar desta região ter um apreciável histórico em extravagâncias do género) fundada em 1898. Diz a notícia que a Zeus, da Luc Belaire, “é a maior garrafa de espumante do mundo, tem mais de um metro de altura, pesa 72,5 kg cheia e exige a força de 4 homens para a carregar e servir”. Confesso que adoraria assistir a esse espectáculo! Mas não devo ter essa sorte porque, até ao momento, foram produzidas apenas duas garrafas Zeus (vão fazer digressão mundial) e os “3 mil milhões de bolhas” (delicioso detalhe!) que cada uma contém não me irão, certamente, passar pelo goto.
Resta contar que a Luc Belaire é especializada em grandes formatos, nomeadamente os 15 litros e, ao que parece, com grande sucesso. As gigantes garrafas, sobretudo do Rosé Belaire (que a casa adianta ser “o espumante rosé nº1 na América”) tornaram-se, segundo a press release, “uma referência para celebridades, influenciadores, artistas e desportistas de todo o mundo, que têm vindo a celebrar marcos de carreira, lançamentos de álbuns e vitórias em campeonatos acompanhados de Belaire”.
Confesso que desde que li a notícia sou assaltado por uma interrogação. Como se refresca e serve adequadamente uma garrafa de 45 litros? Ou de 15 litros, já agora? Ou isso não importa porque o objectivo não é beber o vinho, mas sim “celebrar” com ele? Há vários dias que não durmo a pensar nisto…