Um marco na identidade do Vinho do Porto
A actual Feitoria Inglesa, plantada no centro da Invicta desde 1790, é, praticamente, um museu da cultura das empresas britânicas de Vinho do Porto. Naturalmente associada ao seu conservadorismo, a proibição da participação da mulher na Feitoria era uma realidade até há muito pouco tempo. Este ano, Natasha Bridge foi nomeada Tesoureira, encetando assim uma nova era.
TEXTO Mariana Lopes FOTOS Cortesia The Fladgate Partnership
ORIGINALMENTE, a Feitoria Inglesa foi fundada enquanto associação comercial de mercadores britânicos residentes no Porto, que trocavam lã, bacalhau e vinho com Inglaterra. Na altura financiada por um imposto aplicado a estes produtos, o Contribution Fund, a Feitoria tem a sua menção documental mais antiga em 1666, mas a que hoje conhecemos na Rua do Infante D. Henrique data de 1790. Nesse ano, o cônsul John Whitehead terminou a construção do edifício que, em épocas distintas, chegou a ser consulado, estalagem, clube e centro da vida social da comunidade inglesa.
De 1807 a 1809, durante a Guerra Peninsular, a Feitoria foi ocupada pelas tropas francesas napoleónicas, o que levou à infeliz perda de uma grande parte do recheio e dos documentos históricos e financeiros lá guardados. Um ano depois da retirada das tropas do marechal Soult, em 1810, foi criada a British Association e esta começou a funcionar na Feitoria. O direito de associação, que outrora abrangia outras áreas de negócio, passou a ser exclusivo de indivíduos e empresas ligadas ao comércio de Vinho do Porto.
Hoje, são oito associadas e os membros efectivos são os seus administradores. Estes membros, além de estarem incumbidos de defender os interesses das casas de Vinho do Porto, têm a responsabilidade de zelar pela conservação do edifício e de tudo o que se encontra no interior dele. O “responsável máximo”, o equivalente ao “presidente” da Feitoria, é denominado Treasurer (tesoureiro). Nomeado anualmente em regime rotativo, este supervisiona e gere tudo o que respeita à Feitoria e desempenha o papel de anfitrião em vários momentos de convívio tradicionais.
A história que conta o granito
O edifício imponente de granito respeita a arquitectura de estilo Palladiano e apresenta os seus arcos junto ao passeio da rua. Toda a sua linha é simétrica e inspirada nos valores da arquitectura clássica greco-romana. No interior do hall de entrada estão alinhadas as colunas, também graníticas, que acabam num tecto abobadado e, nas suas paredes, os nomes dos antigos Treasurers gravados em madeira: Churchill, Cockburn, Croft, Delaforce, Fladgate, Forrester, Graham, Guimaraens, Robertson, Rope, Sandeman, Symington, Taylor e Warre são alguns dos apelidos desde 1811.
Este hall servia outrora como Câmara de Comércio de Vinho do Porto, onde os mercadores negociavam os lotes de vinho com os agricultores. Nos bancos de madeira, ainda presentes, os carregadores de liteiras costumavam esperar pelos seus senhores enquanto estes almoçavam. Além da preciosa garrafeira na cave, que contém uma notável colecção de Porto Vintage (cerca de 15.000 garrafas), há uma bonita escadaria que nos leva às salas mais icónicas da Feitoria, todas decoradas com mobiliário Chippendale.
A Sala dos Mapas e a biblioteca dispõem livros e mapas oitocentistas que nos levam a uma contemplação demorada. As gémeas Sala de Jantar e Sala do Vintage servem o propósito do seu nome, sendo que na segunda os membros e os seus convidados podem saborear um bom Vinho do Porto sem os odores da comida que é servida na primeira. O almoço das quartas-feiras já é uma tradição e, nesse dia da semana, é sempre exposto na Sala do Vintage um exemplar centenário, correspondente ao dia, do jornal inglês “The Times” e lá é servido um Porto branco como aperitivo antes da refeição na sala seguinte. Já a cozinha, essa é uma autêntica pérola. Os fornos e as bancadas de ferro negro, os armários, as baixelas e todos os utensílios estão preservados desde a origem, em exposição.
2017, um novo capítulo
Chegado, mais uma vez, o tempo de nomear o novo Treasurer, os membros da Feitoria decidiram mudar o género do discurso. Disruptivamente, uma mulher assumiu o cargo. Sendo a primeira, Natasha Bridge vem romper com o conservadorismo, tão tipicamente anglicano, que sempre reinou tanto na Feitoria, como nas próprias casas inglesas de Vinho do Porto. Natasha, que também é a primeira e única mulher com o estatuto de “full member”, é administradora da Taylor’s (Fladgate Partnership) e a sua formação passou pela Análise Sensorial, na Califórnia, e pelo Marketing, em Londres.
Tendo em conta que, até há não muito tempo, as mulheres não podiam sequer entrar no edifício, Natasha encontra uma explicação para a recente abertura à mudança: “Sendo realista, também não havia uma mulher como administradora de uma empresa de Vinho do Porto britânica.” Como mãe, Bridge consegue encontrar um bom equilíbrio entre estes dois “cargos”, mas sabe que não é fácil e compreende de onde possa advir a maior dificuldade das mulheres em chegar ao topo, na sua carreira profissional, e confessa: “Nós, mulheres, queremos ser bem-sucedidas mas, ao mesmo tempo, queremos ter filhos e acompanhá-los totalmente. O meu pai [Alistair Robertson, presidente não executivo e sócio maioritário da Fladgate], que é um feminista, sempre se questionou sobre o porquê de as mulheres não chegarem tão longe nas empresas inglesas e a conclusão nunca variou: porque têm o outro lado a puxar por elas.”
O papel da Feitoria no negócio
Antigamente, a Feitoria era um local e uma plataforma muito importante para o negócio do Vinho do Porto, no sentido em que os momentos de reunião acabavam por contribuir para o traçar de um objectivo comum no sector. As empresas faziam lá os seus encontros profissionais, nomeadamente às quartas-feiras, dia da semana em que não havia correio (origem dos tradicionais almoços das quartas). Hoje em dia não é assim. Na Feitoria criam-se momentos de convívio onde, como conta Natasha, “já não se fala de negócios à séria”. No entanto, a Treasurer considera importante que “se mostre a História do Vinho do Porto aos parceiros comerciais e distribuidores, convidando-os para partilhar essas situações de convívio”.
A autenticidade da Feitoria Inglesa, e do que se passa dentro dela, anda a par com o conservadorismo e o glamour que lá estão bem patentes. O Vinho do Porto é como é porque os ingleses são como são e pela sua maneira de fazer e estar. Todas estas particularidades, que desempenham um papel histórico importante na aliança luso-britânica, conferem ao Vinho do Porto o sucesso que conhecemos em Portugal e, estrondosamente, além-fronteiras.