A barragem invisível

O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Contra tudo e contra todos. Nem que seja para descobrir que as nossas memórias não estão garantidas para sempre.

Luís Francisco

Estranha miragem esta, no calor alentejano: em vez de nos iludir com a visão turva de água onde ela não está, antes nos oferece um desolador espaço vazio onde outrora o azul do céu se reflectia. Mais um olhar para o ecrã de navegação do carro e, lá está, as máquinas não sofrem ilusões de óptica. Para elas, na sua monolítica competência, tal coisa não existe, e o mesmo vale para as memórias mal calibradas pela erosão do tempo. A imagem de uma mancha azul de um e outro lado da ponte que atravessamos é óbvia e inquestionável. Devíamos estar a ver água. E nada.

Encostamos à berma. Não é uma questão de estarmos perdidos. Acabámos de passar por Avis a caminho de Benavila, o GPS está correcto, as memórias das férias de infância estão vivas, a paisagem em redor só varia na presença agora maciça de olivais super-intensivos, respira-se o mesmo ar quente e quieto do estio, ouve-se o roçagar das cigarras nas árvores e os moscardos zumbem, desorientados. Bate tudo certo, menos a água. Não há água na barragem!

E as memórias voltam à tona. Como fotos desfocadas, meia dúzia de “chips” de dados arquivados sem contexto, mas, ainda assim, indesmentíveis na solidez palpável das impressões que vincaram.  O túnel da barragem de Maranhão, um vórtice hipnótico que parecia puxar-nos lá para dentro, num inquietante canto de sereia geométrico. Porque estava assim exposto? De quem foi a ideia de vir até aqui, a este pontão vertiginoso que assusta e inquieta, para contemplar o olho ciclópico que a tranquilidade das águas devia esconder?

As águas que vão e vêm

Foi há muitos anos, tantos que a explicação paira sem certezas à volta de uma só imagem: um paredão imenso, a espiral do túnel, a ausência da água. As obras da barragem ficaram concluídas em 1957, já estaria, portanto, em funcionamento há uns valentes anos quando, de repente, ficou vazia. Obras. Isso: foi preciso fazer uma reparação na infra-estrutura e isso implicou o esvaziamento da albufeira. Quanta água não terá rugido por aqui na implosão líquida que deixou à vista esta cicatriz arrepiante…

Depois, a chuva voltou a cair, a ribeira de Seda continuou a correr por entre fragas e mato e os vales encheram-se de novo. Os peixes cresceram e multiplicaram-se, os pescadores voltaram a trocar anedotas e comentários de circunstância enquanto tentavam iludir as carpas e os achigãs, as pontes modernas voltaram a fazer sentido e abaixo do paredão os campos continuaram a ser regados. As décadas passaram e a imagem de um gigantesco sorvedouro à vista turvou-se e fez-se miragem. Estava tudo como devia estar.

Até ao dia em que um novo problema nas comportas – este, sim, mais recente e bem documentado na memória – voltou a tirar quase toda a água desta paisagem grandiosa. Reapareceram as velhas estradas serpenteando pelas encostas, as ruínas das casas submersas, a velha ponte de arcos lá em baixo, tão estreita que nem parece real. Um rio corre pelo fundo do vale, como terá acontecido durante milénios antes de os homens bloquearem a passagem uns quilómetros mais abaixo. E, depois, novamente a água a cobrir tudo, a encher-se de vida, uma sucessão de slides de Verão, desses tempos da juventude em que os anos parecem não passar e tudo ainda está por acontecer.

Um Verão que não acaba

A vida leva muitas voltas. Estamos agora parados, a contemplar o imenso vazio do leito de uma barragem ausente. Outubro de 2017 e ainda parece Verão. Está calor, nem uma nuvem no céu. E nem uma gota de água na barragem. Desta vez não é a visão assustadora de um vórtice de betão, nem a curiosidade passageira de uma viagem ao passado que em breve ficará de novo submerso. Nada disso. Desta vez é a consciência absoluta de que algo está profundamente errado.

Não choveu este ano. Talvez também não tenha chovido o que devia nos anos anteriores. Mas como explicar o desaparecimento catastrófico de uma massa de água que, no seu pleno, pode atingir os 205 milhões de metros cúbicos? Esta é a oitava maior barragem do país em capacidade. E morre assim, de um ano para o outro?

Esforçando o olhar aqui da ponte podemos, talvez, adivinhar a linha onde a água resistiu até ao último momento, denunciada pelas difusas manchas esverdeadas de erva rasteira que ainda subsistem. Mas os braços laterais da albufeira estão transformados em ermos de pedra solta, as ruínas submersas durante décadas torram agora ao sol de um Verão que já passou o prazo de validade no calendário mas recusa ir-se embora. Descemos ao vale e pisamos as planuras erodidas por décadas de submersão, tão belas na suavidade dos seus contornos como inquietantes na sua despudorada exposição.

Havemos de fazer ainda muitos quilómetros pela zona, para conhecer as propostas enoturísticas de produtores de Avis, Benavila e Crato. A imensidão da barragem que já não existe continuará a rodear-nos ao longo de boa parte do caminho. Do outro lado da estrada, os olivais super-intensivos e os seus exigentes sistemas de rega levantam suspeitas. Mas o que fica realmente é a certeza de que nada está garantido para sempre. Nem mesmo as memórias da juventude, quando tudo era possível para lá de qualquer dúvida.

 

Edição n.º32, Dezembro 2019

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