Uma das grandes virtudes da Herdade da Bombeira é a gestão da sua vinha. Inclui a programação do seu maneio com base em conhecimento adquirido ao longo de muitos anos, e a boa gestão da rega, essencial para evitar o stress excessivo às uvas numa zona onde as temperaturas são extremas. Luis Fiúza Lopes, 68 anos, fundador e administrador da Bombeira do Guadiana, empresa proprietária da herdade, tem tudo o que se passou na sua vinha assente no seu caderno, desde a forma como decorreram os ciclos vegetativos desde que a plantou, incluindo os eventos climáticos e outros, até ao maneio feito ano a ano. “É a ele que recorro quando tenho dúvidas em relação à forma como os anos correram, porque as suas notas são ainda mais precisas do que as minhas”, conta Bernardo Cabral, o enólogo da empresa.
Para verificar o cuidado que ali se tem com a viticultura, basta entrar, naquela propriedade à beira do Guadiana, para ver como a vinha, que bordeja o rio, contrasta pelo aprumo com a desarrumada paisagem serrana envolvente, típica da zona fronteira entre o Alentejo e Algarve. No dia em que a equipa da Grandes Escolhas lá esteve, as pessoas que cuidam dela estavam em azáfama intensa e empenhada, porque era tempo de despampanar, tirar os “ladrões” e os lançamentos dos porta enxertos, ou seja, tudo o que ali estava a mais e podia afetar o equilíbrio da produção em termos de quantidade e qualidade.
Rega a seguir à vindima
O ciclo produtivo começa, na Herdade da Bombeira, logo a seguir à vindima, com a rega da vinha. “Regamos muito, porque a planta precisa de mais água depois da vindima, que aqui decorre muito cedo, pois termina no fim de agosto, e nós temos um mês de setembro muito quente”, conta Luis Fiúza Lopes, acrescentando que ali se continua a regar a vinha até às primeiras chuvas de novembro.
A poda começa a meio de dezembro e decorre até ao princípio de março, todos os dias, já que a Bombeira tem uma equipa de pessoas no terreno, que paga à jorna para fazer todos os trabalhos, que são supervisionados pelo diretor de produção da empresa, Márcio Quintas. Os “ladrões” e rebentamentos dos porta-enxertos começam a ser removidos após o abrolhamento até que, a meio de maio, começa a despampa.
A monda de cachos sucede-se a partir do mês seguinte. É Luis Fiúza Lopes, que conhece a sua vinha como ninguém, que indica qual o número a deixar, variando com a casta. “São cinco a seis cachos para o Arinto e oito para o Chardonnay, porque são mais pequenos”, revela, dizendo também que chegou a estes números com base na avaliação da qualidade do vinho ao longo dos anos, feita através da prova. “É um pouco a olho, mas funciona”, defende.
Quando chega à altura da maturação das uvas vai todos os dias à vinha e observa, quase cacho a cacho, a forma como tudo está a evoluir, até tomar a decisão de vindimar em conjunto com Bernardo Cabral. Trata-se de um processo que começa muito cedo em cada dia, por volta das 7h, e termina entre as 10h e as 11h, quando o camião frigorífico está cheio. À hora do almoço o veículo está na adega da Casa Santa Vitória, onde as uvas da empresa são vinificadas há muitos anos, sob a supervisão de Bernardo Cabral, através de um contrato de prestação de serviços. Depois de chegarem, o processamento depende do vinho que vai ser feito.
Frescura natural
As uvas para brancos e rosés são vindimadas cedo para os vinhos expressarem a sua acidez natural. Dão origem a brancos e rosés frescos e elegantes, características um pouco inesperadas para vinhos do interior sul do Alentejo, onde as temperaturas superam muitas vezes os 40 graus no verão. “Isso acontece porque o Luis Fiúza escolheu muito bem a zona onde plantou as castas brancas”, explica Bernardo Cabral, salientando que o Chardonnay está uma parte do dia à sombra, protegido por uma colina anexa, e as vinhas estão viradas a norte, o que faz com que o tempo seja mais fresco naquela zona.
No caso dos tintos, as uvas passam todas em tapetes de escolha e são vinificadas em cubas lagares, onde são pisadas por robôs, geralmente nos dois primeiros dias, e as massas são mantidas em frio durante quatro a cinco dias a fazer macerações a frio (sem produção de álcool), para que não haja demasiadas extrações com álcool depois da fermentação. “Dai que os vinhos desta casa tenham corpo, mas não sejam agressivos”, salienta Bernardo Cabral. Depois da fermentação, vão todos para barricas na cave da Casa de Santa Vitória e vão sendo provados por Bernardo Cabral e Luis Fiúza Lopes até ser tomada a decisão de engarrafar. Depois desta operação, e ainda sem rótulos, são armazenados nas instalações da empresa em Mértola e na Venda do Pinheiro, para onde vai a maioria das garrafas, “uma região mais fria, onde ficam a estagiar antes de serem comercializados”, termina o enólogo.
Luis Fiúza Lopes nasceu na Póvoa da Galega, no concelho de Mafra e frequentou o ensino Superior no ISCTE após terminar o liceu. Durante 2º ano do curso decidiu deixar de estudar para fazer o serviço militar, onde foi oficial miliciano. Mas saiu da tropa aos 22 anos para trabalhar com o pai, que possuía um matadouro na sua aldeia natal.
Oito anos mais tarde comprou a empresa ao progenitor e aos irmãos. Criou, depois, uma nova sociedade onde lançou a marca Dilop, de produtos de carne, que ainda existe hoje, para sair oito anos mais tarde para fazer um período sabático na Região de Mértola. Mas isso não aconteceu, já que não conseguiu resistir a começar a trabalhar no negócio da caça. “Cheguei mesmo a ser o maior empresário do sector em Portugal, gerindo cerca de 32 mil hectares de terras”, revela. Acrescenta que tudo isto sucedeu sem ser premeditado. “Quando cheguei a Mértola estavam a surgir muitas oportunidades nesta área e as coisas foram acontecendo”, conta, salientando que a sua experiência de gestão anterior contribuiu para o sucesso nesta área de negócio. Diz, também, que a compra da Bombeira do Guadiana, proprietária da Herdade da Bombeira, que tinha, na altura, 67 hectares, aconteceu quando chegou à região. Hoje são 760 ha.
Quase um enoturismo
São 16 quartos, uma piscina com vista para o rio, cerca de 2 mil metros quadrados de área de construção, um restaurante com capacidade para muitas dezenas de pessoas, com área social interna e externa. Está prevista, também, a abertura de uma loja de vinhos. Será um estabelecimento mais virado para o descanso, que ainda não está aberto, sobretudo porque os caminhos comuns até à propriedade, cujo arranjo depende da autarquia, ainda não estão em condições para o trânsito de veículos que não sejam de todo-o-terreno. “Quando a unidade estiver em funcionamento, terá de ter 12 pessoas a trabalhar, que têm de ser pagas, tenha, ou não, clientes”, explica o gestor, acrescentando que não abre ao público enquanto não houver garantia de haver um fluxo suficiente de clientes que sustente o negócio. Até lá, vai cedendo os quartos e o resto das instalações aos amigos e clientes.
Aprendizagem com o tempo
A propriedade tinha pertencido à Torralta, que ali investira na produção de laranja, tangerina e uva de mesa. Mas nunca tinha sido feito vinho. Mas Luis Fiúza Lopes achou que tinha potencial para produzir uvas, mandou avaliar a qualidade dos solos e restantes condições para o desenvolvimento da cultura. Os resultados deram-lhe razão e avançou com o investimento. Plantou a vinha em 2000. A presença mesmo ao lado do rio Guadiana ajudou ao desenvolvimento do projecto até à barragem do Alqueva ser concluída, altura em que deixou de ser possível retirar água do rio. A solução foi fazer diversos furos naquela zona da propriedade, com uma capacidade disponível para suprir as necessidades da cultura.
Inicialmente foram plantados 18 hectares de castas tintas. “Mais tarde, cheguei à conclusão que os nossos clientes também precisavam de vinhos brancos e plantei mais 5,5 hectares com esse objetivo”, conta. Hoje são, no total, 21,5 hectares de vinha. Nela estão plantadas as castas brancas Chardonnay e Arinto e as tintas Alicante Bouschet, Syrah, Trincadeira, Touriga Nacional e Cabernet Sauvignon.
Luis Fiúza Lopes confessa que não percebia nada do negócio quando plantou a vinha. Mas, aos poucos, foi-se apercebendo quais eram as castas se davam melhor no seu terroir e quais as que originavam vinhos mais facilmente comercializados. “Depois de algum tempo, cheguei à conclusão que as castas que se davam melhor aqui são as que estão plantadas actualmente”, afirma. Para chegar a este encepamento, foram feitas replantações das zonas menos produtivas da vinha quando esta chegou aos 20 anos, com castas adaptadas ao local. “A única experiência que fiz, nessa altura, foi a introdução da Touriga Nacional depois de ter estudado o tema e de me ter aconselhado com quem sabia”. Graças a isso, descobriu que há clones da casta bem-adaptados para climas secos e solos pobres como os da Herdade da Bombeira. Plantou as primeiras cepas da casta há quatro anos, para substituir alguma Syrah. “A segunda plantação substituiu a Trincadeira que produzia mal”, revela.
Mas não basta ter a ideia de plantar uma vinha e produzir vinho de qualidade para ter sucesso. É preciso também saber vendê-lo e cobrá-lo. Segundo Luis Fiúza Lopes, todo processo de crescimento e solidificação do seu negócio decorreu “muito devagar, demorou o seu tempo, mas nunca perdemos dinheiro nele”. Acrescenta que foram sempre vendendo o vinho e “nunca se estragou uma garrafa”. Os excedentes de uva “no máximo 20 mil quilos por ano se a produção for média”, são comercializados para outros produtores da região onde a herdade está inserida.
Aposta em monocastas
Hoje a Herdade da Bombeira produz cerca de 40 mil garrafas de vinhos brancos, oito mil de rosé e 80 mil de vinhos tintos. 95% dos vinhos são comercializados em Portugal, no canal Horeca, 30% dos quais no Algarve e outro tanto na Grande Lisboa, 5% para exportação e o restante no resto do país. São cerca de 130 mil garrafas as unidades que o gestor da Bombeira do Guadiana espera comercializar este ano. “Este volume deverá corresponder a um valor muito próximo dos 600 mil euros de vendas”, explica, salientando o número representa um crescimento de 30% em relação ao ano anterior.
A aposta na produção e comercialização de vinhos monocasta é evidente. O administrador da Bombeira do Guadiana defende que o terroir de Mértola se sente mais nos vinhos de casta do que nos de lote, e a qualidade é melhor. “Como vendemos bem os vinhos que produzimos, estamos certamente a fazer bem o nosso trabalho”, defende. Conta, ainda que o sucesso da sua empresa se deve também ao trabalho feito pela sua equipa no sentido de transmitir confiança aos compradores, “que necessitam ter e certeza de estão a adquirir produtos que lhes dão a garantia suficiente para que os possam recomendar aos clientes, seja num hotel ou num restaurante”, defende.
(Artigo publicado na edição de Agosto de 2023)