O grande branco da África do Sul
Os culpados foram os holandeses. Ocuparam a zona da cidade do Cabo, e instalaram-se. Rapidamente se aperceberam de que aquelas terras tinham condições excepcionais para a produção de vinho. Nasceu assim o Vin de Constance, corria o ano de 1685. Vinho de reis e celebrado por escritores, esteve 100 anos morto e enterrado. Mas renasceu.
TEXTO João Paulo Martins FOTOS Cortesia do produtor
QUE relação pode existir entre a produção de uvas e uma batalha de paintball? Aparentemente nada mas, no vale de Constantia, bem perto da Cidade do Cabo, não são da mesma opinião. É que por ali não há javalis que invadam os vinhedos, nem corças ou veados que perturbem a produção. O mesmo já não se pode dizer dos babuínos, raça de macacos muito agressivos, especialmente abundantes naquela região sul-africana e que é preciso manter à distância. A lei não autoriza que sejam abatidos e, por isso, a alternativa é “metralhá-los” com tiros de espingarda de paintball; não mata mas desmoraliza e, assim, pela noitinha, vêm para a vinha quatro “fuzileiros” que, de arma em punho, protegem a vinha. Fica a ideia para futura utilização entre nós.
A propriedade onde estão instaladas as vinhas situa-se num dos vales mais férteis e de melhor clima dos subúrbios de Cape Town, a “Sintra” desta zona, ouvi dizer, pela exuberância da vegetação, pelo clima fresco – equidistante dos oceanos Índico e Atlântico – e por se ter tornado durante muitas décadas o paraíso das elites locais que ali passavam férias e organizavam festas onde corriam o caviar e o champanhe. É politicamente incorrecto falar desses tempos do Apartheid e por isso é à boca pequena ou apenas em textos que tal Eden do passado é referido.
A tradição impôs ali a casta Muscat de Frontignan (ou Muscat a Petits Grains) como originando vinhos de grande qualidade, brancos naturalmente doces, com as uvas colhidas tardiamente mas sem podridão. Foi assim que que Simon van der Stel o terá imaginado, pela mesma razão que terá plantado milhares de carvalhos a pensar na indústria da tanoaria. O tempo disse-lhe que a proximidade do mar não permitia a produção de madeira apta a fazer barricas e, deste modo, lá ficaram os carvalhos, alguns deles (pela dimensão) é de crer que tenham chegado até hoje. Simon foi o holandês mais importante que ali esteve na primeira fase da colonização, Governador e fundador da cidade que ficou com o seu nome, Steleenbosch.
A fama destes vinhos nasceu no séc. XVIII e prolongou-se até meados do séc. XIX. Pelo requinte que apresentavam, por terem uma elegância que não cansava derivada da ponderada doçura, por serem mais agradáveis do que os Sauternes ou Tokay, já então vinhos de referência. As cortes europeias da primeira metade do séc. XIX não o dispensavam e os escritores não lhe passaram ao lado sem notar: não só Dickens se referiu ao Vin de Constance, como também Jane Austen, Beaudelaire ou o poeta alemão Klopstock. Até Napoleão foi o vinho de Constantia que quis levar para o seu exílio em Santa Helena.
Mas a tempestade anunciava-se no horizonte: os ingleses, cada vez mais interessados nos vinhos de Bordéus, deixaram de importar os vinhos sul-africanos e a partir de 1861, com a chegada do míldio e da filoxera, estava ditada a sorte dos vinhedos de Constantia, que não mais recuperou no século seguinte, ao ponto de se deixar de falar dele. Nos finais do séc. XIX a guerra dos boers (ingleses contra a comunidade holandesa e francesa pela disputa das minas de diamantes) acabou com o comércio destes vinhos. Sem os mercados de luxo europeus, os viticultores locais passaram a produzir vinhos para consumo interno com outro carácter. Até a garrafa antiga se perdeu e foi de resto num negociante dinamarquês que se descobriu um vinho do séc. XIX engarrafado na tradicional garrafa dos Vin de Constance
Começar de novo em 1986
É nesta data que se inicia a nova história deste vinho tão famoso, quando se produziu a primeira colheita da nova era. A propriedade inicial estava dividida em três e foi de uma delas, Klein Constantia, que Bruno Prats (Quinta de Roriz/Chryseia) se tornou sócio e a única que se reclama do vinho original. Há actualmente mais sócios, sendo que um deles é também o dono do Château Angelus, em Bordéus. O projecto obrigou a rever métodos de plantio, um aturado estudo vitícola e climatológico, de forma a conseguir os melhores resultados. A propriedade tem outras castas para a produção de vinhos secos mas é este, o Vin de Constance, que voltou de novo às bocas do mundo, hoje presente nas melhores cartas de vinho. A casta continua a ser a mesma, os métodos de produção mantêm-se tanto quanto a ciência aconselha, vindima manual, sem recurso a leveduras e com a particularidade de se usar um curioso método de parar a fermentação, com a adição de um mosto ultra-ultra doce, espécie de pé de cuba, seguindo o método usado em Tokay.
Na visita que fizemos tivemos oportunidade de provar in loco quatro das mais recentes colheitas. O vinho vende-se à porta da adega a cerca de €65, numa garrafa que foi feita à imagem do antigo modelo. A primeira colheita foi assim em 1986 e o sucesso chegou rapidamente, não por existirem adeptos do vinho antigo (há muito desaparecido) mas porque a qualidade que este apresentava era de facto entusiasmante e o vinho muito original.
Provámos as colheitas de 2007, 08, 09 e 13, esta a mais recente no mercado. O melhor terá sido o 2009 (19 valores) mais carregado na cor, com mais notas de mel e flor de acácia mas com rara concentração e riqueza, com incrível complexidade. Fica como nota global a enorme qualidade, subtileza e elegância destes vinhos de moscatel. Em boa hora renascidos, para alegria dos apreciadores dos vinhos doces (raça, ao que parece, em vias de extinção).