O churrasco perfeito

O sucesso é uma estrela de muitas pontas e cada pormenor conta para o resultado final. Ao mesmo tempo, há que garantir a condução de calor correcta a cada peça e em cada momento. E há que garantir o maior prazer de todos os momentos. Não há churrascos aborrecidos e a toada é sempre de festa. Jamais esquecerei a iluminação que foi conviver em plena Andaluzia com um grupo de amigos argentinos.
Para nós, portugueses, o churrasco é actividade essencialmente ao ar livre, mas percebi que, para eles, é uma questão de sobrevivência e nutrição. Aprende-se tudo na escola primária e pratica-se ao longo de toda a vida. Um argentino sabe atear lume em qualquer recipiente, e sabe como grelhar a carne no ponto certo. Provavelmente vem do tempo das pampas e das grandes transumâncias de gado bovino, em que a necessidade de sacrificar uma ou duas peças para alimentação do pessoal levou ao desenvolvimento da técnica. Nesse caso específico, falamos do próprio lume de chão. É notável.
A nossa cozinha de pastor contempla em certa medida essa mesma actividade, mas a uma escala incomparavelmente inferior. E quando muito, sacrificava-se uma peça com lume de chão, no entanto, tendencialmente, foi sempre a grelha em casa ou nos telheiros, o lugar supremo do processamento. Aquilo a que chamamos cozinha de pastor é, ao fim e ao cabo, uma cozinha de proximidade, feita a partir de ingredientes simples e minimalista na execução.

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Há a questão dos legumes que melhor acompanham as diferentes peças de carne. E ligada a esta, a interrogação sobre as saladas e os molhos a que queremos chegar

 

O prazer de planear

Um bom churrasco exige um conjunto de preparações prévias. Claro que o mais importante se prende com as carnes sacrificiais propriamente ditas, mas os acompanhamentos não são menos importantes. Além disso, pêssego, ananás, melancia e manga, por exemplo são frutos que reagem bem ao calor das brasas. Por que não os incluir? Emeril Lagasse, o mítico e mediático cozinheiro de New Orleans temperava e trabalhava os pêssegos da mesma forma que a carne de porco. Foi com ele que perdi o medo de passar as metades do fruto pelo forno a 200 ºC.
Depois, há a questão dos legumes que melhor acompanham as diferentes peças de carne. E ligada a esta, a interrogação sobre as saladas e os molhos a que queremos chegar. Aqui, o meu pensamento foge para Paris, para uma experiência excepcional entregue aos cuidados do chef tri-estrelado Alain Passard. Ficou para sempre na memória a forma como ele abordava a raiz de aipo e como explicava, ao mesmo tempo, que se trata de uma peça que não tem eixo preferencial e, consequentemente, não tem orientação possível para o corte. Genial a forma como, mais tarde, pude ver as combinações possíveis com mel de acácia. Talvez por isso, passei a incluir o legume em praticamente todos os pratos de base vegetal. Aconselho vivamente. Assim como aconselho não utilizar a mesma grelha com peças de natureza diferente.

O chef Rui Teixeira, da Peixaria, em São Jacinto, utiliza cada grelha apenas uma vez por dia. De facto, a contaminação de cheiros e sabores é a maior ameaça quando o que está em causa é conseguir resultados inexcedíveis. E nem sempre a peça ideal de carne é o maior desafio. Um simples tomate pode ser bem mais difícil de controlar, pois absorve praticamente tudo por onde passa. Nesta fase, tudo é importante, mas aligeiremos, que vamos passar ao assunto central. Está na altura das opções definitivas e de dar a primazia ao mais importante.

 

O osso que liga ambas as partes tem a forma de “T”, o que inevitavelmente baptizou uma das peças mais conhecidas de bovino. Vem de 1843 a designação

 

O acém redondo é maravilhoso e reage muito bem ao calor intenso das brasas

 

Ao trabalho!

Para organizar o churrasco fui ter com Cláudio Couceiro Cipriano, proprietário e CEO do Grupo C’s, em Antes, Mealhada. A solidez dos seus conhecimentos e a vasta experiência na actividade de corte e desmanche de carcaças fazem com que o ouvir seja sempre uma grande instrução. Além, claro, de um imperativo de consciência, que visa sempre sabermos o que comemos. Para o jovem sábio Cláudio Couceiro Cipriano, um bom churrasco tem pelo menos oito elementos fundamentais.

Picanha. A picanha parece feita de propósito para se sacrificar nas brasas. Encontramo-la em qualquer rodízio gaúcho, montada em espeto, para depois fatiar para o prato do cliente. A melhor forma de processar na grelha é justamente essa. Cortar em peças grossas com a parte mais gorda sempre presente e espetar de forma a que a gordura fique do lado mais exterior. Nesta e noutras peças, jamais salgar antes de grelhar. Na picanha, fazê-lo pode ter o efeito dramático de secar prematuramente as peças. Há que ter sempre em conta a reação inevitável da carne crua, desvirtuando-a, quando ela deve ser tratada nas palminhas. A maioria dos falhanços do amador está aqui e devem ser evitados a todo o custo. Há quem prefira fatiar logo a picanha e, depois, levar a grelhar, e isso não está inteiramente errado. A tolerância a falhas e singularidades, contudo, é maior quando partimos de peças maiores, e quanto maiores melhor, para enfrentar o calor sem risco de chamuscar. É fundamental grelhar até ao bom ponto – leia-se rosado – e evitar, a todo o custo, passar demasiado a carne.

Costeleta em T. Também conhecida como T-Bone. Quando cortada a preceito, apresenta vazia de um lado e lombo do outro. O osso que liga ambas as partes tem a forma de “T”, o que inevitavelmente baptizou uma das peças mais conhecidas de bovino. Vem de 1843 a designação, obviamente da responsabilidade dos Estados Unidos, com especial menção ao estado do Oregon, onde é conhecido como Oregon steak ou bife de Oregon. Está em vias de ganhar honras de certificação, mas lá como cá, o assunto não é simples. Os passos para lá chegar são diversos e tortuosos. O que faz deste corte único de carne famoso é a riqueza de sabor e a bondade acrescida pelo trabalho da grelha. O lado mais pequeno do T-Bone é, nada mais, nada menos, que o filet mignon, celebrado e amado entre os grandes apreciadores de carne. Grelhado a contento e com respeito, o T-bone é sinónimo de felicidade e rendimento de sabor. Em Itália é conhecido como bife Fiorentina e é obtido de gado muito seleccionado. É um emblema importante da cozinha clássica italiana e pesa cerca de 1,5 quilos. Por cá, é conhecido como costeleta em T e Cláudio Couceiro Cipriano tem muita procura no seu talho.

Ossinhos. Demorei algum tempo a perceber o que seria esta peça, que, para o nosso herói, é de importância primordial para o êxito do churrasco. Pedi para ver a peça e constatei que se trata da tira das costelas. É cortada como na Argentina e processa-se como a tira de entrecosto de porco. Grelha maravilhosamente bem e o sabor é dos mais marcantes dentre todas as peças sacrificadas. Parece-me que, quanto mais tempo for exposta junto às brasas mais mortiças, melhor. A alquimia do sabor ganha muito com essa exposição prolongada e, no final, os ossos e a carne são muito fáceis de separar. Atrevia-me a rebatizar esta peça como tira, mas, no caso, gosto de respeitar a indicação do mestre. É a minha peça favorita do churrasco e não tiro os olhos dela enquanto grassam o fumo e o calor. Admite e pede marinada prévia, apesar de isso ser, evidentemente, uma questão de gosto.

Naco do acém redondo. O acém é composto por três partes distintas: acém comprido, acém redondo e coberta de acém. Os dois primeiros são cortes ditos de primeira categoria e variam no ponto de extração, ou corte, quanto à proximidade do pé. Extrai-se também do acém a que é conhecida como cobertura, que grelha muito bem, mas dá mais sabor e textura a estufados longos e, por isso, é muitas vezes o seu destino. O acém redondo é maravilhoso e reage muito bem ao calor intenso das brasas, além de possuir mais gordura entremeada que o acém comprido. Quando Cláudio Couceiro Cipriano fala de naco, refere-se a uma peça alta e mais resistente às brasas. Ao mesmo tempo, oferece-se à transformação e criação de sabor. O resultado é fantástico e suculento. Os bifes à cortador são extraídos lés-a-lés destas partes mais ricas. Uma delícia, para resumir. A ideia, em termos de churrasco, é dar-lhe a exposição necessária, e depois do proverbial período de repouso, reduzi-la a fatias contra o veio. No prato, serão o céu, tanto em sabor como em textura.

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Confesso que, sempre que há frango numa celebração braseira, também não dispenso uma coxa ou asa de um bom exemplar. Come-se com a mão e os mais novos adoram

 

Frango de churrasco. Pois é! Cláudio Couceiro Cipriano não dispensa o bendito frango no elenco do churrasco. Confesso que, sempre que há frango numa celebração braseira, também não dispenso uma coxa ou asa de um bom exemplar. Come-se com a mão e os mais novos adoram. Como de resto é o caso com o frango de churrasco enquanto staple food familiar. Curiosamente, ganhou fama e reputação entre nós, principalmente com o regresso à pátria das comunidades das antigas colónias. Lisboa em particular, tem diversas bases de prédios convertidas em churrasqueiras. Angola e Moçambique trouxeram-nos a grande glória que é a cafriela, cuja base é justamente a grelha nas brasas. Leva depois uma passagem pelo tacho, seguindo-se o forno para acabar. A variante moçambicana leva leite de coco e é conhecida como zambeziana. As patas de frango são deliciosas quando processadas nas brasas. Tasquinha-se à mão, com um dip picante ao lado. Como aliás toda a cafriela. Fez muito bem o grande Cláudio Couceiro Cipriano chamar a atenção para as virtudes e a bondade do frango no churrasco.

Tiras de entremeada. É parte interessante e fundamental num bom churrasco. Escusado será dizer que não há outlet churrasqueiro que não tenha no cardápio uma boa entremeada. Talvez seja boa ideia deixar, para a etapa final do nosso churrasco, as tiras de entremeada. É uma forma de glorificar a carne de porco nos nossos redutos familiares. Claro que existe sempre a opção de pura e simplesmente grelhar nas brasas as fatias, mas espera-nos glória bem maior em cozinhar previamente a baixa temperatura as finas peças deliciosas. O ideal seria cozinhar primeiro em vácuo e a baixa temperatura. É a arte ao alcance de poucos, bem sei, mas a impressão em boca é mesmo muito boa. Não impede, antes beneficia ganhar crocância nas brasas logo a seguir. O fumo é o veículo ideal da transformação alquímica que se dá no nosso prato. Vai ver como no palato se desfaz e transforma em iguaria dos deuses. A experiência nada tem a ver com a entremeada grelhada directamente a partir da fase crua. Este é, de resto, um dos pressupostos da cozinha modernista, em que o resultado final se consegue por passos iniciais ou intermédios como este. Além disso, quem dispensa uma boa entremeada?

Salsicha fresca. Este pequeno e sápido ingrediente tem uma capacidade notável de se converter em iguaria deliciosa. Se pensarmos no modelo clássico e ancestral de salsichas enroladas em couve lombarda, depressa nos precipitamos para esta solução, quando não para a fritura directa em sertã a alta temperatura. A verdade é que o churrasco gosta da salsicha fresca, e esta gosta muito do churrasco. A insistência de Cláudio Couceiro Cipriano em incluir o pequeno ensacado faz todo o sentido, pois representa uma grande ponte de sabores, aromas e texturas. Com o tempo e os ingredientes adequados, poderá mesmo vir a produzir as suas próprias salsichas frescas. Utilizando ingredientes naturais e fresquíssimos, a exposição ao calor das brasas vai resultar em mais sabor e riqueza de texturas. E no dia do churrasco, vai dar por si a procurar com ansiedade as salsichas passadas pelas brasas.

Chouriça. Gosto muito de chouriço de Goa, que é, porventura, o enchido mais picante e, ao mesmo tempo, mais saboroso de toda a nossa salsicharia. Curiosamente, foi a partir de várias experiências culinárias, com a simpatia e a paciência de amigos goeses, que me apercebi do potencial de sabor que está contido em cada chouriço. Em certas preparações, é mesmo o único tempero necessário para temperar um cozido inteiro. O chouriço de carne, ou chouriça, tem o mesmo papel temperador na totalidade do churrasco. Pode processar-se no início e reservar-se para a fase de finalização de toda a empreitada. Será sempre o toque salino e especiado de que precisa para a fruição perfeita do seu churrasco. Apenas há que escolher a chouriça perfeita. O esforço será vastamente recompensado.

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Este pequeno e sápido ingrediente tem uma capacidade notável de se converter em iguaria deliciosa

 

E o vinho?

Os argentinos têm muita sorte em ter ao seu alcance a casta Malbec. Parece que nasceu nas pampas, ao lado da montagem de lume de chão em que tradicionalmente se sacrificam carcaças de bovino. Tem força e, simultaneamente, elegância, e, sobretudo, tem a grande virtude de não interferir no sabor da carne grelhada. Antes acrescenta, com notas especiadas e de madeira, que acrescentam à noção de complexidade que desejamos e se nos instala na alma. Tenho feito diversas experiências neste capítulo e há dois perfis vínicos que se mostram eficazes na assessoria vínica de um bom churrasco.

O primeiro é um Aragonês alentejano, com pouca ou nenhuma madeira, conseguindo vingar pela frescura e pelo sabor resultante da fusão do vinho com o palato. O segundo é um Cabernet Sauvignon marítimo, da Península de Setúbal, com estágio de seis anos em barricas de carvalho francês. Importante mesmo é fazer as suas próprias experiências e, acima de tudo, explorar as explorações a que se prestam. E não se esqueça jamais da importância de ousar enveredar por caminhos inteiramente novos. Boas experiências!

(Artigo publicado na edição de Setembro de 2025)

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