O que nós passámos para aqui chegar

A História faz-se de avanços e recuos. A do vinho também e é por isso que não é bom perder a visão de conjunto, ficarmos nos pormenores e deitar fora o essencial. E custou muito chegar até aqui.

João Paulo Martins

Estamos numa época em que muito se fala dos méritos que tinham os vinhos de antigamente, dos métodos perfeitos que então se usavam, das virtudes que derivavam da simplicidade dos processos, do perfeito equilíbrio entre o homem e a Natureza. Se seguirmos esta perspectiva, o que se pede então ao produtor de hoje é que seja capaz de fazer como dantes: sem tecnologia, sem ciência, sem equipamentos e, já agora, sem enólogos que não passam de uns empatas que só querem usar químicos.
A história do vinho sempre acompanhou os avanços que a ciência – seja a física, a química ou a microbiologia – trouxeram para o aperfeiçoamento da técnica de produção. Digo técnica de produção porque o vinho não se faz por si, não aparece feito na Natureza, tal como o pão não nasce numa planta. São precisas uvas para fazer vinho e é preciso saber o que fazer com elas. Com o pão passa-se o mesmo: é preciso cereal mas há que saber o que fazer com ele e, imagina-se, há muitas maneiras de chegar ao produto final. Tal e qual como no vinho.
Quando se ouve alguém falar no vinho de outrora, do antigamente e dos velhinhos que, esses sim, é que sabiam o que faziam, fica-se com a sensação que por vezes não se sabe do que se fala. Com a evolução vertiginosa que o mundo teve (em todos os domínios) nos últimos 60 anos, para falar do “antigamente” não é preciso ir muito longe, poderá bastar (e provavelmente sobra…) ir até aos anos 50 do século passado. Pois então repare-se: na época apenas se fazia vinho a lagar e o mosto fermentava posteriormente em tonéis de madeira de grandes dimensões. Simples, não é? Não se usavam leveduras, não se fazia o controle de quase nada, não havia malolácticas, nem estágios nem filtrações. Fazia-se o vinho com o que chegava à adega, quando as uvas sobrevivam às quantidades enormes de químicos que os lavradores usavam. Já ninguém se lembra do DDT e do 605 Forte e dos anúncios que davam na televisão do Senhor Prudêncio? Ninguém ouviu falar dos tempos em que eram às carradas o ácido tartárico que se usava nos vinhos para lhes conferir acidez e assegurar a longevidade? Já todos esquecemos que, se estivermos a falar dos Bordéus dos anos 50 só há um ano considerado muito bom, o 1953? Porquê? Pela simples razão que os outros, apesar de virem de casas famosas, avariaram, estragaram-se, evoluíram mal. Achamos isso normal, mas é bom tentar saber porquê. Nos anos 70 não há quase Bordéus que sejam dignos de nota e Borgonhas também não? Porque será? É bom saber que a responsável pela melhoria generalizada dos vinhos foi a ciência, nas suas múltiplas disciplinas e que os produtores beneficiaram de coisas tão estupidamente simples como seja…haver mais higiene nas adegas, deixar de usar cestos de verga para transportar uvas, eliminar na quase totalidade os tonéis velhos que, à falta de manutenção, mais não são que viveiros de bactérias.

Afinal, o que ganhámos com a técnica?

Fazer vinho hoje é aplicar uma quantidade enorme de conhecimentos e melhoramentos que foram sendo adquiridos ao longo das últimas décadas. Algumas dessas melhorias apenas decorrem do bom-senso – como seja a escolha das uvas à entrada da adega ou a lavagem das instalações para impedir a propagação das bactérias acéticas. Outras são a consequência de muito estudo, ensaio, erro e progresso. E esses avanços foram, nas últimas décadas, responsáveis pela melhoria generalizada dos vinhos no nosso país e no resto do mundo. É difícil dizer onde tudo começou mas a verdade é que o melhor conhecimento da uva e da vinha, da condução e da poda, da gestão da canópia, do equilíbrio entre produção por cepa e qualidade final do vinho, tudo isso contribuiu para que hoje as uvas cheguem à adega mais sãs e mais capazes de dar bom vinho. Fez-se tudo bem? Nem por isso. Os erros que se fizeram com porta-enxertos errados, com selecção clonal desajustada e condução incorrecta da vinha serviram também para se melhorar hoje os disparates cometidos nos anos 80 em Portugal (nomeadamente no Douro) e em França, no caso da selecção clonal.
Do início dos anos 60 até hoje aprendemos quase tudo o que nos permite evitar que se volte a ter uma década negra como tiveram os franceses nos anos 50 em Saint-Émilion. Vejamos: deixámos gradualmente as madeiras velhas para a fermentação dos mostos, descobrimos o método certo para controlar a temperatura da fermentação, preservando assim os aromas e assegurando o respeito pelo local de onde vieram as uvas; aprendemos quase tudo sobre a fermentação maloláctica, a sua monitorização e acompanhamento; conhecemos muito melhor o universo das leveduras e descobrimos que elas não só não são todas boas meninas, como podem não ser capazes de levara a bom proto a tarefa que delas esperamos; conhecê-las e controlá-las foi um enorme avanço. Hoje sabemos muito mais sobre a microbiologia da uva, dos processos químicos associados à transformação do mosto em vinho, sabemos gerir melhor o pH e a acidez das uvas com a consequente redução do uso do ácido tartárico embora ele continue a ser útil nos climas quentes, tal como o mosto concentrado é necessário nos climas frios. Substituímos muitos tonéis velhos por barricas novas e, quer sobre a fermentação em barrica quer sobre o estágio em madeira, temos hoje conhecimentos muito maiores que nos permitem não voltar a fazer o erro dos anos 80 em que os vinhos eram verdadeiros destilados de carvalho. E sobre a utilização de sulfitos estamos muito mais informados, também para saber que não os usar é um passaporte quase certo para a curtíssima longevidade do vinho.
Do passado mantivemos o que valia a pena: as vinhas velhas, (no caso de serem boas), a pisa (ou mesmo a fermentação) em lagar, as ânforas, os depósitos de cimento (agora com novos formatos) e, se se tiver confiança nelas, as barricas velhas mesmo para fermentar vinhos brancos, como hoje ainda fazem algumas das grandes regiões de brancos do Mundo.
A grande diferença em relação ao passado é que, hoje, o conceito de vinho imbebível praticamente desapareceu e mesmo os vinhos ridiculamente baratos são bebíveis. São vinhos Barbie, como alguém disse? Não sei se são Barbie, mas são os vinhos que a esmagadora maioria da população bebe, a tal população para quem vinhos a €5 são coisas para o Natal, e e…! Ao contrário dos tempos de Fernando Nicolau de Almeida, hoje a Casa Ferreirinha poderia fazer Barca Velha quase todos os anos. Tivesse o criador do mítico vinho acesso a todos os avanços técnicos que hoje temos e conhecemos e seria, com certeza, o primeiro a abraçá-los. Temos escolha porque temos mais sabedoria. Sabemos o que queremos fazer e como. E, por isso, sabemos que se quisermos errar não é por sermos mais espertos que os outros ou por sermos nós que respeitamos a Natureza. Creio que será por outras razões.
Passámos muito para aqui chegar e seria um desperdício deitar tudo a perder.

Edição nº 34, Fevereiro 2020

SIGA-NOS NO INSTAGRAM
SIGA-NOS NO FACEBOOK
SIGA-NOS NO LINKEDIN
SUBSCREVA A NOSSA NEWSLETTER
Fique a par de todas as novidades sobre vinhos, eventos, promoções e muito mais.