O Tempo dos vinhos por Luís Antunes

O vinho é um produto agrícola de ciclo muito longo. Na sua produção, o tempo do vinho, o ciclo da vinha, é um ano. Podemos fazer um zoom-out para percebermos que quando se planta uma vinha — e uma vinha pode produzir vinho durante muitas décadas—, essa decisão afectará muitos destes ciclos anuais. A decisão de arrancar ou reconverter uma vinha velha é, então, obviamente, uma decisão de peso, que tem impacto durante muitas décadas no estilo do vinho a produzir. Uma vinha velha não se define apenas pela sua idade. Também se define pelas castas que inclui em cada parcela, pela condução das vinhas que, trazendo mais ou menos energia do Sol para cada cacho, pode representar mais maturação ou mais frescura no vinho que ali se produz.

O ciclo vegetativo anual é também uma consequência dessas decisões de fundo. Uma casta de ciclo longo vai amadurecer mais devagar, preservando melhor os preciosos ácidos enquanto reúne os açúcares no amadurecimento, garantindo assim um equilíbrio que o consumidor depois agradece. Uma casta de ciclo mais curto ajuda a que o amadurecimento chegue antes que os orvalhos do Outono apodreçam as uvas. Cada sítio quer assim as suas escolhas, provando que o terroir inclui sempre o homem, não apenas os solos, climas, exposições solares e castas. Decisões antigas com fé reafirmada em cada vindima.

Na vindima é o tempo que acelera. As semanas são cheias de dias, as uvas não esperam, as fermentações têm tempos críticos. Os dias são cheios de acção, é a colheita, a fermentação, a limpeza, muita limpeza, as trasfegas, os lagares, as mantas regadas, mil-e-uma tarefas para cuidar dos vinhos que se fazem, libertar espaço para os vinhos que se vão fazer, cuidar dos vinhos já feitos. Ainda por cima, nestes tempos de turistas e visitantes, há sempre gente a entrar e a sair, jornalistas, curiosos, apaixonados do vinho, parceiros comerciais, tempo ocupado, ainda tempo para cuidar disto tudo, refeições para serem cozinhadas, e apreciadas com os vinhos de anos passados, sonhando com os anos futuros.

tempo dos vinhos

Quando a coisa abranda, as decisões podem ser mais espaçadas, mas não são menos importantes. Estágios, lotes, marcas, rótulos, engarrafamentos, rolhas, vendas. Um vinho que se estagia na adega é um vinho que tarda mais em vender. Fica o empate de capital, fica o espaço e vasilhame para o guardar, e às colheitas seguintes que se queiram fazer. Um estágio que se faça em barrica obriga a investir em barricas, o que, para além do custo delas próprias, inclui o custo da mão de obra para as cuidar. As vasilhas não podem ficar a meio e, por isso, quanto menores, mais mão de obra exigem. A sofreguidão destes trabalhos acelera quando se fazem as fermentações malolácticas, mas depois abranda até ao Verão seguinte. Aí vêm os engarrafamentos e o planeamento da próxima vindima. Vendas, transportes.

E neste ciclo de produção entra em jogo o consumidor. Que vai comprando vinho ao longo do seu ano, com os seus tempos, se calhar mais rosés e brancos no tempo quente, mais tintos e fortificados no tempo frio. E comprando, vai abrindo e bebendo. Quando? Ora, diz-se como lenda que o tempo médio que decorre entre a compra de uma garrafa e a sua abertura e consumo é cerca de duas horas. Tempo curto, nem sei como arrefecem os brancos. Se calhar compram já fresco. Por mim, aprecio um vinho bebido no seu tempo próprio. No auge da sua evolução.

 

Ao longo dos anos têm melhorado muito os vinhos brancos portugueses e os melhores já são agora postos à venda com alguns anos de estágio, uma cortesia do produtor que os aproxima desse tempo ideal. Mas mesmo quando são postos à venda ainda no ano da sua vindima, muitas vezes sou eu que faço questão de os estagiar devidamente. O meu melhor exemplo talvez seja o Alvarinho de Monção e Melgaço. Tão bom de beber logo que sai, tão melhor de o degustar com alguns anos. Muitas vezes escondo uma caixa de garrafas na garagem, esperando esquecer-me dela para a ir buscar anos mais tarde. Se, das seis garrafas, duas evoluírem demasiado, vale a pena, que as outras quatro mais do que compensam. E um truque para as outras duas é bebê-las com um queijo de ovelha curado, a combinação tradicional que quase caía em esquecimento.

Os tintos sempre aguentaram melhor a espera e também esses os faço esperar. Prefiro comprar menos variedade e mais garrafas de cada vinho. De Bordeaux costumava comprar sempre uma caixa de 12, e nunca as abria antes de 8 ou 10 anos. Aí uma garrafa por ano, para avaliar a evolução do vinho. Se estava de urgência, acelero o ritmo, se não, abrando. Um vinho antigo, nunca o decanto. O vinho que esperou muito tempo com pouco contacto com o ar fica guloso de oxigénio quando se tira a rolha. Tira-se então a rolha com cuidado, saca-rolhas de lâminas, e deixa-se respirar aquele nadinha de vinho do gargalo. Depois serve-se com poucos safanões a garrafa toda, para cada comensal apreciar no copo o seu bouquet. Decantar é só para vinhos novos, para lhes amaciar os taninos espigados. Mas é sempre melhor esperar que o tempo lhes arredonde as arestas.

tempo dos vinhos

Mas para nenhum vinho é verdade que “quanto mais velho melhor”. Mesmo os fortificados mais poderosos, grandes Portos ou Madeiras, devem ser bebidos no seu tempo certo. Esperar demasiado pode prejudicar o vinho, deixemos essas longas esperas para quem conhece melhor essas artes, os enólogos que nas caves os envelhecem e loteiam, que os provam continuamente para colocar na garrafa no tempo certo. Um grande Porto vintage envelhece longamente na garrafa e podemos fazê-lo nós em casa, mas não convém esperar demais. Também aqui é preciso ir provando, pois vale sempre a pena conhecer o que temos na garrafeira, convidar uns amigos e abrir as garrafas. Um Porto tawny e especialmente um Madeira podem envelhecer para sempre, mas não necessariamente melhorar em garrafa na nossa cave. Por isso é dar-lhe, não esperar mais do que o devido.

De princípio a fim falei sempre de tempo, do tempo dos vinhos. Espirais de tempo, grandes e pequenas, que envolvem terras, cepas, uvas, mostos, lagares, cubas, barricas, garrafas, vinhos, copos. Que nos envolvem a nós e à nossa vida. Agora, é tempo de ir beber um vinho.  LA

(Artigo publicado na edição de Julho de 2024)

SIGA-NOS NO INSTAGRAM
SIGA-NOS NO FACEBOOK
SIGA-NOS NO LINKEDIN
SUBSCREVA A NOSSA NEWSLETTER
Fique a par de todas as novidades sobre vinhos, eventos, promoções e muito mais.