Editorial da revista nº48, Abril 2021
Terra, pedra, textura. Vale, encosta, planalto. Vento, chuva, escaldão, geada. Podar, empar, vigiar, tratar. Enfrentar o frio e o calor, provar os bagos para avaliar sabor, açúcar, acidez, taninos. Regressar triste ou contente, desalentado ou entusiasmado. Será que o tempo aguenta até à vindima? É ali, na vinha, que tudo tem início. Quem não sente a videira, não pode verdadeiramente sentir o vinho.
Em mais de três décadas a escrever sobre vinhas e vinhos já assisti a muitos ciclos de produção e comercialização. Quando comecei, em 1989, a esmagadora maioria das marcas existentes no mercado correspondiam a vinhos que não tinham sido feitos pela empresa que os engarrafou. Em muitos casos, o proprietário da marca, sobretudo as de maior volume, não tinha sequer ideia da origem do vinho que comprou e que depois vendeu com o seu rótulo. Salvo honrosas excepções, vinha, vinho e marca eram três mundos separados que só se relacionavam através de transações comerciais. Algumas casas entre as grandes possuíam adegas e vinhas próprias, é certo. Mas estas representavam uma parte irrisória das suas necessidades de uvas e vinho. E, mesmo dentro de casa, a vinha era algo longínquo para quem estava na adega e na sala de provas. Em muitas empresas, o enólogo chefe raramente sujava as botas na vinha e, quando o fazia, não era com prazer.
Entretanto, o consumidor foi-se tornando mais conhecedor e exigente. E, a dada altura, deu-se um momento de viragem, quando encontrou valor acrescentado nos chamados “vinhos de quinta”. As empresas maiores sentiram então a necessidade de ter mais controlo sobre a matéria-prima que recebiam. Começaram a aumentar a sua área de vinha, a profissionalizar a vertente agrícola, a valorizar os conhecimentos dos técnicos de viticultura.
No início no século XXI, cresceu entre o apreciador a vontade de saber mais, de chegar até à origem do vinho, de visitar a vinha onde este nasceu. Ao mesmo tempo, já não lhe bastava aceder a um bom produto, o vinho tinha também de ser diferenciador, de ter uma história para contar. Aliada esta vontade do mercado à necessidade de manter a consistência das marcas, as grandes casas reforçaram o seu investimento em terra, em vinha e nos recursos humanos que lhe estão associados. Hoje em dia, é quase impensável para as empresas de maior dimensão, e com marcas em diversos segmentos de preço, não controlar a maioria das uvas, seja nas vinhas próprias, seja nas dos fornecedores.
Curiosamente, porém, nos últimos dois ou três anos, tenho vindo a assistir a algo que, até há pouco, julgaria impensável: o nascimento de marcas de nicho alicerçadas num nome “cool” e num rótulo atractivo, e potenciadas pelas redes sociais. Marcas sem vinha, sem adega, sem vinho (!), protagonizadas por pessoas oriundas de outras áreas de actividade que se insinuam junto de um produtor e que, perante dez ou doze amostras que lhe colocam à frente, escolhem uma para vender com o seu nome. E depois, apesar de nunca terem pegado numa tesoura de poda, enchido uma cuba, colocado uma rolha, contam no Facebook uma história sobre uma vinha que não conhecem e sobre um vinho que “ajudaram a fazer”. Alguns, não têm vergonha de acentuar que até “ensinaram” o enólogo a melhorar o lote. E vendem essas garrafas como vinho “de autor”, cinco vezes mais caro. Só cai quem quer, é verdade, e gente com talento para tomar como seu o trabalho dos outros sempre houve em todas as áreas de negócio. O que me espanta, no entanto, é que são precisamente os apreciadores que valorizam a genuinidade e a diferença que vão no logro, e compram esta falsa exclusividade a um preço muito acima do seu valor qualitativo.
Tenho para mim que, quanto mais ambicioso e oneroso for um vinho, mais fácil deverá ser para o consumidor seguir as suas pegadas até à origem. E a origem de um grande vinho é terra, é vinha, é gente. É verdadeiramente ali que tudo começa. Sem essa rastreabilidade, o vinho é apenas uma marca, mais uma.