A harmonização de comida com vinho tem vivido sobretudo de dogmas, a que é mais que tempo de renunciar e ao mesmo tempo urge substanciar racionalmente. Além de novos perfis vínicos que os produtores têm vindo a oferecer, o gosto evoluiu muito nas últimas décadas. Hoje acreditamos que o grande objectivo da ligação é que vinho e comida sucumbam harmoniosamente nos braços um do outro, sem vencedor nem vencido. Bem-vindos ao fascinante mundo do equilíbrio e ousadia à mesa.
O assunto é delicado, mais apropriado seria dizer que é pouco visitado. No entanto, precisamos absolutamente de um jogo coerente à mesa para conseguir chegar ao objectivo supremo de uma digestão feliz. A plataforma universal de conhecimento tem de assentar muito mais no racional do que o nosso sistema fisiológico consegue identificar do que simplesmente numa cartilha sensaborona tacitamente adoptada. O magistral e fundador trabalho de Brillat-Savarin lavrado no fundamental livro “A fisiologia do gosto” estabelece quatro sabores fundamentais: ácido, doce, amargo, salgado e um quinto sabor “do qual ainda ouviremos falar muito”, e que baptizou como osmezoma. Aprendemos a chamar-lhe umami com a instalação das chamadas cozinhas orientais, principalmente a japonesa. Se nos apoiarmos nestes cinco pilares dos alimentos da nossa mantença, temos já belíssimos pontos de partida para a exploração vínica.
A estruturante acidez
A salada acompanha e equilibra muitas vezes um prato, à maneira da janela que se abre para entrar ar fresco e que o prato ganhe luz e matizes diferentes de sabor. Azeite, vinagre e ervas aromáticas como o agrião ou o manjericão operam facilmente essa transformação. Umas simples gotas de limão avivam uma ostra fazendo sobressair a sensação marítima do vibrante bivalve de que Portugal é porta-estandarte. Este costume de deitar uns pingos sobre a membrana da ostra era para ver se estava viva. A reacção ao ácido fazia-a reagir indicando por isso que estava em condições para consumir. Com a certificação dos tempos modernos, há apenas que procurar produtores acreditados, a frescura está garantida. Igualmente fresco é o sorvete de limão que se tornou vezeiro em sobremesas diversas supostamente para criar frescura, mas há que atender ao sabor que no caso tende a ser dominante. A raspa da casca de uma laranja ou limão pode ser o toque de frescura que faz abrir e impressionar um simples bolo, frango assado ou o merengue italiano que cobre uma tarte. Menos perceptível, mas igualmente estruturante é a acidez num prato quente. Mas se num caldo ou prato de tacho quase se pode medir pelo pH – e nesse caso devemos procurar obter 4 ou menos – num prato estruturado e com vários componentes há que fazer prevalecer o bom senso e a experiência. O tomate é sempre um elemento forte em saladas frias, comporta-se em cru como fruto rico em licopeno, fortemente antioxidante, mas conhece bem o seu caminho quando incluído em configurações culinárias de cozinha lenta. O mesmo é dizer que tem honras de fundo fundamental de cozinha o que afinal é o elemento ácido indispensável e único na libertação lenta e sustentada. O alho e a cebola contribuem de forma particularmente eficaz para o perfil acídulo do trabalho culinário. O primeiro infelizmente tem mais detractores que adeptos fervorosos, o grelo que está dentro de cada dente do hortícola deve ser removido antes de toda a sequência de preparação, depois é que surge a glória do que é um dos mais felizes moderadores de acidez da história da cozinha. Há além disso que ter a garantia da boa origem do alho, é muito sensível às águas de rega na horta, a garantia bio é sem dúvida fundamental. Procure pequenos produtores da sua confiança ou mesmo que conheça pessoalmente e vai ver a diferença. A cebola de boa semente portuguesa comporta-se de forma abnegada e sistematicamente aceita papel secundário. Picada, liberta ácido sulfúrico, de resto responsável pelas lágrimas que jorramos no processo, cortada em gomos transforma-se fundindo harmoniosamente com a restante assessoria. Ligações felizes: Arinto de Lisboa sem madeira. Vinho Verde Alvarinho. Tintos baseados na casta Castelão. Aragonez do Alentejo.
O capítulo das coisas doces estimula particularmente o sentimento nacional e talvez por isso mesmo tenhamos copiosa oferta vínica para as acompanhar. Passou de moda o saudável costume de beber um copo de licor como digestivo no final da refeição, e aparentemente não volta tão cedo ao altar da mesa. Permanece, contudo, a esperança de que as aguardentes bagaceiras e vínicas prossigam nas suas sendas felizes, indispensáveis para os portugueses. Imparáveis estão o whisky e o gin, que são bebidas duras geralmente de qualidade excepcional, há que dizê-lo. Isto enquanto não aparecem projectos sólidos de destilados de fruta que temos e é tão boa. Mas adiante, que estamos na festa doceira, há muito por que festejar. Leite-creme, arroz-doce, mousse de chocolate são glórias quotidianas que vão adoçando a boca às famílias, receitas registadas nos canhanhos que vão animando os frigoríficos. A concorrência dos preparados instantâneos é feroz e lá cedemos à pressão, que a gente tem pressa.
Portugal tem âncora forte e sápida na chamada doçaria conventual, sabedoria de matriz regional crivada de conhecimento popular. Ganhou especial impulso no início do séc. XIX, quando a extinção das ordens religiosas conduziu a que o que tinha crescido nas cozinhas dos conventos passasse a fonte principal de rendimento. O torrão real e o fartes de Portalegre, fortemente baseados em ovos e frutos secos são glórias universais da doçaria, são dois exemplos apenas de um vastíssimo receituário de que ainda hoje gozamos suaves rendimentos. Os livros de receitas sobreviveram graças sobretudo ao facto de muitas das oficiantes estarem ao serviço durante o dia mas iam dormir a casa, e assim foram adquiridos conhecimentos preciosos. O que seria de nós sem esse manancial? Nem pastel de nata teríamos, quanto mais papos de anjo, ovos moles ou castanhas doces. A refinação de açúcar é assunto relativamente recente, o mel é ancestral e natural e marca presença de vulto na doçaria nacional, tanto directamente em receitas de pastelaria como em molhos e outros condimentos. O chocolate é outra descoberta recente, tudo se passa na era pós-descobrimentos, mas não foi por isso que o adoptámos com menos fervor e continua a ser desafiante no que toca à harmonização com vinhos.
O percurso vínico da variante doce da nossa alimentação tem sido mais ou menos errático, movido mais por dogmas do que razões. Quem nunca experimentou casar doçaria conventual com um tinto velho com mais de vinte anos não sabe o que perde. A estrutura está mais aberta e a componente doce é preservada. O caso do pastel de nata resolve-se com um moscatel de Setúbal ou um Carcavelos. Já as sobremesas com chocolate negro – mais de 70% de cacau – pedem um Porto Vintage novo. O chocolate de leite gosta mais de Madeira Malvasia. Nos bombons, pralinés ou recheados, a opção certa pode ser um Porto Tawny 30 ou 40 anos.
Os injustiçados amargos
Não há equilíbrio sem extremos e o grupo de amargos é aquele de que menos se fala. Mesmo na prosápia da crítica de vinhos é que mais estranheza provoca no leitor, por se tratar de uma área que inspira defeito, quando é um sabor fundamental ao nível dos restantes. Convivemos bem com ele e sem ele a vida é sensaborona. Apercebi-me disso pela primeira vez quando há muito tempo me foi servida uma entrada unicamente de beterraba crua sem qualquer marinada ou molho. Sabemos que é rica em açúcar, mas há que sabê-la trabalhar para que o amargo não domine demasiado o conjunto. No contexto certo torna-se deliciosa, e até base de saladas tépidas exóticas. Na ligação com o vinho há apenas que ter o cuidado de optar por vinhos com pouca ou nenhuma madeira, para não puxar demasiado pelos polifenóis presentes na bebida. Num campo bem diverso estão os igualmente diversos amargos do peixe. Destaco os fígados, parte importante e particularmente injustiçada e que raramente se leva à mesa requintada e na qual está muito do sabor. Há que ter a ousadia de por exemplo servir em iscas tal como se faz com porco ou vitela e depois saber-lhe dar a devida assessoria, trabalhando fundos e molhos. O vinho azedo, quase vinagre que se aplica nas axilas e coxas do leitão antes de se entregar ao fogo sacrificial vai mais tarde fazer a grande diferença no sabor final. O vezeiro espumante cumpre bem o seu desígnio, mas um tinto de Baga pode ajudar na leitura do requinho de que todos tanto gostamos. Temos surpresa garantida colocamos espinafres crus numa salada fria, os amargos presentes nas folhas podem destruir o objectivo primordial, que seria a harmonia integradora. Mas curiosamente se as passarmos primeiro numa frigideira anti-aderente sem gordura, a estrutura vegetal abre e deixa-se impregnar de condimentos e temperos, piscando o olho a um bom Pinot Noir. Mesmo quando os vai utilizar num gratinado, vale a pena dar este tratamento prévio. O forte amargo que caracteriza a semente de cacau pode ser uma mais-valia na preparação e processamento culinário de certos pratos, funcionando como intensificador de sabor. O registo vínico feliz será neste caso um Arinto da Bairrada com madeira. O café é também um referencial amargo e não é em vão a inclusão em estufados longos ou em molhos. A perdiz adquire estatuto de realeza e o bife ganha dimensão universal.
Grupo salgado
O sal está diabolizado e procura diariamente clemência junto de consumidores, médicos e nutricionistas. É um fenómeno social cíclico que está à mercê de revoadas de opinião e radicalismo geralmente pouco informadas e de certa forma alarmistas. O gosto português, contudo, não o dispensa e está na base da história da nossa alimentação desde há muitos anos. Deve utilizar-se com muita moderação, apenas como intensificador de sabor, embora saibamos que usamos e abusamos dele na cozinha. E se é pouco razoável o extremismo cego, urge instalar uma nova consciência em todo o espectro do consumo. A manteiga portuguesa, a mesma com que barramos o pão do pequeno-almoço, tem muito sal, devíamos ter o grau “meio sal” dos franceses para compensar tudo o que pomos no pão, ele próprio já rico em sal. A expressão pejorativa de pãozinho sem sal diz quase tudo sobre o assunto e no restaurante o vezeiro saleiro tem de estar ao lado. Trata-se, portanto, do sabor fundamental que domina o gosto de um prato e ao mesmo tempo o aviva. Não imaginamos o nosso maravilhoso fumeiro sem o sal. Não há presunto tradicional sem a forte salga inicial, que o ajuda a secar também e o ajeita para a empreitada do fumo. A cura do queijo concentra nele a tonalidade salina, por força da evaporação da componente líquida, indo de pasta mole a velho. O molho de soja de que abusamos na forma como comemos sushi e sashimi faz-nos ir muito além no sal, devíamos passar as peças pela soja muito ao de leve, e nem todas precisam sequer de passar. Tornou-se um hábito social que acaba por arruinar a experiência de pureza e verdade que procuramos junto dos bons sushimen que temos de norte a sul do país. Além disso, não damos hipótese a que o vinho brilhe, recorremos à cerveja numa espécie de jogo de opostos que nada tem a ver com a majestade implicada na cozedura da lâmina que tornou famosa a cozinha japonesa. Pelo fenómeno da criação de dimetilamina já referido, o vinho tinto está excluído da harmonização, pelo que deve optar por brancos de álcool moderado e acidez pronunciada. Já o queijo velho pode gostar da companhia de um tinto vigoroso com madeira. Para o presunto, há que considerar a maridagem com brancos de curtimenta com alguma evolução e ir contra o preconceito cego de acompanhar com tinto. Tudo depende da idade e cura do presunto e da gordura disponível. No geral, os enchidos curados de fatia pedem o corte da acidez, pelo que pode dar-se o caso da oportunidade para um tinto do Dão sem madeira. Já no caso da alheira clássica, deve levar-se perfurada com alfinete nas pontas e levar-se a uma frigideira anti-aderente sem qualquer gordura, lume no mínimo. Vai bem com branco de Trás-os-Montes, servida com grelos salteados e ovo estrelado.
Umami, o sabor que sabe bem
Eis-nos chega dos ao quinto sabor, o umami, que está na moda e na boca dos chefs. Numa escala de intensidades, o leite materno é campeão, seguido cá muito em baixo pelo caldo de vitela da primeira fervura, que em francês se diz “fond de veau” e está na base de muitos cozinhados. Não é tanto a intensidade, mas a envolvência e sensação de satisfação que leva a que os nossos bebés gostem tanto do leite materno no período de aleitação. Se atribuirmos 300 unidades de umami a essa essência materna, ao caldo de vitela damos 75. O terceiro classificado é o caldo dashi de camarão da cozinha chinesa e japonesa, com cerca de 50 unidades. Depois vêm todos restantes alimentos, com menos de dez pontos. Brillat-Savarin sabia bem de que falava no seu matricial livro Fisiologia do Gosto. As cozinhas orientais têm-nos ensinado muito sobre equilíbrio e completude de uma refeição e no fundo tem muito a ver com digestibilidade. A mesa kaizeki, alta cozinha japonesa composta de uma sequência de pratos de grande recorte técnico, representa todo um tratado de alimentação. Nós, ocidentais temos beneficiado muito da fusão e confrontação lúcida e intelectualmente orientada com as técnicas e sabores das cozinhas orientais. Apreciamos sobretudo a plenitude de sentidos sem pesar demasiado e a digestão fácil e simples. Tofu e seitan estão a entrar no nosso léxico nutricional justamente por esta razão. Há uma procura de equilíbrio que deve envolver a totalidade da refeição em vez de apenas partes e é imperativo que abracemos de forma culta e instruída tudo o que formos integrando pacificamente nas nossas cozinhas. Os vinhos resultantes de práticas biodinâmicas têm-me surpreendido muito sobretudo por esta vertente de umami e compreende-se que muitos menus de degustação do famoso Abade de Priscos começassem por um consomé de aves e fossem acompanhados por Madeira Sercial, ponte divinal apenas alcançável por mestres dos equilíbrios. Temos produtores entre nós que estão apostados nesta via, adoptando práticas que dão saúde à terra e nos integram nas suas paisagens. Um simples queijo fresco do dia acompanhado por um Vinhão de Vasco Croft, da região dos Vinhos Verdes representa bem a redenção que todos queremos. E merecemos.
(Artigo publicado na edição de Outubro de 2023)