A Sociedade Agrícola Boas Quintas vende hoje cerca de 900 mil garrafas/ano, maioritariamente Dão, mas também Bucelas e Setúbal, sendo 80% destinado a exportação. Porém, no início dos anos 90, quando conheci o enólogo Nuno Cancela de Abreu, o seu projecto pessoal resumia-se à propriedade familiar, uma vinha de 1,5 hectares em Mortágua que ele resolveu ampliar. E recordo-me de ele contar, divertido, de o pessoal da terra comentar que estava louco ao plantar videiras numa zona que só servia para eucaliptos. Na verdade, o território servia para muito mais do que exploração florestal (embora esta fosse mais rentável…), mas as condições iniciais eram bem limitadas. “Os vinhos brancos fermentavam em cubas de inox de 1.000 litros, com garrafões de água congelada, que eram trocados de oito em oito horas de forma a manter a temperatura próxima do óptimo”, conta Nuno. “Os vinhos tintos, remontados com uma única bomba existente, ficavam extraídos e taninosos.”
Na época gestor e enólogo da Quinta da Romeira, em Bucelas (onde lançou o revolucionário Prova Régia Arinto), era aos fins de semana que rumava a Mortágua, para acompanhar os vinhos guardados nas pequenas cubas e em algumas barricas recuperadas. “Foi a fase mais purista da minha enologia, em que posso afirmar que fazia vinhos ‘naturais’, tão em voga actualmente. Não estou a tentar dizer que estava à frente no tempo. As condições que existiam é que não me davam grandes alternativas…”, recorda com humor.
A Boas Quintas foi crescendo e evoluindo, alocando quase todos os recursos à exportação, tendo adaptado a enologia aos diferentes mercados
Os brancos eram produzidos em quantidades marginais, mas foram muito importantes na sua aprendizagem sobre a casta Encruzado. Quanto aos tintos, eram encorpados, com pouca cor (“para meu desespero a cor caía após a maloláctica”), pouco percebidos pelos consumidores da época, o que se reflectia numa grande dificuldade em vendê-los no mercado nacional.
Até então, o percurso de Nuno Cancela de Abreu, após concluir Agronomia no ISA e Viticultura e Enologia em Montpellier, tinha passado pelo Douro – foi director da ADVID Associação para o Desenvolvimento da Viticultura Duriense e professor na UTAD – e por Bucelas. Entender em profundidade o Dão vitivinícola, apesar de nele estarem fundadas as suas raízes familiares, levou algum tempo. “O Dão atravessava uma má fase, com um estigma negativo que fechava qualquer porta a que batesse. Com o tempo, fui estudando, evoluindo, tornando os vinhos cada vez mais consistentes”, refere.
Na primeira década dos anos 2000, a vinha da Quinta da Giesta contava já com sete hectares, a atingirem a idade madura. O patamar qualitativo era bom, mas, reconhece Nuno, “faltavam a notoriedade e os vinhos premium.” Era preciso dedicar mais tempo ao projecto e havia que tomar uma decisão. “Em 2010, optei por arriscar e arrancar com uma nova fase estrategicamente disruptiva”, diz. “Passei a estar a tempo inteiro, tendo abandonado o trabalho para terceiros (Nota: ao tempo, era administrador e enólogo da Quinta da Alorna). E dividi a orientação da empresa com o meu amigo, e actual sócio, Rui Brandão, gestor de formação com grande competência no controlo financeiro e na gestão”, conta Nuno Cancela de Abreu.
Começando com apenas dois colaboradores, a empresa Boas Quintas foi crescendo e evoluindo, alocando quase todos os recursos à exportação, tendo adaptado a enologia aos diferentes mercados. Em 2016 foi inaugurada uma nova adega, revelando já outras ambições na sua dimensão, com capacidade para chegar, no futuro, aos dois milhões de garrafas. A estratégia de vendas tem sido centrada nas exportações, para cerca de 25 mercados em todo o mundo, sobretudo Reino Unido, Alemanha, EUA, China, Brasil, Canadá e Benelux. No entanto, e apesar do sucesso e notoriedade dos vinhos Fonte do Ouro, considerados entre os melhores do Dão, faltava a Nuno Cancela de Abreu uma marca posicionada acima desta, uma marca que se tornasse referência inquestionável no mercado nacional. E é aqui que voltamos ao princípio de tudo, à Quinta da Giesta.
Nuno Cancela de Abreu confessa que “reinventar” a linha Quinta da Giesta, passando-a da base para o topo, lhe deu um prazer muito especial.
Um Dão mais fresco
A Quinta da Giesta, localizada em Mortágua, tem condições edafoclimáticas distintas das de outras zonas do Dão, sobretudo as mais interiores e influenciadas pela altitude. Aqui, neste Dão mais a sul e próximo do litoral, as principais influências têm origem na serra do Bussaco, que protege os vinhedos dos ventos marítimos frios e húmidos, e na barragem da Aguieira, que introduziu um factor moderador da temperatura e da humidade. Como consequência, desde que a barragem foi construída as geadas primaveris desapareceram na zona sul da região. “Os nevoeiros matinais na época da maturação são os guardiões da frescura dos nossos vinhos e o diferencial de temperatura entre o dia e a noite ajuda a potenciar os aromas elegantes”, destaca o enólogo.
Os solos são sedimentares, argilosos com alguma pedra, ácidos, muito pobres em nutrientes, e transmitem mineralidade e concentração, com produções medianas por hectare. A vinha está plantada em terrenos “arrancados às garras dos eucaliptos”, em encostas suaves, envolvida pela floresta circundante. “Os pinheiros e eucaliptos dão um toque de especiarias aos vinhos”, diz Nuno. A Quinta da Giesta faz parte da rede internacional de “Business & Biodiversity”, que promove a preservação ambiental e a sustentabilidade, e as vinhas estão em modo de Produção Integrada.
Em termos de castas, a base assenta na branca Encruzado e na tinta Touriga Nacional. Mas para além destas foram plantadas Malvasia Fina, Tinta Roriz, Jaen, Alfrocheiro e Trincadeira, entre outras. Nuno Cancela de Abreu, profundo conhecedor e apreciador de Arinto, conseguiu que a CVR do Dão alterasse finalmente a legislação para admitir o Arinto de Bucelas, sendo a parcela existente na Quinta da Giesta um motivo de orgulho para o enólogo e produtor. “Os nossos brancos ficaram a ganhar”, diz.
Ao longo de muitos anos, o talento e conhecimento de Nuno Cancela de Abreu enquanto enólogo ficou, sobretudo, associado aos seus vinhos brancos. E quer o trabalho feito em Bucelas quer os Fonte do Ouro (com destaque para o Dão Nobre de 2019) justificam por inteiro essa associação. Encruzado é, naturalmente, a casta de eleição destes vinhos e Nuno explica porquê: “a casta dá origem a vinhos bastante equilibrados, frescos, elegantes, minerais e vibrantes, com volume de boca e muita longevidade, especialmente quando o mosto é fermentado e estagiado em barrica.” Mas nem tudo são rosas na Encruzado. “O ponto ideal de colheita é fugaz, obriga-nos a controlá-la muito de perto. E a sua grande fragilidade é a propensão para a oxidação dos mostos e vinhos. Para o evitar, saturamos com azoto, todos os equipamentos e cubas por onde o Encruzado passa, começando na bomba de massas e continuando na prensa, tubagens e cubas. Quando o mosto é transportado para encher as barricas, já vai com a fermentação iniciada para estar protegido pelo CO2 libertado.” Nos melhores brancos da casa entra também, é claro, o Arinto (“acrescenta fruta tropical, citrina, frescura e mineralidade”) e, por vezes, a Malvasia Fina (“tem alegria no aroma floral e boca volumosa com sabor a fruta amarela madura”).
Mas se a associação aos vinhos brancos se justifica, não deixa de ser redutora para este produtor e enólogo, já que também os tintos são a “sua praia”. No caso do Dão, a Touriga Nacional é a eleita, sendo que, nos topos, surge também no lote alguma Tinta Roriz, por vezes com um pouco de Jaen ou até Alicante Bouschet. Mas a Touriga é largamente dominante nas preferências de Nuno, “pelos bagos pequenos e concentrados que originam vinhos de aromas florais e frutados, com perfeito equilíbrio entre acidez e taninos, suavidade, requinte e elegância.”
Revolução no portefólio
Até há pouco, a marca Quinta da Giesta estava na base da pirâmide da empresa Boas Quintas, como porta de entrada no portefólio de vinhos do Dão. Agora, passa para o topo. Uma autêntica revolução, que implicou alterações profundas ao nível da imagem, do conteúdo das garrafas e do posicionamento de preço (gama média/alta, alta e muito alta) que Nuno Cancela de Abreu justifica: “É uma forma de assinalar as minhas quatro décadas de enologia e, ao mesmo tempo, de honrar e continuar o legado dos meus antepassados, a fazer vinho no Dão desde 1884.” O facto de este ser o único vinho de “Quinta” que a empresa comercializa como DOC Dão e de assentar numa vinha madura e confiável, instalada em 1986, hoje com 38 anos, também pesou na decisão.
Mas muito mais foi necessário garantir. Desde logo, acima de tudo, o vinho, claro. “Alterámos a composição e perfil dos lotes, com diferentes tipos de estágio, para dotá-los de maior consistência de aroma e sabor, mais estrutura, longevidade e diferenciação”, aponta o enólogo. O portefólio Quinta da Giesta contempla três “Colheita” (branco, rosé e tinto, a €10), dois Reserva (branco e tinto, a €20) e dois Grande Reserva (branco e tinto, a €110).
Brancos e tintos são vindimados à mão para caixas pequenas. A partir daí, Nuno Cancela de Abreu, como é seu timbre, não vai em “modas artesanais” e tira todo o partido da tecnologia ao seu dispor: desengaçador com mesa de escolha para a seleção das uvas, prensas pneumáticas, bombas peristálticas, filtração tangencial, gerador de azoto… “A tecnologia, quando bem usada, é importante para respeitar a qualidade e a genuinidade dos vinhos”, defende, “um vinho oxidado não tem origem.”
O branco Colheita (tal como o rosé) é trabalhado em inox, com batonnage semanal (“com bomba submersa, para evitar oxidações”). Reserva e Grande Reserva branco fermentam e estagiam em barrica. Nos tintos, Nuno tem, por norma, fazer passar o mosto por um crivo de inox, retirando as grainhas (“assim evitamos que o álcool dilua os taninos amargos, secos e adstringentes das grainhas, que iriam tornar os vinhos duros e agressivos”) e pratica a micro-oxigenação logo após a fermentação “para incentivar as ligações entre os antocianos (cor) e os taninos (corpo), possibilitando manter a cor após a fermentação maloláctica.”
A sua filosofia de vinificação, assume, inspira-se na região de Borgonha. E aqui as barricas assumem um papel crucial, sobretudo para o segmento Reserva e Grande Reserva. “Depois de alguns anos e muitas barricas experimentadas e provadas, selecionámos duas pequenas tanoarias na Borgonha”, explica. “Estas barricas borgonhesas, com tosta suave, transmitem elegância respeitam e exaltam a fruta fresca dos vinhos, não dominam nem marcam.”
Com sete referências distintas e a produção limitada aos sete hectares de vinha existentes na propriedade, os Reserva e, sobretudo, Grande Reserva, só são engarrafados em anos de eleição. E a distribuição é feita através de uma rede de pequenos agentes regionais.
Aos 68 anos de idade e com uma carreira profissional de sucesso, Nuno Cancela de Abreu já não tem nada a provar a ninguém. Mas confessa que “reinventar” a linha Quinta da Giesta, passando-a da base para o topo, lhe deu um prazer muito especial. Os vinhos, esses, para além da consistência e qualidade intrínseca, expressam integralmente quer a sua origem, quer o “estilo” do enólogo. E é assim que deve ser.
(Artigo publicado na edição de Setembro de 2024)