A Vilariça tem de tudo para nos fazer felizes. Aqui é o vinho, ali o azeite mas também as frutas, os produtos da horta, as amêndoas. Ninguém passa fome e está mesmo autorizado a “embebedar-se” com a paisagem, tranquilizadora e cada vez mais amiga do ambiente, proliferando por aqui as vinhas em modo bio.
Para se saber onde fica a Vilariça há várias maneiras. Pode-se, por exemplo, dizer que não é muito longe de Torre de Moncorvo, local mítico de peregrinação gastronómica para os amantes da carne, já que ir à Taberna do Carró é como ir a Fátima: há que ir, dê por onde der! Não come carne? Ali também há bons produtos hortícolas, frutícolas e frutos secos. Ok, então a Vilariça é um vale onde se chega via A4 e IP2, a caminho do Pocinho.
Esta era zona conhecida por ser uma planície em plena zona montanhosa, resultado de uma falha geológica. Tal como acontece com outras zonas muito marcadas por falhas geológicas (como a Alsácia, por exemplo), os solos estão “embrulhados e encavalitados” uns nos outros, originando que, na mesma parcela de vinha, se possam encontrar tipos diferentes e consequente desenvolvimento desigual das cepas, umas a produzir muito bem, ao lado de outras de produção diminuta. Podemos assim falar de micro-terroirs, algo que deixa muitas mentes de winefreaks em estado de excitação máxima.
Negócio a explorar
Nos anos 80 e, sobretudo 90, a Vilariça suscitou muito interesse de vários produtores, que ali reconheceram virtudes para a produção de vinhos Douro. Estávamos na época em que estavam a dar os primeiros passos, o mesmo período que levou várias empresas do vinho do Porto a perceberem que era uma área de negócio por explorar, uma vez que a região do Douro era rica de castas e vinhos que, por falta de benefício (o direito de produzir Porto), tinham um destino incerto. A Vilariça foi também uma das zonas onde a Cockburn’s, que era nos anos 80 um dos gigantes do vinho do Porto, lançou um programa de plantio em larga escala da casta Touriga Nacional. Pode mesmo dizer-se que foi dali que se expandiu, inicialmente para o restante Douro e, depois, para todo o país.
A família Symington adquiriu a Quinta do Ataíde em 2006 e, em 2014, plantou um campo ampelográfico com 53 castas, procurando assim saber o potencial das diferentes variedades face aos novos tempos de alterações climáticas. Aos poucos, algumas das parcelas vizinhas foram sendo adquiridas e incorporadas na Quinta do Ataíde. É também por isso que é difícil a Symington responder à simples pergunta: “quantas quintas têm?” Acontece que no Douro se chama muitas vezes “quinta” a uma parcela, uma vinha, na maior parte das vezes sem casa e/ou adega. Diga-se, como exemplo, que hoje, quando falamos da Quinta do Ataíde, estamos a falar dos 80 ha originais da propriedade, a que depois temos de acrescentar as áreas de vinha das parcelas Assares, Canada, Carrascal e Macieira que perfazem os actuais 112,4 ha de vinha, dos quais 80 em modo biológico. Quanto à pergunta “quantas quintas”, é provável que a resposta ainda se mantenha quando este texto vir a luz do dia, 27, mas onde se contam algumas das parcelas atrás referidas! Quintas de toda a família, algumas da própria empresa e outras que pertencem a membros da família, que entregam as uvas à empresa. Temos vindo a assistir ao crescimento enorme do património da empresa e o consulado de Paul Symington como CEO – entre 2003 e 2018 – foi especialmente prolífico, com a área de vinha a aumentar 482 ha nesse período. Temos, assim, que o “universo” Symington em termos de vinha está como segue: Douro (1,043 ha), Alentejo (41,5 ha), Monção & Melgaço (27,5 ha). A área efectiva de vinha plantada situa-se nos 1,112 hectares.
Uma adega para DOC Douro
Até à construção da adega que iniciou a laboração nesta vindima, a Symington tinha toda a produção dos vinhos DOC Douro na Quinta do Sol. O crescimento da procura dos vinhos Douro obrigou à decisão da construção desta nova adega. Ainda que o Porto continue a ser o responsável pela maior fatia da facturação da empresa, a verdade é que, se em 2009 os vinhos tranquilos apenas representavam 1% da facturação, em 2023 essa percentagem subiu para 14%. E se juntarmos os vinhos Douro com os do Alentejo, o que se verifica é que actualmente se está a produzir 24 vezes mais do que em 2010 e, nos últimos cinco anos, a facturação (Douro e Alentejo) cresceu 50%, situando-se agora nos 13 milhões de euros. No peso global da facturação da Symington, nos anos de declaração clássica de Vintage ou das edições especiais de Porto, podem os valores ter variações significativas, aumentando então o peso do vinho do Porto.
Nesta nova adega são então elaborados os vinhos Quinta do Ataíde e Vinha do Arco (num total de 36.000 garrafas), Quinta do Vesúvio (132.000 garrafas) e Altano Bio. No total falamos de 760.000 garrafas.
No Vesúvio mantêm-se os lagares com pisa a pé para a produção de vinho do Porto. Esses lagares “à antiga”, mandados fazer por Dona Antónia Adelaide Ferreira, são mesmo os únicos que a Symington mantém em funcionamento. E todo o Porto Quinta do Vesúvio é ali feito. Todas as outras quintas que têm vinificação – Cavadinha, Bomfim, Senhora da Ribeira, Malvedos e Quinta do Sol (esta para os Porto “correntes”) usam lagares robóticos. A gama Altano é a que representa maior volume, com 1.754.400 garrafas.
A Touriga Nacional é a rainha da Vilariça, ocupando 38% da área de vinha. Lá longe, em 1995, a Symington teria uns cinco ou seis hectares desta casta. Como nos diz Pedro Correia, enólogo, “eram os tempos em que dominava a Touriga Francesa e a Tinta Barroca nos encepamentos e, mesmo a Alicante Bouschet, que aqui na Vilariça já tem 21 ha, era uma casta que só existia nas vinhas velhas e pouco mais”.
Na visita à adega torna-se óbvio que há uma sensação de orgulho no trabalho feito. Charles Symington, que coordena a equipa de produção, disse, por várias vezes que o que mais lhe agradava era que tudo tinha sido feito “in the house”, como que a dizer “com a prata da casa”.
Ensombrada pela pandemia, com os materiais a falharem, os prazos a estenderem-se e os orçamentos a terem de ser constantemente refeitos, a adega conseguiu estar totalmente operacional para a vindima de 2023, com todas as valências para se poder considerar uma adega modelo pelos princípios da sustentabilidade. Com as placas fotovoltaicas “o edifício produz mais energia do que consome. Só na vindima é que precisamos de comprar”, revela o arquitecto Luis Loureiro, responsável pelo desenho da obra. Também há utilização intensiva da gravidade, sem recurso a bombas e mangueiras; resíduos tratados e águas residuais usadas para rega de jardins; orientação da adega com muitos dos equipamentos de apoio a serem colocados no exterior, junto às paredes viradas a norte; uma rede de fibra de coco onde trepadeiras irão crescer e “tapar” todos os equipamentos; cobertura vegetal da adega e preocupação com todo o arranjo exterior que, “dentro de três anos, mostrará tudo o que tivemos em mente”, como nos confirmou o arquitecto.
A produção em bio é muito exigente em procedimentos dentro da adega porque todo o equipamento tem de ser alocado apenas para os vinhos bio, desde as caixas de transporte das uvas até às cubas. Charles está consciente que a produção em bio exige muito mais intervenção na vinha (com prejuízos em termos de pegada de carbono) e estão a equacionar o uso de drones para a pulverização, algo que é tema ainda em desenvolvimento, mas que poderá ser uma excelente opção de futuro. Uma coisa é certa: “visitámos muitas adegas lá fora e não temos qualquer dúvida em dizer que aqui incorporámos todo o know how e todos os detalhes que fomos recolhendo das experiências nas nossas adegas; temos o que de melhor a ciência e a prática aconselham em termos de equipamento e funcionamento da adega”. O sorriso na cara da Charles diz tudo…
Por aqui vindima-se à mão e à máquina e há duas câmaras frigoríficas para recepção das uvas. “Com as que chegaram no dia anterior podemos começar bem cedo a vinificar, enquanto as uvas que vão chegando vão enchendo a outra câmara, já que só serão processadas no dia seguinte”, lembra Pedro Correia. Todo este trabalho continua a ter um quê de experimental: barricas de tanoarias diferentes para estágio, tostas diversas, madeiras de florestas distintas, uso de cimentos que facilitam a micro-oxigenação.
À volta da adega é um mar de vinhas quase todas pertencentes à família Symington. A quinta produz dois vinhos: Quinta do Ataíde, um tinto que resulta de um blend de castas e o Quinta do Ataíde Vinha do Arco, um varietal de Touriga Nacional. Foram alguns dos tintos da Vinha do Arco de provámos, todos eles ainda em comercialização pela empresa. A produção varia entre 12 e 18 000 garrafas. Os próximos a serem colocados no mercado, em 2025, serão os tintos de 2018 e 19, já com nova imagem. Concluída a vindima de 2024, ficámos a saber que tudo correu sobre rodas. Melhor ainda, que há vinhos muito bons. Como diria o actor: what else?
(Artigo publicado na edição de Novembro de 2024)