Mudar de vida. Mais tarde ou mais cedo, é uma questão que a todos nós se coloca. Na esmagadora maioria dos casos, porém, após reflexão mais ou menos profunda, a vida continua tal e qual, inalterada. Não foi assim com Rui Lucas. Em 2013, ao interrogar-se sobre quem era, o que fazia, percebeu que era “um romântico, um apaixonado”, características que não jogavam inteiramente com a sua vida profissional. E vai daí… “Mudei de vida, regressei às origens, às raízes e faço algo que me traz alegria do princípio ao fim do dia. Decidi produzir vinho, preservar o património vitícola da minha terra, Souselas, conciliar a tradição vitivinícola e o costume social de beber vinho e partilhar essa paixão com o mundo.”
A união de freguesias de Souselas e Botão representa a Bairrada mais a sul, a pequena parte da região que ainda faz parte do concelho de Coimbra. Como produtora de vinho, já foi bem mais famosa do que é. No entanto, ao lado da incontornável fábrica de cimento que domina a paisagem, subsistem pequenas parcelas de vinha, muitas abandonadas, algumas ainda teimosamente cuidadas pelos seus proprietários, que gastam mais no seu amanho do que o rendimento que a uva lhes dá. Curiosamente, já depois de ter iniciado a sua “conversão”, Rui descobriu que seu bisavô, José Francisco Prior, tinha sido importante produtor de vinho, que vendia na cidade de Coimbra. O negócio perdeu-se na geração seguinte, mas o pai de Rui, José Prior Lucas, preservou algumas parcelas de vinha. Daí que, quando o gestor decidiu tornar-se vitivinicultor, em jeito de homenagem, foi o apelido do pai, Prior Lucas, que escolheu para marca da casa.
No início, há quase uma década, contava unicamente com as vinhas dos pais, cerca de 3 hectares. Hoje são 7 hectares de videiras em produção, entre elas algumas parcelas muito antigas adquiridas a idosos viticultores que viram no seu entusiasmo uma forma de não deixar morrer as cepas que tanto acarinharam; e outras parcelas que Rui plantou e continua a plantar. “Para que a história da minha terra não se perca”, diz. “Vou agregando área e preservando o património vitícola, caso contrário todas estas terras seriam abandonadas ou iriam produzir eucaliptos…”
Desafiado a classificar os vinhos que faz ou pretende fazer, Rui Lucas é peremptório: “Não tenciono produzir vinhos com este ou aquele perfil, aspiro sim a fazer o que cada vinha permite da melhor maneira possível. O objectivo é criar identidade, assente no dinamismo e inovação, interligada com a biodiversidade e a sustentabilidade.”
Espere aí, deixe-me recapitular: dinamismo, inovação, biodiversidade, sustentabilidade. Uf! Traduzindo em miúdos, isso dá o quê? “Começa, por ser eu a construir as minhas próprias cubas de betão, com o material que é feito mesmo ao lado da minha adega”, aponta Rui. Boa resposta! Com efeito, um produtor a fazer, com as suas mãos, as cubas onde vinifica, é mesmo algo de novo. Para o conseguir, Rui baseou-se no conhecimento adquirido nos largos anos passados na indústria da construção civil. Mas poder fazer as cubas de betão com o exacto material (densidade, porosidade), formato e dimensão que pretende não é a única vantagem que o produtor encontra nestes depósitos: “Reduzo bastante o consumo de energia, por um lado. E as diferentes formas das cubas e a conjugação com outros materiais imprimem diversidade e ainda introduzem inovação e iniciativa. Tudo isto para obter um vinho com uma característica mais identitária.”
As vinhas de Souselas e Botão
Vinho esse que começa, como todos, na vinha. Os 7 hectares estão divididos em 6 parcelas distintas, que Rui Lucas conhece como as suas mãos. A chamada “Vinha Centenária”, plantada bem antes 1945, esteve abandonada dois anos. Em 2018, ao ver o solo de argila branca e calcário, a exposição poente, as castas plantadas (muitas, brancas e tintas), decidiu adquiri-la e recuperá-la. A “Vinha do Chico Padre”, plantada em 1980, com várias castas misturadas em solo de argila branca e areia, esteve também ela abandonada, embora apenas um ano. Além da qualidade intrínseca da parcela, Rui Lucas mostra o seu lado mais “romântico” ao confessar a outra razão que o levou a ficar com ela: “O nome diz tudo. O dono original, o Chico Padre, era filho de um…Padre!” Estas são as duas parcelas mais antigas onde, entre ambas, se misturam variedades como Baga, Camarate, Tinta Pinheira, Jaen, Bastardinho, Preto Martinho, Arinto, Bical, Maria Gomes, Rabo de Ovelha ou Cercial.
A “Vinha da Bela Cruz” tem na base uma história triste. Era de um emigrante nos EUA que regressava a Portugal de férias em três momentos do ano: para podar a vinha, para a vindimar e para caçar. Faleceu prematuramente, antes de poder usufruir da sua reforma na vinha. “Foi o seu pai, com quase 90 anos, que tratou de tudo para eu dar continuidade ao trabalho do filho”, refere Rui Lucas com emoção. Plantada em 1990, tem Baga, Camarate, Trincadeira, Bical e Maria Gomes, em argila e calcário.
Em seguida, e por ordem de idade, está a “Vinha dos Marmelos”, plantada em 2004 em solo de argila e calcário, sobretudo com Bical, Maria Gomes e Arinto, um pouco de Baga e Jaen. O nome vem da bordadura de marmeleiros que a rodeia. A “Vinha das Netas”, virada a sul, é a que tem o solo mais diverso, do barro vermelho ao argilo-calcário, passando por uma faixa de seixo rolado. Na sua plantação, em 2010, cada variedade (Baga, Tinta Roriz, Bical e Maria Gomes) ficou no solo potencialmente mais favorável. Por último, a “Vinha da Adega”, de Baga e Merlot, que Rui Lucas plantou pessoalmente em 2013 (provavelmente, terá sido também nessa altura que adoptou as calças jardineiras e as camisas “lenhador” que hoje constituem a sua imagem de marca, mas não perguntei…). Essa vinha constituiu o aproveitamento de um solo abandonado, de argila vermelha e seixo rolado, cujo destino seria a construção. “Alterei o seu rumo”, diz com justificado orgulho.
Sustentabilidade, em todos os sentidos
A forma como Rui Lucas trabalha as vinhas reflecte as suas preocupações, quase holísticas, com o que o rodeia. “O solo é das peças mais relevantes do meu terroir, é insubstituível e há que preservá-lo”, acentua. Rui vai pelo que o bom senso lhe diz sem adoptar modelos mais “radicais” que, por vezes, nem são tão sustentáveis assim. “A biodiversidade é imprescindível”, diz. “Seja pela competição saudável entre as várias espécies de plantas que coabitam numa vinha, seja pela diversidade de castas ou clones dessas castas”, acrescenta. Além disso as pequenas parcelas de vinha estão intercaladas com outras culturas, como olival, pinhal e mato, o que oferece refúgio à fauna existente. A água das chuvas, usada nos trabalhos da vinha, é recolhida em depósitos; e a electricidade da adega provém de fornecedores que utilizam exclusivamente energias renováveis. Mas talvez a prática sustentável que mais visibilidade trouxe ao projecto de Rui Lucas tenha sido o que tem vindo a fazer com a colaboração de alguns restaurantes: recupera caixas de cartão (desmontando-as e montando-as do avesso) e garrafas de outros produtores (lavando-as e higienizando-as). Um trabalho manual imenso, quase diria “insano”, mas que trouxe notoriedade à marca e é coerente com a economia circular que Rui Lucas defende. “A sustentabilidade económica e social é igualmente importante”, defende. “Além da criação de emprego, o dinamismo do enoturismo tem permitido maior visibilidade e valorização, quer da marca quer desta ‘nano-região’ de Souselas.”
O mercado parece ter vindo a reconhecer não apenas a qualidade e consistência dos vinhos como também a singularidade do projecto, onde o enoturismo tem um papel cada vez mais significativo, beneficiando da proximidade à cidade de Coimbra. No ano que passou, a produção total chegou às 22.000 garrafas, 75% das quais são espumantes. Para além do vinho, há também azeite (e de excelente qualidade!) produzido num lagar da família, ao lado da adega. Para elaborar este azeite, Rui Lucas recorreu às oliveiras centenárias que rodeiam as vinhas. “A palavra Prior remete-nos para a religião, para o divino, para o místico”, remata. “E pretendo ter sempre essa ligação com o nome dos vinhos. Já viu? Vinho, azeite e pão! É tudo divino! Tenho de fazer uma padaria…”.
(Artigo publicado na edição de Junho de 2023)