A Sociedade de Vinhos de Borba foi fundada em 1968 e chegou a ser uma das maiores empresas da região ao longo das décadas seguintes. Como tempo, porém, foi perdendo relevância, entrando lentamente em decadência na viragem do século. Foi preciso um homem de Vale de Cambra vir ao Alentejo para dar uma nova vida à Sovibor. O empresário Fernando Tavares tem as suas raízes no norte do país, onde gere o seu negócio na área de distribuição de vinhos – a Sotavinhos. Teve uma grande ligação a Borba desde há muito e o momento de viragem aconteceu em 2014 com a aquisição da Sovibor. Desde então, com o apoio incondicional de sua mulher, faz semanalmente o trajecto até Borba, para onde se mudou a filha Rita, enquanto gestora enóloga residente. A consultoria enológica é confiada ao experiente António Ventura; e Luís Sequeira é responsável pela gestão administrativa e comercial.
Desde o início Fernando sonhou seguir a tradição alentejana de produzir vinhos em talha. Dedicou-se a investigar localmente as práticas ancestrais e eliminou desde logo a possibilidade de usar talhas revestidas de epoxy, porque são completamente estanques, “é como fazer o vinho em inox”, refere. Prefere talhas revestidas com pez louro (uma mistura de resina de pinheiro, cera de abelha e azeite), que permite uma troca gasosa muito doseada.
Quando o projecto se iniciou, não havia talhas na Sovibor. Hoje tem uma das maiores adegas de talhas no Alentejo, contando com 85 ânforas de vários tamanhos, muitas delas centenárias, fabricadas, sobretudo, em S. Pedro de Corval.
Na região de Borba, a Sovibor trabalha cerca de 200 hectares de vinha própria ou em parceria com viticultores locais. Os vinhos da gama Mamoré da Talha têm origem, exclusivamente, nas vinhas de sequeiro com idade superior a 50 anos, localizadas sobretudo na zona de Orada. Dão 1-1,5 kg por cepa. As uvas são vindimadas e vinificadas por parcela, pisadas a pé em pequenas tinas de inox de 200-300 kg e a fermentação na talha é feita com 40% a 60% do engaço. Quando a fermentação (com leveduras indígenas) se inicia, fazem-se calcamentos diários para homogeneizar as massas e impedir a sua compactação na boca da talha. Embora o regulamento do DOC Alentejo Vinho de Talha permita “abrir” as talhas a partir do dia de S. Martinho (11 de Novembro), a Sovibor mantém o vinho nas talhas até Março, deixando o Inverno passar por ele. As massas assentam no fundo da talha e servem de filtro natural, quando o vinho é retirado por uma torneira na base da ânfora. Volta para a mesma talha e o processo é repetido até que o vinho, saia completamente limpo. Este ano, a Sovibor adicionou uma novidade absoluta na região – a primeira aguardente bagaceira elaborada a partir de bagaços frescos de uvas tintas vinificadas em talha. Depois de uma dupla destilação, feita num majestoso alambique pacientemente reconstruído por Fernando Tavares, demorou dois anos a desdobrar o álcool até aos 46% de teor alcoólico final. Foram produzidas apenas 1800 garrafas.
A arte da pesgagem
A pesgagem é um processo de revestimento de talhas com uma mistura de pez louro (resina de pinheiro), cera de abelha e azeite que permite a sua impermeabilização. A receita pode variar em percentagem dos ingredientes, influenciando mais ou menos o perfil organoléptico do vinho; e normalmente as talhas para vinho branco não são usadas para fazer vinho tinto. Nesta operação extremamente artesanal e pesada estão envolvidas várias pessoas. Primeiro uma talha vira-se de boca para baixo em cima de uma estrutura com fogo aberto. Quando é aquecida, coloca-se de lado e depois de bem limpa por dentro, unta-se o interior com a tal mistura impermeabilizante natural. Finalmente, rola-se a talha para uniformizar tudo.
Uma prova inédita
Tradicionalmente, os vinhos feitos em talhas, quer brancos quer tintos, bebiam-se novos, a partir do momento em que eram “abertas” as talhas, na altura de S. Martinho. Não eram considerados vinhos de guarda. Por isso, uma prova de vários tipos de vinhos de talha, de diversas castas, brancos e tintos, produzidos desde 2016, é extremamente curiosa e didáctica. O resultado das muitas experiências efectuadas por Fernando Tavares mostrou que os vinhos de talha podem evoluir perfeitamente em garrafa quando são bem-feitos; e também que nem todas as castas se adaptam bem à vinificação em talha.
Nos brancos começámos com o Mamoré da Talha branco 2016, um blend de castas típicas da região – Antão Vaz, Rabo de Ovelha e Tamarez. Com uma cor dourada/âmbar no nariz lembra laranja e casca de laranja, tangerina, notas florais e de pólen, maçã, marmelo e ervas aromáticas. Um vinho muito seco, com frescura e salinidade, um leve amargo que refresca e fica bem neste contexto. (17). O 2018 da mesma vinha apresentou uma acidez mais pronunciada, notas de nêspera e marmelo, muita tangerina e laranja, alperce e pêssego. Muito fresco, vinho com grande textura e amplitude. (17,5). O Talha da Rita 2018 feito maioritariamente de Antão Vaz da vinha velha de sequeiro com 10% de Arinto de uma vinha com 25 anos. É mais resinoso com mais barro no nariz. Dourado na cor, revela notas de marmelo e ananás salgado. Com teor de álcool de 15% e incríveis 7 g/l de acidez tem corpo, equilíbrio, textura e frescura, com tanino e força. (18)
Passando para os tintos, primeiro avançámos com o Petroleiro, um palhete da talha. Às castas tintas da tal vinha velha com Trincadeira, Moreto, Carignan e Castelão juntam-se 30% de castas brancas de Antão Vaz e Rabo de Ovelha. O 2016 apresentou cor granada atijolado. Delicado e delicioso com morango e flores no primeiro impacto aromático, evoluindo muito bem no copo, doce de morango e framboesa, figos frescos e goiaba. (17). O 2018 das mesmas parcelas surge ainda com mais frescura. Aroma mais intenso e balsâmico, notas de carne e ervas aromáticas. Cresceu imenso no copo, deixando transparecer notas florais e fruta mais delicada como a framboesa. Textura macia com bom corpo e muito sabor. (17,5).
Seguiram os blend de castas tintas e monovarietais também feitos em talha, que foram parte de uma experiência inicial para aprender como as diferentes castas se comportam neste processo de vinificação. Para além da tradicional Moreto, aparecem Syrah, Touriga Nacional e também Carignan, casta que, não tendo muito protagonismo, se encontra presente no Alentejo já há cerca de um século, sobretudo nos encepamentos antigos.
O 2016 é um blend de Moreto, Carignan, Trincadeira e Aragonez. Fruta vermelha, nota vegetal a lembrar pasta de tomate e certa evolução. (16,5). O 2018 estava mais fechado no nariz e com mais cor. Mentolado e floral, com fruta vermelha e tomate seco. Tanino mais presente, boa frescura a disfarçar o álcool de 15%. (17,5). O Mamoré da Talha Moreto 2018 revelou a extraordinária afinidade da casta com talha. Muito aberto na cor, mentolado, com ervas aromáticas, caruma e compota de framboesa, finesse e sedosidade, reunindo todo o carácter da tradição. (18,5). O Syrah 2018 feito em talha é algo inédito. Faz parte de uma vinha com mais de 30 anos, também de sequeiro. Cor granada bastante intensa, bem vivo e fresco com notas de chá preto, cereja, amora e mirtilo, pimenta preta, carne, eucaliptos. Tanino intenso, textura sedosa e com muito sabor. A casta afirma-se para além da talha, mantendo-se como um belíssimo Syrah cheio de carácter. (18)
Do ano 2019, o blend de Moreto, Carignan, Trincadeira e Aragonez apresentou-se com fruta vermelha e preta, mentol, bem vivo, belíssimo, vibrante e cheio de força e presença. (18,5). O monovarietal de Moreto 2019 funciona invariavelmente bem e confirma que a casta parece que nasceu para ser trabalhada em talha. Rubi de média intensidade, nariz expressivo com manjericão, geleia de framboesa, fruta intensa entrelaçada com leves notas resinosas. Envolvente, com enorme personalidade. (18,5). O Touriga Nacional 2019 evidenciou uma história diferente. A casta marca mas, ao contrário de Syrah, não alinha com talha. Sobressai com muita pimenta, especiaria, mirtilo, bergamota, deixando uma secura no final de boca. Não deixa de ser um bom vinho, mas não é um exemplo de excelência de Touriga, nem de um vinho de talha. (17). O Syrah 2019 destaca-se pela óptima acidez, estrutura e força, firmeza de tanino. (18). O Carignan 2019 veio com fruta vermelha, alguma ferrugem, ervas aromáticas a lembrar tomilho e estragão, caruma. Cheio de tanino, corpo e força, mas menos longo do que os vinhos anteriores. (17,5).
Provamos também amostras de cuba de 2022, retiradas das talhas em março. O branco blend surgiu com aroma mais delicado, salino e doce ao mesmo tempo. Marmelo, nêspera, fisális. Muita secura de tanino presente e frescura graças à acidez pronunciada, quase bone dry na percepção. O tinto de blend explodiu com fruta extremamente fresca, uma nuance de banana e de rebuçado de morango, mentolado. Tanino apertado, tudo com equilíbrio. O Moreto, fiel a si próprio, com aquela típica rusticidade intelectual. Morango selvagem, framboesa, mentolado, fresco, fino de tanino com óptima acidez. E depois, com mais calma, e no meio da vinha, provámos os agora lançados Mamoré da Talha de 2021.
No conjunto, o dia “Talha com Tradição”, proporcionado pela Sovibor, foi uma fascinante janela aberta para um mundo singular de aromas e sabores. E tornou-se também uma dupla lição: aprendemos que os vinhos de talha, quando nascem bem, envelhecem com nobreza; e que uma família do Norte pode ser excelente guardiã da mais antiga tradição vinícola alentejana.
(Artigo publicado na edição de Junho de 2023)