Tecnicamente é a fruta do tomateiro, porque tem origem nos ovários da flor e transporta as sementes da própria espécie. Em termos culinários, é um legume, com aplicações que o colocam na base da alimentação de todo mundo. Senhoras e senhores, o indispensável tomate.
TEXTO Fernando Melo
FOTOS Ricardo Palma Veiga
A língua asteca clássica baptizou-o como “tomatl” e assume-se que tem origem na América do Sul, a mesma terra de prodígios onde foram originalmente domesticadas leguminosas como o feijão, tubérculos como a batata e cereais como o milho. Foi no sul do México que o milagre multiforme aconteceu, a nós mediterrâneos chegou-nos pelos colonos espanhóis e pelo intrépido aventureiro Marco Polo.
Tem por isso um duplo baptismo no Velho Continente, apesar de quase todos os países lhe chamarem tomate, o mesmo que os americanos, corruptela americana do nome original nos nativos mexicanos. A excepção a fazer é justamente a que toca aos italianos: Marco Polo deu primeiro com o tomate amarelo brilhante e chamou-lhe maçã dourada, que em italiano da época se dizia “pomo d’oro”. Corruptelas sequenciais deram no nome definitivo “pomodoro”, que é ainda hoje tomate em italiano. O irrequieto mercador de Veneza fez as suas viagens e descobertas no séc. XIII, três séculos antes de Colombo na América, onde terá acontecido o primeiro contacto.
A cozinha portuguesa mais antiga não tem tomate nos receituários, apenas aparece depois de Colombo, mas algum contacto anterior há-de ter existido. Marco Polo, de resto, não deve ter ficado propriamente fascinado pelo tomate, ele que fez os primeiros negócios da China. Sem olhar de forma utilitária e renunciando à lógica estrita do saque, todos os citrinos são originários daquela terra distante, quando hoje nem a fabulosa cozinha francesa os dispensa. Se estivermos de frente para o mapa-mundo, seja em que escala for teremos sempre rodar a cabeça para ver a origem do tomate e da laranja. É uma história impressionante que resumo algum consegue transmitir devidamente. Aproveitemos então esse facto e concentremo-nos no tomate.[vc_row type=”in_container” full_screen_row_position=”middle” scene_position=”center” text_color=”dark” text_align=”left” overlay_strength=”0.3″ shape_divider_position=”bottom”][vc_column column_padding=”no-extra-padding” column_padding_position=”all” background_color_opacity=”1″ background_hover_color_opacity=”1″ column_shadow=”none” column_border_radius=”none” width=”1/2″ tablet_text_alignment=”default” phone_text_alignment=”default” column_border_width=”none” column_border_style=”solid”][vc_column_text]A um tempo fruto e legume
Ocupa um majestoso quinto lugar no elenco dos alimentos que mais água contêm, com a percentagem impressionante de 94,5%. Só perde para o pepino, o primeiríssimo da lista com 96,7% de água, alface (95,6%), aipo (95,4%) e rabanete (95,3%). Numa outra vertente, há que considerar os cerca de 15 gramas por quilo que o tomate apresenta de açúcares, na maioria frutose. Nada a ver com os três frutos mais ricos em açúcar, que são a banana (22%), a uva (18%) e o figo (16%), mas que mesmo assim não são despiciendos. Configuram aliás o tomate como alimento inteiro e fácil de integrar nos hábitos alimentares diários.
Este seu lado de fruto faz dele ingrediente directo de preparações como o gaspacho andaluz, que nos rigores da canícula é de ter sempre no frigorífico. Paliativo da sede, alimenta e satisfaz. É a preparação mais simples que se pode fazer a partir do tomate, o gaspacho, mas não lhe devemos acrescentar açúcar, que é o que se faz em toda a parte. Pior ainda, por questões práticas muitos recorrem a concentrados enlatados de tomate, quando por muito bem que lhes possa saber o gaspacho produzido, contêm nunca menos de 50 g/kg, para não falar do glutamato monossódico e do sódio que estão presentes. Mesmo o tomate pelado é alimento a evitar, melhor é partir de bom tomate, fazer em quantidade apreciável e congelar em porções prontas a utilizar.[/vc_column_text][/vc_column][vc_column column_padding=”no-extra-padding” column_padding_position=”all” background_color_opacity=”1″ background_hover_color_opacity=”1″ column_shadow=”none” column_border_radius=”none” width=”1/2″ tablet_text_alignment=”default” phone_text_alignment=”default” column_border_width=”none” column_border_style=”solid”][image_with_animation image_url=”27880″ alignment=”” animation=”Fade In” border_radius=”none” box_shadow=”none” max_width=”100%”][/vc_column][/vc_row]Destino nobre a dar ao mais nobre tomate é confitá-lo. O termo vem do francês “confit”, que em rigor designa a conserva pela transformação dos açúcares contidos num alimento. A fruta dita cristalizada bebe da mesma nascente e talvez por isso passou também a falar-se por exemplo de confitar bacalhau em azeite, ou uma coxa de pato na sua própria banha. De certo modo, é uma referência à baixa temperatura a que o processo decorre, entre os 63ºC – limiar de cozedura de proteína animal – e os 100ºC – temperatura de ebulição da água.
A arte da confeitaria segue princípios semelhantes e a preocupação original é a do processamento do açúcar. Está por isso associada à pastelaria e é uma arte totalmente à parte daquela que visa a preparação e processamento de alimentos para a refeição. Há, contudo, que ter coração e admitir que é maravilhoso o que acontece a um bom tomate quando confitado a 80ºC em seis horas: não só evapora bastante água como também altera a estrutura do legume-fruto, tornando-o cremoso e apto a integrar pratos de grande recorte culinário.
A outra declinação transformadora do tomate inteiro de grande vulto é a secagem. Deixa-se ficar o açúcar – frutose – intocado e evapora-se a água. À maneira da passa de ameixa, uva, tâmara ou alperce, reserva-se para comer à peça, em saladas ou integrada em cozinhados. O prato notável que é o robalo com laranja, criado pelo chef Miguel Castro e Silva nos anos 90, assenta fortemente no tomate seco como ingrediente, que impregna depois com laranja. Face à contemplação do mapa-mundo atrás sugerida, traz para Portugal o ponto de convergência entre a América, com o tomate, e a China, com a laranja. Não foi seguramente com essa intenção que foi concebido, mas é verdade que o talento dos cozinheiros portugueses e a nossa história alimentar rapidamente fazem dos cantos do mundo uma massa apenas. Nesse sentido, pode e deve considerar-se o tomate como ingrediente básico da nossa cozinha, além de grande aliado do vinho, através das muitas preparações que oferece.
[vc_row type=”in_container” full_screen_row_position=”middle” scene_position=”center” text_color=”dark” text_align=”left” overlay_strength=”0.3″ shape_divider_position=”bottom”][vc_column column_padding=”no-extra-padding” column_padding_position=”all” background_color_opacity=”1″ background_hover_color_opacity=”1″ column_shadow=”none” column_border_radius=”none” width=”1/1″ tablet_text_alignment=”default” phone_text_alignment=”default” column_border_width=”none” column_border_style=”solid”][vc_gallery type=”image_grid” images=”27877,27873,27879″ layout=”3″ gallery_style=”1″ load_in_animation=”none”][/vc_column][/vc_row]Metamorfoses culinárias
A primeira perplexidade da ligação do tomate com o vinho é também a mais elementar. Pegue em dois tomates, um verde outro bem maduro e corte uma fatia grossa de cada, de um lado ao outro. Alinhe dois vinhos para esta prova, por exemplo um Loureiro da região dos vinhos verdes e um Arinto alentejano sem madeira. Ambos adoram tomate, mas é notável como o vinho do norte vai deter-se mais no tomate verde, recombinando e criando impressões de frutos secos na boca, enquanto o tomate maduro vai abraçar com força o branco alentejano resultando numa combinação copiosa e sedutora.
Agora deite flor de sal de boa qualidade em cada uma das rodelas e volte a provar. Com esta operação simples, está a estimular a componente mineral e o grupo de amargos de cada vinho. Os vinhos vão por isso falar mais dos solos e clima donde provêm. Se tiver possibilidade, corte mais uma fatia de cada tomate e em vez de sal deite açúcar. Aqui não queremos estragar a surpresa, porque vai ser grande.
Estas pequenas experiências domésticas são simples e servem para nossa própria orientação. Os nossos fundos de cozinha para sopas, ensopados, caldeiradas e estufados levam normalmente azeite, cebola, alho e sal, acrescidos de ervas aromáticas secas ou frescas, bem como tomate. A forma como se integra este e se deixa andar com os cozinhados determina o tipo de ponte vínica que vai requerer.[vc_row type=”in_container” full_screen_row_position=”middle” scene_position=”center” text_color=”dark” text_align=”left” overlay_strength=”0.3″ shape_divider_position=”bottom”][vc_column column_padding=”no-extra-padding” column_padding_position=”all” background_color_opacity=”1″ background_hover_color_opacity=”1″ column_shadow=”none” column_border_radius=”none” width=”1/2″ tablet_text_alignment=”default” phone_text_alignment=”default” column_border_width=”none” column_border_style=”solid”][vc_column_text]Há uma razão primordial para nos pratos de cozedura longa de caça ou capoeira o vinho branco novo deixar de conseguir acompanhar; é a cozedura do tomate. Nada como experimentar. Comece com um tomate escaldado por imersão por um par de minutos num tacho com água a ferver em cachão. Tire-o para fora, pele-o, e abra. A prova neste momento não é muito diferente da do tomate cru, mas a estrutura é outra e o Loureiro pode já não gostar muito de brincar. O Arinto estará bem. Corte um bocado em cubos e leve-os a saltear em azeite. Agora o vinho vai parecer-lhe curto, o tomate pede mais. Experimente dar-lhe um Arinto com madeira, e tudo muda.
Numa segunda fase, prepare um refogado com azeite, cebola, alho e louro e o tomate aos cubos sem pele nem grainhas. Experimente com um branco com madeira e um tinto sem madeira, lado a lado. Provavelmente vai começar a preferir o tinto. Se lhe juntar aromáticos como louro, salsa e pimenta e deixar andar em lume brando por quinze minutos, o branco começa a não conseguir interagir e vamos sentir falta de um tinto com mais corpo ou mais velho. É este fenómeno que muitas vezes nos leva a optar por tintos para acompanhar caldeiradas, mesmo quando se trata de bacalhau.
Quando se trata de harmonizar vinho com comida, o dogma e o preconceito têm de ficar à porta, importante é a ligação do vinho com a comida e o prazer que ambos nos podem dar.[/vc_column_text][/vc_column][vc_column column_padding=”no-extra-padding” column_padding_position=”all” background_color_opacity=”1″ background_hover_color_opacity=”1″ column_shadow=”none” column_border_radius=”none” width=”1/2″ tablet_text_alignment=”default” phone_text_alignment=”default” column_border_width=”none” column_border_style=”solid”][image_with_animation image_url=”27882″ alignment=”” animation=”Fade In” border_radius=”none” box_shadow=”none” max_width=”100%”][/vc_column][/vc_row]
Edição Nº14, Junho 2018