A Touriga Franca está na moda. Ainda que ligada sobretudo ao Douro, de norte e sul do país a sua área de vinha tem crescido enormemente nos últimos anos, estando à beira de ser a casta tinta mais plantada em Portugal. Tem tudo a seu favor, na vinha e na adega. E uma estória fantástica que poucos conhecem.
TEXTO João Afonso FOTOS Ricardo Palma Veiga e cortesia dos produtores
CHAMADA Touriga Francesa durante largas décadas, a casta passou no final do séc. XX a Touriga Franca, para que a sua origem não fosse erradamente relacionada com França. Em termos vitícolas é muito resistente ao oídio e ao míldio (com o senão de atrair a traça da uva), produz sempre bem e com muita qualidade. E representa uma das poucas castas portuguesas que agrada simultaneamente ao viticultor e ao enólogo.
Tem uma característica peculiar. Em uva não sabe a nada e em vinho sabe a tudo. É uma alquimia difícil de explicar, mas assim acontece. A uva tem muito pouco sabor quando provada do cacho, mas o vinho tem bastante intensidade e qualidade de aromas e sabores.
É também uma casta termófila, que necessita de muito calor para amadurecer convenientemente as suas uvas. O Vale do Douro é o ‘terroir’ do seu fenótipo. Ali nasceu esta uva e se foi moldando à terra e ao clima. Contudo, hoje espalhada por todo o país, origina igualmente excelentes resultados em zonas similares ao Douro, mais quentes e secas. Os vinhos que produz são em geral fortemente estruturados, juntam elegância, complexidade e solidez, respeitam o ‘terroir’ e revelam grande potencial para crescer em garrafa. Por tudo isto, não espanta que a Touriga Franca seja querida por um cada vez maior número de produtores, dentro e fora do Douro.
“A Touriga Franca é uma casta que saiu melhor do que os pais”, como muito bem resume António Magalhães, viticólogo da empresa Fladgate Partnership, uma das maiores casas exportadoras de Vinho do Porto (Taylor’s, Fonseca, Croft, etc.). A frase aparentemente enigmática deste prestigiado técnico duriense, explica-se com uma estória que ele conhece melhor do que ninguém.
Nascida em tempos difíceis
As palavras são minhas, mas a estória foi-me contada por António Magalhães, com quem tenho trocado longas e entusiásticas conversas acerca da Touriga Franca.
O nascimento da Touriga Franca deve-se à perseverança humana. A perseverança do viticultor duriense da segunda metade do séc. XIX, na busca de soluções para a devastadora praga da filoxera.
Não é necessário grande esforço de imaginação para sentirmos a angústia dos viticultores durante as décadas de 70 e 80 dos anos de 1800. Era como se hoje chegássemos ao Douro e deparássemos com a mortandade generalizada dos vinhedos deste Património Mundial da Humanidade. Visão apocalíptica que grassava por toda a Europa vinhateira levou a que governos, instituições, estudiosos e curiosos juntassem esforços para tentar fazer frente ao insecto que mordia e infectava as raízes das videiras, precipitando-lhes a morte.
Em França, país líder dos estudos anti-filoxera, a escola de hibridação de Alexis Millardet e Georges Couderc (mais tarde, em 1893, feitos Comendadores da Ordem de Cristo pelo nosso Rei D. Carlos) desenvolve cruzamentos entre espécies americanas e europeias para encontrar plantas produtoras de boas uvas e resistentes à praga. De Portugal são escolhidas três castas – Touriga, Mourisco Preto e Moreto – para hibridarem com a Vitis rupestris (da qual a sub-espécie rupestres du Lot seria um dos principais porta-enxertos americanos a serem adotados pelo Douro e pela viticultura portuguesa em geral, na recuperação vinhateira pós-filoxera). Esta escola influenciaria todo o pensar vitícola em Portugal.
Alfredo Allen (1º Visconde de Vilar d’Allen, título criado em 1866 pelo Rei D. Luis I) presidia à Comissão Anti- Filoxérica do reino na época aguda do ataque.
Nos vários estudos e experiências que acompanhava, propunha propagar por semente variedades portuguesas mais resistentes à praga e variedades americanas capazes de produzir um “vinho tolerável”. Mas, acima de tudo, queria promover a hibridação entre estas, de modo a obter novas plantas capazes de resistir à praga.
No moroso decorrer dos trabalhos, A. Allen fez notar ainda que a casta Mourisco e a Tinto Cão eram mais resistentes à filoxera. E os seus serviços reproduziram videiras a partir destas sementes. A Alvaraça, outra casta deste Douro antigo, juntou-se-lhes depois nas experiências.
Os “Mouriscos de Semente” de Albino de Sousa
Das poucas castas escolhidas pela investigação portuguesa e francesa para a criação de novas variedades, uma destacava-se de todas as outras – a Mourisco. Além de resistente à praga, era a única que apesar de dioica era funcionalmente monoica e fêmea. Esta peculiaridade tornava-a muito receptiva ao cruzamento com o pólen de outras variedades.
Sabia que…
Um “híbrido” resulta de um cruzamento entre duas espécies. A hibridação continua hoje, orientada sobretudo para a criação de novas castas resistentes às doenças fúngicas do oídio e do míldio
Daqui é fácil “fazer as contas” do pensamento vitícola daquela atribulada época: “Como o Mourisco é mais resistente à praga e como a Touriga é a nossa melhor casta (“the finest” como se lhe referiu o Barão de Forrester nos tempos anteriores à filoxera), há que cruzar o pólen masculino da Touriga com o gineceu feminino da Mourisco.” Daqui nasceram os chamados ‘Mouriscos de Semente’, assim designados desde o seu surgimento, algures entre finais do século XIX e principio de XX. Nascidos da ‘mãe Mourisco’ e do ‘pai Touriga’.
Na frente da luta filoxérica, conviviam duas facções: a da ciência, das instituições governamentais; e a do empirismo, nascida da sensibilidade e a argúcia dos produtores locais. Neste último bastião evidencia-se um lavrador duriense, Albino de Sousa Rebelo, estudioso e autodidacta que, segundo depoimentos verbais e documentais, viria a suplantar os conhecimentos técnicos e científicos das Comissões Filoxéricas, na sua Quinta da Barca (ao lado da Quinta da Romaneira).
António Magalhães tem cópia do passaporte de um jovem Albino de Sousa, de Paradelinha (Sabrosa), que embarcara em 1874 para Marselha, eventualmente em busca dos estudos avançados da escola francesa de hibridação, à semelhança do que fez o Barão de Roeda, John A. Fladgate, dois anos antes. Sensível, inteligente e habilidoso, Albino de Sousa é referido por Duarte de Oliveira (um dos autores de “Ampelographie: traite génerale de Viticulture” publicado no início de 1900 por Pierre Viala), que lhe atribui o feito de ter criado a casta Tinta da Barca em Paradelinha (Sabrosa), um dos dois “Mouriscos de Semente” que surtiriam dos cruzamentos de Albino de Sousa.
Uma casta que mudou o Douro
A atribuição da criação da Touriga Francesa a Albino de Sousa surge num único testemunho verbal de um vinicultor de Soutelo do Douro, Manuel Russo, que “o confessou, faz anos, em modo testamentário ou em desafio missionário” a António Magalhães e David Guimaraens, convidados para a festa do seu octogésimo aniversário. Segundo Manuel Russo (já falecido), foi Albino de Sousa quem criou a Touriga Franca (Francesa naquele tempo). O êxito vinícola alcançado por estes ‘Mouriscos de Semente’ na reconversão vitícola do Douro pós-filoxérico foi decisivo na definição do portfólio varietal do novo Douro, como o comprovam, por exemplo, e de modo perentório, as parcelas de vinha velha do Pulverinho e da Renova do Depósito da Quinta de Vargellas.
O cruzamento entre variedades: quando a videira se encontra em floração retira-se a caliptra (órgão protector do aparelho reprodutor da flor da videira) e polvilha-se o gineceu da flor (casta) “mãe” com o pólen da casta “pai”. Depois protegem-se as frutificações com sacos de malha muito fina. Dos bagos que nascem e amadurecem retiram-se as grainhas ou sementes, que mais tarde se semeiam e delas nasce a nova planta que poderá sair mais à “mãe”, ou mais ao “pai”, ou a nenhum deles. É por causa desta enorme incerteza que as videiras se propagam sempre por estaca e nunca por semente.
Os nomes por que são hoje conhecidos estes ‘Mouriscos de Semente’ só décadas mais tarde viriam a ser definidos. A família de Albino de Sousa Rebello caiu em desgraça durante a década de 30 de 1900 por escândalo de adulteração de vinho nos seus armazéns, acompanhado por trágica revolta do povo que incendiou os edifícios, levando inclusiva e eventualmente ao suicídio de um dos seus filhos. Sem descendência (nenhuma das suas três filhas teve filhos) e carregando o peso da ignomínia, a família foi esquecida e afastada dos anais da história vitivinícola do Vale do Douro, para a qual tanto parece ter contribuído. Ainda que sem provas conclusivas, tudo indica na verdade que a ele se deverá a criação das variedades Tinta da Barca e da Touriga Francesa, hoje Touriga Franca.
As castas terão perdido o nome de ‘Mouriscos de Semente’ por volta da década de 40, eventualmente na época de Álvaro Moreira da Fonseca, e uma delas, “a que saiu ao pai” passou a chamar-se Touriga Francesa (provavelmente em homenagem à Escola de Hibridação Francesa que tanto inspirou os trabalhos de investigação em Portugal), para a distinguir da Touriga (que, entretanto, tomou o apelido de “Nacional”). E o outro Mourisco “que saiu à mãe”, por força do “povo”, tomou o nome de Tinta da Barca, porque veio da Quinta da Barca, onde ganhou protagonismo regional, ainda que Duarte de Oliveira tentasse batizá-la, mas sem sucesso, como “Albino de Sousa”.
E aqui fica mais uma prova de que tantas vezes as desgraças do presente melhoram o futuro. A filoxera mudou o Douro. Não temos memória do Douro antigo e nunca poderemos medir se perdeu ou ganhou com a filoxera, mas uma coisa é certa: o desastre vitícola levou à criação da Touriga Franca, uma das melhores castas tintas portuguesas.