Trafaria: um sucesso comprovado

A companhia certa, bons vinhos, animação cultural e um panorama espantoso das colinas de Lisboa. O Trafaria (Com)Prova tem tudo o que é preciso para garantir uma experiência muito especial. E esta terceira edição foi tudo isso e muito mais.

TEXTO Luís Francisco
FOTOS Ricardo Palma Veiga

Há aqui uma senhora com um problema. “Preciso daquela coisa de Setúbal…”, lança para o grupo de familiares que a acompanha. “Choco frito?”, desconversa o filho. “Não, pá, o vinho. Aquele docinho…” Por entre gargalhadas, o jovem lá se dirige a uma das bancas e regressa com o cobiçado Moscatel de Setúbal. E foi assim no passeio marítimo da Trafaria, nos dias 1, 2 e 3 de Junho, durante o Trafaria (Com)Prova, evento organizado pela Câmara Municipal de Almada e com produção da Grandes Escolhas. Muita gente, belos vinhos e boa disposição.
Durante três dias, e mesmo com a meteorologia a mostrar-se pouco de acordo com o calendário, mais de 13.500 pessoas deslocaram-se ao recinto da feira de vinhos e petiscos, onde três dezenas de produtores deram a provar os seus néctares. Reforçando uma tendência cada vez mais evidente neste tipo de eventos, o público (com presença cada vez mais notória de turistas estrangeiros) confirmou o interesse nos vinhos adquirindo garrafas directamente nos stands – fosse para levar para casa, fosse para abrir e degustar ali mesmo, com amigos e família, numa das mesas instaladas no local.
Foi isso mesmo que fez Helena Rodrigues, 42 anos, profissional de seguros, “apanhada” a sair do balcão da Herdade das Servas com uma garrafa… “Fizemos umas provas, agora decidimos comprar uma garrafa para podermos petiscar à vontade.” Helena estava “atenta” e confirmou no Facebook as datas para regressar a um evento onde já tinha marcado presença no ano passado. E mais não disse, porque as amigas, já sentadas, reclamavam a sua presença. E do vinho, suspeitamos.
Entretidos nas provas estavam Diogo e Katrine, ele de 26 e ela de 23 anos, que se estreavam no Trafaria (Com)Prova. Ela é de Portimão, ele de Leiria, viviam em Lisboa até há pouco tempo, desde Janeiro estão na Costa de Caparica. Avisados por amigos, foram à descoberta. E não estavam desiludidos: “Muito giro, é um bom evento.”
O vento soprava fresco, na tarde de sábado, mas com um casaquinho pelas costas ninguém arredava pé. À medida que a tarde avançava, mais gente ia chegando e o recinto enchia-se de brindes e conversas cruzadas. “Diz ali WC 50 cêntimos!”, admirava-se uma jovem. “Olha, dá-me dois”, disparou um dos elementos do grupo que a acompanhava. Há reencontros que são surpresas – “Olha-me este miúdo… Estás tão grande!” – e outros que nem por isso: “Eh pá, só te apanho nestas coisas!”

Vinho, cultura e entretenimento

Ao fim da tarde, os andarilhos que por ali pairam em fato de banho arcaico às risquinhas amarelas – bóias debaixo do braço e ele ostentando uma bigodaça bem característica dos tempos em que a Trafaria surgiu como destino de praia de muitos lisboetas (na viragem do século XIX para o XX, como se pode apreciar na exposição patente no edifício do presídio) – já mal conseguem passar pelo meio da multidão. Sempre que têm ocasião, interpelam as pessoas para diálogos bem-humorados. Há miúdos que nem querem acreditar naquela visão de gigantes desengonçados.
A coisa torna-se ainda mais animada sempre que passa por ali a Almada Street Band, que vai interpretando clássicos pop-rock em ambiente dixieland. A certa altura, cansados decerto de andarem de trás para a frente, e sem cederem ao conforto do palco instalado num dos extremos do recinto, os músicos formam uma roda e abancam mesmo ali no meio. Há quem dance de copo na mão.
Saindo desta animação, um percurso de menos de 100 metros leva-nos ao antigo Presídio Militar da Trafaria, onde se realizaram as provas comentadas e estão patentes algumas exposições. Antes de lá chegar, porém, há miúdos e graúdos que se entretêm com antigos jogos populares ao longo do caminho. Nas paredes, painéis falam do vinho e das vinhas em Almada. No século XIX ainda eram uma actividade pujante; depois, a filoxera, a mudanças nos mercados e a pressão urbanística ditaram o seu declínio.
Entramos no presídio e, por entre dragoeiros e árvores-da-borracha, sabe bem o silêncio, que convida à fruição das mensagens artísticas por ali semeadas, a começar por uma exposição de fotografias de Luís Ramos. Lá dentro, nas celas e corredores marcados por um passado cheio de histórias, ouvem-se testemunhos de antigos presos, incluindo o “capitão de Abril” Vasco Lourenço. Na capela, que é também sala de provas, as imagens que dão corpo à exposição “Ir a banhos” mostram como era a zona e a sua frequência há mais de um século, quando as paróquias de Lisboa levavam as crianças pobres da cidade a banhos. Na Trafaria, pois então.
A banhos, ninguém terá ido lá fora, que o início de Junho não facilitou, mas havia miúdos a jogar à bola no areal, por entre as embarcações de pesca artesanal, e adultos que se aventuravam em breves caminhadas junto à linha de água, arisca devido à ondulação levantada pelo vento. O sol caminhava para a linha do horizonte e o panorama de Lisboa em contra-luz, na outra margem, era sublime.
Já no caminho para o cais de embarque da Transtejo, para apanhar o barco de regresso, ouve-se outro desabafo: “Ó pá, foi bem fixe! Devia haver mais feiras de vinho.” Pela nossa parte, totalmente de acordo.
Esta foi a primeira edição do Trafaria (Com)Prova sob a tutela do novo executivo camarário, liderado por Inês de Medeiros. A aposta no evento manteve-se e sai reforçada com o balanço “bastante positivo” que a autarquia faz do que viu e sentiu nos dias 1, 2 e 3 de Junho.
“A feira já começa a ter alguma implantação, as pessoas vão passando palavra. E as alterações na organização que pusemos em prática, nomeadamente a redução do horário, foram do agrado dos produtores, que esgotaram, em provas e vendas, os stocks que tinham levado para o evento. Notámos uma presença cada vez mais notória de turistas estrangeiros e sábado foi o dia de todos os recordes.” Paulo Pardelha, director do Departamento de Planeamento Urbanístico e Desenvolvimento Económico da Câmara Municipal de Almada, realça as virtudes mais óbvias da terceira edição do Trafaria (Com)Prova, mas faz questão de salientar os efeitos estruturais da iniciativa: “Esta consolidação do evento está a afirmar a Trafaria como sítio de visita e a atrair gente e investimento. Há cada vez mais edifícios reabilitados ou em processo de reabilitação, os proprietários dos restaurantes estão muito satisfeitos e a feira afirma-se com um perfil global, não apenas uma iniciativa ligada ao vinho, mas também à cultura e ao lazer – no sábado, por exemplo, o Dia Mundial da Criança serviu de pretexto para instalarmos jogos tradicionais.”
Inaugurada pela presidente da Câmara Municipal de Almada, Inês de Medeiros, e com afluência recorde de público, a terceira edição do Trafaria (Com)Prova já deixa saudades em todos os que nela participaram.

Edição Nº15, Julho 2018

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