Editorial da edição nrº 98 (Junho de 2025)
Um amigo de há bem mais de uma década, oriundo destas andanças dos vinhos, norte-americano, master sommelier e formador nesta área, chamou-me a atenção, durante o nosso mais recente encontro, para algo em que, confesso, nunca tinha pensado ou, melhor, não tinha pensado nesses termos. Disse-me ele: “Já pensaste que quando um produtor coloca o seu vinho numa caixa e deixa essa caixa partir para o mundo, perdeu de imediato o controlo sobre o produto que leva o seu nome? É que o resultado do seu investimento e do seu esforço fica a partir daí dependente de um imenso conjunto de factores que não domina e que não dependem de si: comportamento da rolha, condições de transporte e armazenagem, temperatura de serviço, momento de consumo, harmonia com a comida. Acreditar que vai tudo correr bem e que o destinatário do vinho vai apreciá-lo na sua plenitude é um verdadeiro ‘salto de fé’.” Aqui ele utilizou a expressão da língua inglesa “leap of faith”, que significa, basicamente, acreditar em algo sem ter qualquer motivo racional para o fazer. Ou seja, portuguesmente falando, “uma fezada”.
Certo é que o meu amigo tem inteira razão. Quantas vezes um ou vários destes factores arruínam ou desvirtuam o fruto do trabalho de um produtor e de todos aqueles que, da vinha à adega, contribuíram para colocar dentro da garrafa algo de tão especial? Curiosamente, o factor de risco habitualmente mais mencionado, a rolha, é o menos culpado. Todos os profissionais que, como eu, provam uma ou duas centenas de vinhos por mês, sabem que os defeitos imputáveis ao TCA diminuíram drasticamente nos últimos quatro ou cinco anos. Já dos problemas no transporte e, sobretudo, na armazenagem no ponto de venda, não se pode dizer o mesmo.
Mas o mais grave, para mim, é o tratamento dado ao vinho em tantos restaurantes, gravidade que parece aumentar nos pontos turísticos das grandes cidades. Nunca deixo de ficar horrorizado com aquilo a que assisto nos restaurantes da zona ribeirinha da cidade do Porto. Desconhecimento total sobre o vinho do Porto, péssima armazenagem, vinhos servidos quentes, maus copos, garrafas abertas há séculos, preços super inflacionados para uma oferta básica. Como é possível que ali, num local privilegiado, com vista para as caves de Gaia, o vinho que dá o nome à cidade seja tão maltratado? E como é que autarcas e organismos certificadores assistem a isto com tanta complacência? Alguém imagina o vinho de Bordéus a ser tratado com tamanha ignorância e desinteresse nos cafés e restaurantes da Place du Marché, em St. Emilion?
Verdade seja dita, nem sempre os próprios produtores respeitam o vinho que fizeram nascer. Por vezes torturado na adega, deixado oxidar em nome de uma suposta tendência minimalista. Por vezes mal apresentado ou comunicado. Ou pior ainda, sacrificado no altar do “cool”. Até há pouco, havia uma absurda moda na fotografia do tema vínico que exigia que o produtor atirasse vinho ao ar, o despejasse em cima da cabeça ou nele tomasse banho. Que coisa tão provinciana, à custa de tanto querer ser moderna!
Nesta matéria, convenhamos, franceses e italianos dão-nos lições. Ali a cultura do vinho de qualidade é muito antiga e alicerçada noutros valores, onde sobressai um público respeito pelo vinho, sempre encarado como algo de especial (mesmo que seja vulgar!). Gostava de ver um fotógrafo atrever-se a sugerir a um produtor borgonhês ou toscano que abrisse a torneira de uma cuba para se encharcar em vinho, com o argumento de que dava uma boa foto. Gostava de assistir ao escândalo que um produtor bordalês ou piemontês faria ao ver o seu vinho tratado ao pontapé num restaurante. Nestas e noutras coisas, não há nada como aprender com quem sabe. L.L.