A pressão imobiliária na praça mais asiática de Portugal ainda não conseguiu expulsar as comunidades de indianos, chineses e bengalis que ali se estabeleceram há muito. Graças a Deus, a Alá e aos homens.
TEXTO Ricardo Dias Felner
FOTOS Ricardo Palma Veiga
Durante muito tempo, os chefs mantiveram o segredo. O Martim Moniz era um oásis de produtos de loja gourmet vendidos a preços de mercearia. No supermercado chinês Hua Ta Li, num domingo de manhã, podíamo-nos cruzar com duas ou três celebridades da alta-cozinha, de Henrique Sá Pessoa a André Magalhães. Na altura, há mais de dez anos, os chefs eram dos únicos ocidentais que se misturavam com chineses em volta da vitrina de cabeças de pato assado ou de bao de porco doce. Mas as coisas mudaram.
Hoje em dia, os bao – pãezinhos de trigo e fermento em pó, muito brancos e leves, recheados com carne ou legumes, num molho agridoce – são uma das comidas da moda. Só em Lisboa há uma vintena de restaurantes trendy a servi-los, quase sempre em versões sofisticadas e de fusão. Quando as pessoas trincam a massa fofa, sentadas numa mesa cosmopolita do Chiado, julgam que aquele pão foi feito no momento, ali, mas o mais certo é que tenha vindo da arca dos congelados de um supermercado chinês do Martim Moniz — e só o recheio seja de produção própria.O mesmo acontece com muitos outros produtos. Há dias, num desses restaurantes asiáticos geridos por pessoas criadas nas Avenidas Novas, aconselharam-me para sobremesa uns mochi. Os mochis são uns bolinhos do tamanho de bolas de ping-pong, com uma capa de massa de farinha de arroz e diversos recheios doces: pasta de amendoim, chá verde, feijão azuki. Perguntei se eram feitos ali e garantiram que sim. Sucede que não: os mochi, embora muito bons, eram iguais aos que se compram em caixas no Martim Moniz (e até vinham com o papelinho na base com que são embalados). Dois custaram 4€, preço suficiente para uma dúzia deles no Hua Ta Li.
Nada disto já escandaliza. O fantasma da comida chinesa parece ter-se dissipado, depois da célebre operação da ASAE, em 2006, que levou ao encerramento de 14 restaurantes e lojas. Tanto assim que a comida chinesa voltou a ser cool e, de então para cá, nasceram muitos outros supermercados no Martim Moniz.Um deles foi o Chen, porventura o maior em área. Podemos encontrar lá desde chás matcha até várias marcas de molho picante tipo sriracha, passando por garrafas de litro e meio de soja Kikkoman, até ceboleto aos molhos fresquíssimo, feijão edamame ou a lindíssima curgete roxa.
É aqui que se abastecem muitos dos restaurantes chineses da zona, comprando todos os dias produtos frescos. A beringela roxa, por exemplo, está sempre na ementa de um dos mais extraordinários restaurantes chineses de Lisboa. A primeira vez que lá comi, fui guiado pelo chef André Magalhães, que apelidava o sítio de “cantina chinesa”. Apesar de ficar num rés-do-chão, com porta para a rua, o restaurante não tem um nome oficial, nem os donos falam português suficiente para nos elucidar. Anos depois, quando escrevi sobre o sítio para a revista “Time Out”, recorri a um papel afixado na parede, onde se fazia referência a um proprietário chamado Mi Dai (Calçada da Mouraria, 7). O nome acabou por ficar assim instituído em referências na Internet, mas não há certezas de que seja correcto.
O que é certo é que se come muito bem lá. Actualmente, já lhe dão uma carta em português, mas a forma mais interessante de escolher é abeirar-se da vitrina onde estão expostos produtos frescos, em cru, e apontar para uma travessa. Essa travessa segue directamente para o wok e cinco minutos depois está a comer da melhor comida da região costeira entre Xangai e Cantão. Um banquete, aqui, pode incluir as lulas com pickles de couve, entrecosto frito com alho, barriga de porco cozinhada em soja, edamame e as obrigatórias beringelas roxas cozinhadas com carne picada, feijão, alho e gengibre — tudo regado a cerveja Tsingtsao (também há Super Bock, mas enfim). Para os mais afoitos, também se arranjam coisas exóticas, como medusa e cartilagens de vaca.Caso vá sozinho, o ideal pode ser optar por uma sopa de noodles com vaca e couve pak shoi, que é, por si, uma refeição. A massa, não sendo fresca, é firme e elástica e o caldo é uma explosão aromática, com notas fortes a estrela de anis.
Não estamos, contudo, a falar do típico “clandestino” da área. Aqui os produtos são acima da média e os preços reflectem isso. Não se come por menos de 10€, a não ser que opte pela sopa de noodles (6€).
Pelo mesmo preço, a 50 metros dali tem uma versão diferente destas sopas, uma espécie de ramen japonesa mais rude. Na rua Fernandes da Fonseca, 12, subindo ao primeiro andar vai encontrar do lado direito um cabeleireiro cheio de jovens chineses com capilagem multicolor e do lado esquerdo uma porta aberta. Entre e vá até ao fim, onde verá um balcão de snack bar e uma sala cheia de chineses, com a cabeça enfiada numa tigela, sorvendo coisas. O Pangzi Mianguan faz a massa dos noodles na hora, mas o caldo é um líquido translúcido e saboroso feito da cozedura demorada de ossos. Se só puder escolher uma sopa, vá pela de entrecosto.Mas nem só de comida chinesa se faz a praça. As outras comunidades muito presentes na zona são a hindu (da Índia) e a muçulmana, sobretudo paquistanesa e bengali, do Bangladesh. No Centro da Comercial da Mouraria há três lojas cheias de especiarias, frutas, molhos, farinhas, produtos vindos desta região. Mal descemos as escadas para o piso -1 entramos noutro mundo, com aromas de fábrica de Guangdong misturados com um bazar de Nova Deli.
Do lado sul, num beco curto está o Nita Cash and Carry. Conheci-o há dez anos, quando ali andei às compras com Jesus Lee, o chef do restaurante Jesus é Goês. Era lá que ele se abastecia e percebe-se porquê. Há todo o tipo de especiarias, algumas difíceis de encontrar, como a noz-moscada preta. De resto, só de lentilhas tem uma meia dúzia de variedades, mais malaguetas indianas, farinhas e óleos de todo o tipo, tudo num espaço mínimo com preços condizentes.
Para frescos, todavia, não há como contornar o Popat Store. Há sempre novidades importadas da Índia. Há umas semanas tinham chegado umas favinhas micro, óptimas. E quem quiser fazer achar de manga tem aqui a fruta indicada, também ela micro, como micro são as bananas e as beringelas.Mais uma vez, estes fornecedores não servem apenas as residências periclitantes das comunidades indiana, bengali e paquistanesa espalhadas no eixo Intendente-Mouraria. Há também restaurantes onde os locais comem e que se abastecem aqui. A maioria está espalhada pela Rua do Benformoso, uma via comprida e movimentada, paralela à Rua da Palma, cheia de lojas, que parte do Martim Moniz. Iniciando a rota aqui, seguindo para Norte, até ao Intendente, havemos de encontrar do lado direito o Pho-pu, um dos primeiros restaurantes de Lisboa a servir a célebre sopa phô vietnamita.
Pouco depois, do lado oposto, está o Bangla, o mais procurado restaurante bengali da zona. Aqui, como em todos os restaurantes do Benformoso, come-se com as mãos e a ajuda de pão indiano, uns crepes feitos no momento, excelentes para empurrar os caris da casa. Entre os meus preferidos está o caril de cabrito, mas as alternativas são muitas, com birianis, tikkas e outros clássicos indianos.
O Bangla tem também uma das ofertas mais diversificadas de doces indianos artesanais, também conhecidos por Barfi. São normalmente doces feitos com uma base de leite em pó e farinhas de trigo ou amêndoa ou até de pistáchio. Há outros cafés mais à frente onde poderá comprá-los.
Alguns destes lugares do Martim Moniz mudam de nome como o Ronaldo muda de carro. Mas importa olhar para as vitrinas de comida, seguir os aromas da Ásia no centro de Lisboa. Lembrar que os bao vêm dali.
Ide lá. Já. Mais tarde pode ser tarde.
Edição Nº13, Maio 2018