XXVI Talhas: O legado de Mestre Daniel

Vila Ruiva, a aldeia onde minha mãe nasceu e que deixou ainda adolescente para ir estudar em Lisboa, está ali, a apenas 3 quilómetros. Cresci a ouvir contar histórias das rivalidades entre Vila Ruiva e Vila Alva e dos bailes de sábado à noite numa ou noutra destas povoações do concelho de Cuba, os quais terminavam invariavelmente em pancadaria entre os locais e os “estrangeiros”. A primeira vez que visitei Vila Ruiva foi em 1988 ou 89. Gostei tanto que acabei por comprar e reconstruir uma pequena e velha casa no centro da vila.

Com o tempo e as frequentes visitas, aprendi a amar igualmente as duas aldeias e fiz amigos em ambas. Amigos que, em cada visita, me levavam a tomar uns copos de vinho de talha, acompanhados do imprescindível “petisco”, nas tabernas que há 30 anos ainda existiam nestas localidades. As de Vila Ruiva desapareceram, entretanto. Em Vila Alva, porém, a arte do vinho de talha manteve-se, mais discreta, sem porta aberta, na casa de alguns teimosos que em cada vindima enchiam um ou dois potes. Até que, em 2018, um grupo de jovens resolveu lançar-se “à séria” na produção de vinhos de talha, reactivando uma das mais famosas adegas da vila, a do Mestre Daniel. Cinco anos depois, Vila Alva tornou-se uma referência incontornável nos vinhos de talha do Alentejo, com animação constante ao partir do São Martinho e, cada vez mais, o ano todo.

Talhas mestre daniel
Daniel Parreira , Alda Parreira , Luis Garcia , Samuel Pernicha e Ricardo Santos , produtores de Vinho de Talha na Adega XXVI Talhas .

Daniel António Tabaquinho dos Santos, nascido em 1923, era carpinteiro e, como acontece ainda hoje no Alentejo mais recôndito, o seu jeito para o ofício granjeou-lhe o estatuto de Mestre, algo que se alcança não pelo grau académico, mas sim pelo reconhecimento da população. É o povo que decide se fulano ou beltrano é ou não Mestre. E quando passa a tratá-lo como tal, o designativo fica para a vida, associado ao nome próprio. Mestre Daniel, portanto, fazia a sua carpintaria na adega onde também fazia o vinho, seguindo a tradição familiar. Durante três décadas produziu e vendeu vinho, a partir de 22 talhas de barro de diferentes tamanhos (algumas do século XIX) e 4 talhas de cimento armado construídas nos anos 30, ali mesmo, em Vila Alva. Após o seu falecimento, em 1985, as talhas ainda viram uvas durante alguns anos, mas a adega acabaria por fechar as portas em 1990.

Até que, em 2018, seus netos Alda e Daniel Parreira, decidiram recuperar a tradição e o legado de Mestre Daniel. Para tal, desafiaram outros dois jovens, tal como eles nascidos e criados em Vila Alva e acostumados à “cultura da talha”: o designer Samuel Pernicha e o enólogo Ricardo Santos, este último com um percurso profissional que passou pela Herdade Grande, Califórnia, Nova Zelândia, Malo Wines e Quinta do Carneiro. A eles juntou-se Luis Garcia, marido da Alda, que “ajuda em tudo um pouco” e dinamiza o enoturismo.

“Sempre foi um sonho que tivemos desde a infância”, dizem. “O objectivo, para além de reactivar adega do Mestre Daniel, sempre foi o de promover a nossa aldeia e a grande tradição do vinho de talha, com mais de 2000 anos e que tem vindo a passar de geração em geração até aos dias de hoje. Acreditamos que o vinho de talha pode trazer uma nova vida a Vila Alva.”
Quando se lançaram, em 2018, não faziam a mínima ideia de como o mercado iria reagir. A “onda” do vinho de talha estava ainda no início, pelo que foi com algum receio que fizeram apenas sete ou oito talhas nessa vindima. No ano de 2022 vinificaram já em todas as 26 talhas da adega, enchendo 24 mil garrafas. A distribuição a nível nacional, feita pela Vinalda, tem vindo a dar também outra envergadura ao projecto.

Uvas, só da freguesia…

O perfil bastante clássico dos vinhos da XXVI Talhas exige uvas muito específicas desta sub-região da Vidigueira. O projecto assenta assim em algumas pequenas parcelas de vinha das famílias de Ricardo Santos e dos irmãos Parreira e também em uva comprada a viticultores locais. Quando digo locais, é locais mesmo. “Só queremos uvas da freguesia de Vila Alva”, acentua Ricardo Santos. “E apenas de vinhas antigas, não regadas, plantadas nas zonas de xisto e granito, com castas misturadas e enxertadas no local.” Um caderno de encargos que, apesar de tudo, não é difícil de cumprir, já que, por um lado, nos arredores de Vila Alva existem diversas vinhas com estas características; e, por outro, muitos pequenos viticultores da freguesia, de idade já avançada, veem no entusiasmo destes jovens uma forma de manter as suas parcelas. As castas são o mais tradicional possível: Antão Vaz, Perrum, Roupeiro, Diagalves, Manteúdo, Trincadeira, Aragonez, Tinta Grossa.

“A aceitação dos nossos vinhos e o interesse pelo nosso projecto têm sido fantásticos”, referem. “Para além do lançamento de vários vinhos e das visitas à adega, conseguimos em maio último organizar em Vila Alva o evento ‘Vinho na Vila’, com 32 produtores e 600 visitantes, cumprindo assim o nosso outro propósito: promover a nossa aldeia”.

Vinhas da Adega XXVI Talhas.

A paixão por Vila Alva, pela sua história e cultura, está presente em todas as conversas com os membros da XXVI Talhas. E não apenas nas palavras, também nas acções. “Quando recebemos clientes ou amigos na nossa adega tentamos sempre mostrar a aldeia e outras adegas onde se produz vinho de talha, mesmo que não seja para comercialização”, dizem-me. “Saber que em breve haverá mais produtores de Vila Alva, que vão passar a certificar e a engarrafar vinho de talha, ainda nos deixa mais orgulhosos e motivados. E ideias não nos faltam para continuar a fazer mais e melhor”.

O projecto da XXVI Talhas tem todos os ovos no mesmo cesto, ou seja, só produz vinho de talha, um vinho com perfil muito específico e para um nicho de consumidores especiais. Será arriscar muito? “Penso que não”, afirma Ricardo Santos. “Estamos optimistas com o panorama actual, com cada vez mais produtores e adegas a apostar nesta técnica. E a nível internacional vemos uma procura crescente por parte de um consumidor que procura vinhos genuínos e diferenciados. O interesse das pessoas em visitar as adegas tradicionais ajuda a consolidar tudo isto. Pela nossa parte, tudo faremos para que o vinho de talha não seja apenas uma moda, mas sim algo que possa fidelizar consumidores.” E, já agora, acrescento eu, trazer gente a conhecer Vila Alva. Sem esquecer que Vila Ruiva, tão linda, está mesmo ali ao lado…

(Artigo publicado na edição de Julho de 2023)

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