Edição nº11, Março 2018
Península de Setúbal
A Cooperativa Agrícola de Santo Isidro de Pegões não é meramente mais uma cooperativa produtora de vinhos do panorama nacional. Primeiro pela sua história, única no país. Depois, pelo número de associados. E finalmente pelo enorme sucesso que tem vindo a registar nas últimas décadas…
TEXTO António Falcão
FOTOS Ricardo Palma Veiga
A história da Adega de Pegões começa com José Rovisco Pais, rico proprietário rural e dono da Cervejaria Trindade (em Lisboa). Este benemérito doou em testamento o seu património na zona de Pegões aos Hospitais Civis de Lisboa. Falamos de cerca de sete mil hectares! Nos anos 50, grande parte da área foi dividida em parcelas e foram convidadas cerca de 250 famílias para as irem ocupar e explorar.
Chamaram-lhes colonos porque vieram de várias regiões do país e foi certamente o maior projecto de colonização interna até hoje realizado em Portugal. Condições necessárias eram sobretudo três: ser uma família, serem católicos e serem trabalhadores honestos. Em todas as parcelas (com cerca de 16 hectares) se fez uma casa e o único pagamento anual a fazer pelos colonos era realizado em géneros. Dez por cento da produção da parcela ia para o Estado, incluindo uvas. De facto, cada parcela tinha plantados, pelo menos, quatro hectares de vinha.
No final dos anos 50 foi constituída uma associação para vinificar as uvas dos colonos. Nasceu assim a Cooperativa Agrícola de Santo Isidro de Pegões. Já no final dos anos 80, o estado passou a propriedade das parcelas para os próprios colonos. Mas a adega ficou com imóveis, incluindo alguma terra, duas barragens e armazéns. Mas nem um pé de vinha…
Concentração e pragmatismo
Pelo meio, alguns colonos/proprietários foram comprando a área de outros. Houve assim uma concentração e não espanta que actualmente existam apenas 92 associados, um número ímpar – pela sua exiguidade – no cenário cooperativo português. O facto de a adega pagar bem (entre 40 a 70 cêntimos o quilo de uva) e a tempo e horas não faz mal nenhum… Muitos associados são profissionais na criação de uva e alguns deles têm técnicos próprios de viticultura. Vinhas bem-feitas, bem tratadas, clones seleccionados, proprietários jovens e conhecedores.
Tal não estranha, considerando que a média de área de vinha por proprietário é muito alta, havendo três associados que possuem mais de uma centena de hectares cada um! E metade dos associados é responsável por 90% das uvas. No total, a área ronda os 1.200 hectares de vinha. Com estas condições, não faltam candidatos a querer entrar, mas a adega não aceita mais desde 2000. “Ser sócio de Pegões é um privilégio, mas estamos a crescer por via interna, quer por reestruturação de vinhas, quer por aumento de área por parte dos nossos associados”, refere o director-geral da empresa, Jaime Quendera. A estratégia funciona porque a produção duplicou na última década.
Jaime Quendera entrou em Pegões com João Portugal Ramos – em 1994 – e por cá ficou depois de este enólogo ter saído, quatro anos mais tarde. Conhece por isso todos os cantos à casa. A direcção acabou a nomeá-lo director-geral, funções que acumula com a responsabilidade da produção/enologia. E ainda a área comercial, marketing e, porque não, relações públicas. A direcção, já agora, é a mesma desde há cerca de 24 anos! Ou melhor, só mudou um dos directores, mas apenas por substituição de um pai por um filho.
Uma parte da vida de Jaime é passada no estrangeiro, a promover os vinhos da adega, às vezes durante 15 dias seguidos. Tinha acontecido exactamente isso há alguns dias antes da nossa visita, com uma longa viagem ao mercado russo. Ou, há algum tempo, à China.
É por isso um dos técnicos mais polivalentes, conhecendo como poucos os gostos dos consumidores, nacionais e internacionais. Esse conhecimento levou-o a um pragmatismo impressionante na altura de saber o que fazer às uvas. Esse pragmatismo, arriscamos, tem sido uma grande mais-valia no sucesso da Adega de Pegões. De facto, Jaime não esconde, nem nunca o fez, que afina os vinhos à medida do gosto dos consumidores. E, já agora, ao gosto de muitos críticos e provadores de vinhos, que têm outorgado centenas de prémios, alguns de monta, aos vinhos da casa. A empresa conseguiu em 2017, aliás, o 27º lugar no World Ranking of Wines & Spirits, uma listagem que usa os resultados dos principais concursos de vinhos do mundo para ordenar as empresas com maior sucesso.
Terroir ajuda a produzir boas uvas
Não se julgue, contudo, que estamos a falar de vinhos ‘industrializados’. A matéria-prima que chega à adega é de boa qualidade, também cortesia da profissionalização da viticultura e do terroir desta região, localizado entre o estuário de dois grandes rios – Tejo e Sado. De tal maneira que Jaime Quendera não hesita em referir que o ano passado – extremamente seco – foi dos melhores de sempre: “Algumas videiras têm as raízes quase dentro de água”, graceja o enólogo. Produzir é, por isso, fácil: o ano passado, Pegões recebeu quase 12 mil toneladas de uva e o seu director geral não hesita em considerá-la a “maior empresa da região em produção”.
Nas castas, predominam a tinta Castelão e a branca Fernão Pires, mas a adega recebe de tudo um pouco.
Adega bem equipada
A adega está primorosamente equipada, melhor provavelmente do que muitas outras mais pequenas. A mais recente adição foi uma unidade de termovinificação Delta Extractys (da Bucher Vaslin) de última geração, destinada a vinhos tintos de grandes tiragens. O sistema trata 30 toneladas/hora de uva, mas é um processo caro e gasta muita energia (600 Kilowatts). As uvas são aquecidas a 60 graus e a 2,5 bares de pressão, o que rebenta as peliculas. O resultado fica depois em maceração durante 2 a 3 horas, para extracção de compostos fenólicos e aromas. A pelicula é depois retirada e o vinho tinto vai a fermentar, sem película. “Os vinhos que daqui saem ficam mais macios e gulosos. Mas também já experimentei usar este sistema para vinhos de topo e ficam bem à mesma”, garante Jaime. O Delta Extractys permite ainda amaciar os vinhos oriundos de uvas com pouca maturação, sobreprodução ou com problemas de sanidade.
A área total coberta da adega é enorme, rondando os 35 mil metros quadrados. A parte superior está ocupada, desde há alguns anos, por painéis solares fotovoltaicos, que geram uma parte da energia consumida na empresa, cerca de 40%.
Com a produção a crescer ano após ano, é preciso ampliar. “Estamos sempre em obras”, graceja Jaime. E também por causa das certificações, exigidas por grandes clientes estrangeiros. Tudo está hoje debaixo de tecto; “não há nada à chuva”. A adega consegue vinificar e estagiar 17 milhões de litros, mas este ano ficou completamente cheia. Por isso, vai receber mais 4 milhões de litros de capacidade. Desses, quase metade vai para a fermentação… Tudo está em inox, tudo está automatizado. “É volume, é barato, mas é bem feito”, garante o gestor. “E, como sempre, vendemos tudo, não chega… Temos que crescer”, remata Jaime.
Milhares de barricas
O crescimento também passa pelo estágio. O parque de barricas é enorme, com mais de 3.000 barricas. Por aqui há de tudo, de todas as marcas, incluindo de preço elevado. “Compramos 400 a 500 barricas por ano”, diz-nos Jaime. Cerca de um milhar está numa cave especial, apenas dedicada aos moscatéis da casa: todos passam pela madeira, mesmo os de preço mais modesto. Jaime não hesita: “Não é um estágio barato, mas obtém melhores resultados.” Num canto desta cave, um conjunto de barricas contém o ‘tesouro’ da casa: 5.000 litros de Moscatel de 1998.
As restantes barricas estão em duas outras caves. É lá que repousam os melhores tintos (e alguns brancos). Os espumantes também são uma das forças da casa, mas mais para exportação e têm uma cave própria.
85% do que sai daqui é vinho engarrafado. Mas o portefólio da casa não é vasto e é de propósito. Jaime não quer dispersar-se por dezenas de marcas diferentes, como acontece em algumas outras empresas. É verdade que Pegões engarrafa marcas exclusivas para grandes cadeias comerciais. Mas o grosso da produção passa pela marca Adega de Pegões, nas suas variadas versões. Desde o colheita (preço de prateleira abaixo dos 2 euros num grande hipermercado) até aos Colheita Seleccionada (abaixo dos 3 euros) e aos varietais (5 a 6 euros). O vinho não-Moscatel mais caro da casa, o Grande Reserva tinto 2013, custa €15. Mas é uma ínfima percentagem da produção local. Tal como o é o Moscatel Roxo, a €50 a garrafa. Ainda assim, o Grande Reserva esgotou num ano (cerca de 9.000 garrafas).
Os números do negócio
A empresa facturou mais de 18 milhões de euros no ano passado e cerca de 35% desse volume provém da exportação. E, segundo Jaime Quendera, já produz um terço do vinho da Península de Setúbal. Ou seja, “uma em cada três garrafas que saem desta região é vendida por esta casa”: “E estamos a falar de vinhos certificados!”, quase grita Jaime.
Ou seja, em termos de volume, Pegões estará em primeiro lugar na região. Em termos de facturação não é assim e esse passo implicaria vender mais caro, coisa nada fácil nos tempos que correm. Para escoar estes volumes, o preço é fundamental. E aqui falamos em cêntimos, porque não há poder de compra para comportar aumentos que se iriam repercutir no preço final ao consumidor. Jaime sabe isto muito bem e por isso é tão difícil criar novas mais-valias, aumentando o preço dos produtos: “Não falamos de vender 20 ou 30 mil garrafas; aqui falamos em milhões!” A exportação poderia ser uma solução para aumentar valor, mas Jaime dispara logo: “Lá fora não temos apenas uma dúzia de empresas concorrentes, temos o mundo todo!”
Embelezar o exterior, finalmente
As contínuas obras têm impedido a adega de melhorar o seu aspecto exterior, o calcanhar de Aquiles da casa. Mas já estão planeadas. O aspecto industrial vai continuar, mas tudo vai ficar mais limpo e arrumado.
Está também pronta a nova loja do vinho, que contém todo o portefólio da casa. Espaçosa e bem decorada, possui parque de estacionamento próprio, pertinho da entrada, e tem acesso separado da adega. Mas será pela entrada principal que os visitantes terão de entrar para visitar o pequeno, mas interessante, museu que explica a história desta cooperativa. Há por isso muito para descobrir em Pegões.
O mais impressionante é que muito do investimento é feito com capital próprio. Ou seja, sem recurso à banca. E alguns investimentos nem recorrem a fundos comunitários, porque não há tempo para fazer projectos e esperar decisões… “Isto tem que gerar riqueza por si só”, diz Jaime Quendera: “Não podemos estar à espera…”