Os anos passam e a memória engrandece. E aquela que tenho permite-me olhar para as notícias sobre alterações climáticas com algum distanciamento.
Um Natal, algures entre final dos anos 60 e principio dos 70, em casa da minha avó materna, na aldeia de Souropires (Pinhel). Eramos 22, entre pais, avó, irmãos, tios e primos. Dias soalheiros secos e muito frios. Dentro de casa, com lareira acesa e braseiras de brasas em duas salas, conseguíamos uns fantásticos 2º Celsius. Da boca só saía fumo de cada vez que falávamos. Sempre vestidos com os sobretudos, samarras, chapéus e gorros. Lá fora o sincelo dava aspecto glaciar a toda a paisagem. De noite temperaturas abaixo de 10º negativos.
Com falta de espaço, eu e meu irmão fomos dormir a casa do tio Zé Madeira, à vizinha aldeia das Freixedas. Quase não conseguíamos voltar-nos na cama com o peso de tantos cobertores de “papas”. Ao raiar da aurora, e com o pensamento nas prendas do menino Jesus (tinha sonhado toda a noite com elas), tirei a custo um braço debaixo dos cobertores, e deixei-o cair sobre os cobertores. Ouvi um “tchhh” gélido. Desloquei um pouco o braço para a esquerda e para a direita, … novamente “chhh”, “chhh”,… levantei assustado a cabeça do travesseiro e olhei atónito o espesso manto de gelo que cobria os nossos cobertores.
“Pedro vamos embora” – gritei em surdina ao meu irmão mais novo. Vestimos-mos à pressa, quebramos com um murro o gelo que cobria a água do jarro, e com um pouco de água na bacia junto à janela de vidros cobertos de espesso gelo, tirámos com as pontas molhadas dos indicadores a remela dos olhos. E lá fomos a correr por entre uma paisagem totalmente petrificada de branco para a lareira da avó, onde pequenos sapatitos, debaixo da luz baça que descia pela chaminé da lareira da cozinha, tinham por cima uma única e fantástica prenda e um rolinho de bombons de chocolate enfiado sapatito a dentro.
Calores
Poucos anos depois, o Outono/Inverno de 1977 foi tão quente que no dia de Natal toda a família foi fazer um almoço/piquenique para a mata do Bussaco. Os noticiários tinham à época objectivos totalmente diferentes dos de hoje, e todos achamos a ocasião estranha, mas muito divertida.
No dia anterior, o de consoada (24 de Dezembro de 1977), montados numa espectacular Suzuki 125cc que o meu pai tinha acabado de comprar ao meu irmão, fomos de Coimbra à Figueira da Foz, num fantástico passeio depois de almoço, em mangas de camisa arregaçadas e sem capacete (à época não era ainda obrigatório). Um dia espectacular, e uma história inesquecível.
Dois anos mais tarde, em 1979, nas últimas férias que passei com meus pais antes de me lançar na constituição de família própria, fiquei surpreso quando arrendaram uma casa no Algarve para a primeira quinzena de Outubro. Talvez seja um pouco tarde – pensei! Mas fomos todos os dias à praia, com muito, mas mais suave calor, e foram 15 dias de praia fantásticos.
“O tempo”, ou o clima, sempre foi um assunto recorrente numa família em que a geração viva e mais velha estava ainda ligada à lavoura (e o ser humano receia o clima desde que criou a agricultura). Recordo, sempre que havia, nos tempos mais recentes, um Outono /Inverno seco, a minha mãe a lembrar-nos que “em 1980, nem os lameiros da Souropires rebentaram”, ou seja, os lameiros sadios e verdejantes da várzea ribeirinha da aldeia de minha avó, que drena parte das águas do altiplano de Pinhel (600 a 800 metros de altitude) permaneceram todo o Inverno castanhos, ou com a cor que lhes deixou o Verão (que recordo sempre desmesuravelmente quente, em particular por terras de Castelo Branco, onde o meu pai foi médico depois de 1963).
Em 1990, já pai de filhos e mais preocupado e pessimista do que na adolescência, iniciou-se um novo ciclo de anos secos que me marcaram imenso (o último tinha sido 1980/1983). A viver em Lisboa e a trabalhar em ambiente de alta erudição cultural e intelectual, sofria, como ninguém mais, a falta de água sentida nas terras do país. A minha costela rural começava a engrossar, ainda que a sua função fosse a da arte da dança. Durante cinco longos anos muito pouco choveu em Portugal. Este quinquénio extremamente seco teve quatro excelentes anos vitícolas. No caso do Vinho do Porto, duas declarações generalizadas (1992 e 1994) e mais duas fantásticas colheitas de 1991 e 1995. E todos estes anos produziram excelente vinho de mesa de Norte a Sul numa época em que ainda não se falava de rega na vinha, sendo esta então (e firmemente) proibida pelos regulamentos certificadores.
O meu diário
A partir daqui nunca mais deixei de seguir atentamente (ou doentiamente) o clima de cada ano. Tenho inclusivamente uma espécie de diário a que chamo “Ano Agrícola”, onde vou assentando tudo aquilo que me parece relevante em termos climatéricos ao longo do ano. A minha mulher diz-me que já ando um pouco melhor. A fase aguda foram os primeiros anos da década de 90…
Ainda por cima nesta época ligava-se tão pouco ao clima que os noticiários televisivos deixaram de ter o meu imprescindível Boletim Meteorológico. Tinham acabado com o Anthímio de Azevedo precisamente em 1990. Em casa dos meus pais havia sempre um “chiu” de cada vez que aparecia o Anthímio. E eu habituei-me a estar calado enquanto se ouvia o boletim meteorológico. Depois de a televisão fazer desaparecer o Anthímio, desesperei a tentar adivinhar sozinho quando terminava a seca. O curioso é que antes de aparecerem as “app” que hoje nos indicam as previsões meteorológicas a cada 3 horas, lá em casa quem dizia “chiu” sempre que aparecia o boletim meteorológico (que, entretanto, voltaram à televisão, já não recordo em que ano), eram os meus filhos. Entre outras consciências, leguei à descendência a minha preocupação com o clima.
Hoje, com 61 anos de idade, continuo a preocupar-me com o clima, e em particular com as secas que regular e periodicamente atingem o nosso mundo mediterrânico – “A Seca: a praga do Mediterrâneo”, como lhe chamam ilustres geógrafos e historiadores.
Espero, muito em breve, voltar ao contacto para vos falar do nosso clima, sob o prisma erudito de vários e respeitados autores, que contraria fortemente o alarmismo mediático a que quase diariamente nos sujeitam.
Edição nº12, Abril 2018