TEXTO Luis Antunes
LEMBRO-ME de há muitos anos escrever uma crónica chamada “Espada na Espetada,” na qual criticava severamente o panorama gastronómico da ilha da Madeira por deixar que a sua ampla e profunda tradição gastronómica se esgotasse em banais espadas (filetes de peixe-espada) com banana e espetadas de novilho com milho frito. Banalizou-se, exportou-se e banalizou-se ainda mais o bolo do caco, agora espalhado pelo continente e suponho que em breve pelo planeta.
A riquíssima gastronomia regional, fundada em frutas exóticas, peixes de mares profundos, vegetais de solos vulcânicos, carnes de pastos verdes, e ainda uma quantidade de receitas e técnicas que se foram construindo e reconstruindo no isolamento ilhéu, estava a ser esquecida, guardada só para as mesas familiares. Vejam os meus lamentos em 2009: “Onde está o inhame? Onde estão as sopas de trigo, de castanhas, de lentilhas, de couve? A sapata de Câmara de Lobos? Os velhos pratos de carne de coelho de Porto Santo, de cabrito guisado com vinho e canela, de carne de cabra salgada e seca ao sol? Mesmo a carne de vinho e alhos desapareceu?”
Obviamente, a Madeira não parou, o turismo continuou a existir, e fatalmente havia de se fartar de banalidades de sabor internacional. Os chefes estrelados, curiosos e teimosos, juntaram a sua determinação aos resistentes cozinheiros da ilha, e o panorama parece finalmente querer mudar muito e mudar rápido. As autoridades também perceberam o que se estava a passar e agora investem forte numa nova apresentação da ilha. Recentemente, na BTL, a plataforma, de Armando Ribeiro, produziu um magnífico cocktail (dinatoire), com quatro chefes de cozinha madeirenses, a apresentar ao público lisboeta os novos caminhos para a liderança da gastronomia regional.
Luís Pestana é o primeiro chefe de cozinha madeirense a ganhar uma estrela Michelin, para o restaurante William, do grupo Reid’s, e apresentou espada com maracujá, ovas, puré de inhame e batata doce, funcho, banana e flor de borragem e foie gras com Verdelho, chocolate negro, strudel de bananas, gel de tomate arbóreo e folha de ouro, além de bolo de mel com ganache de maracujá e trufa de banana com Malvasia. Octávio Freitas, responsável pelas cozinhas da cadeia de hotéis Four Views, apresentou pickle de cavala e manga com creme de batata-doce, lombo de atum com mel da Laurissilva e papas de milho e ainda mini-bolos do caco tricolor com espada de cebolada. Rogério Calhau, da Casa Velha do Palheiro, mostrou atum com melancia e wasabi, mini-bruschetta de bolo do caco com coelho do Porto Santo, figo e alfarroba, e ainda maracujá, banana e cacau. Yves Gautier cozinha no Hotel Quinta da Serra e cozinhou carpaccio de polvo com vinagrete de maracujá e especiarias, espada em tempura de batata-doce, chutney de banana e citrinos da quinta com eucaliptos, e terminou com sablé com bolo de mel e vinho Madeira, frutos tropicais com geleia de algas e pinheiros.
Manifestamente, estas são criações refinadas, perfeitas para ligar com os magníficos vinhos Madeira, ou os cada vez melhores vinhos secos Regional Madeirense. É também óbvio que o mar de trivialidade da gastronomia madeirense não se vai dissolver em momentos, mas esta liderança pode juntar-se aos resistentes cozinheiros da ilha (nunca me esqueço do puré de batata de São Brazão, no restaurante Casa de Palha, na Achada Grande), para definir um novo e excitante território de ambição para quem cozinha e para quem visita a ilha. Quem lá vive sabe do que falo, mas também esses ficarão orgulhosos de um dia exibirem ao mundo a magnífica riqueza, sobriedade e complexidade da cozinha de uma ilha mágica.