A zona está povoada de quintas cheias de história. Quem sobe do Pinhão para montante encontra sucessivamente, à sua direita, um punhado de propriedades que são referências na região. Estamos no coração do Douro, o local por excelência para se fazerem grandes vinhos. Aqui fica o registo da visita a duas quintas de uma série longa que se estende por muitos quilómetros.
TEXTO João Paulo Martins
Há muito que sabemos que a localização da vinha é um dos factores que melhor individualiza um vinho, que lhe pode conferir particularidades que outros vinhedos, ainda que situados perto, não têm. Chega-se mesmo a afirmar que o factor localização não é um, mas sim “o” factor que determina as particularidades de um vinho. No Douro esta afirmação é ainda mais verdade quando sabemos que a exposição, a altitude, o tipo de solo e as castas são factores determinantes para se saber o que vamos colher. Dividido em três sub-regiões, o Douro tem, no Cima Corgo, o seu Eden, aquele local que é reconhecido por todos com sendo a zona que gera os vinhos de equilíbrio perfeito onde se conjugam, de forma harmoniosa, a concentração, a riqueza aromática, o perfeito balanço entre corpo e acidez. Estas virtudes são óbvias para os vinhos do Porto mas nos últimos 30 anos tornaram-se também cada vez mais óbvias para os vinhos DOC Douro. Por essa razão alguns produtores procuraram as vinhas disponíveis e aqui se instalaram, como foi o caso da Quinta de S. José mas também das Quintas da Gricha e Pessegueiro, as duas que agora abordo.
O sonho de Johnny
A Churchill começou por ser uma empresa de Vinho do Porto, a isso “obrigava” a tradição familiar do produtor. A família Graham foi em tempos proprietária da quinta dos Malvedos mas a venda da empresa à família Symington no início dos anos 60 fez com os Graham ficassem desligados das quintas do Douro. Mas Johnny Graham acabou por criar a sua própria empresa – a Churchill Graham que, adquiriu em 1999 a quinta da Gricha, na margem sul do rio, uns quilómetros acima do Pinhão. À data a Churchill já tinha uma quinta na zona do rio Torto mas a aquisição da Gricha e a possibilidade de se adquirirem mais parcelas contíguas levou a que a quinta do Torto fosse vendida. Ficaram agora 50 hectares dos quais cerca de 35 são ocupados por vinha.
Começámos por conhecer a marca Quinta da Gricha e Churchill Estates. O tinto Quinta da Gricha é feito em lagar de inox, faz maloláctica em casco novo de 500 l e fica aí 12 a 15 meses. Já o Gricha é um tinto que vem de uma vinha que tem mais consistência de qualidade e a opção foi fazer um tinto mais “borgonhês”, com menos concentração e mais elegância. Fermenta até meio com as massas e a segunda parte, após separação das massas, é feita em casco. Um modelo para seguir no futuro. São para já 3000 as garrafas produzidas. Há também uma nova marca – Talhão 8 – da qual se fizeram apenas 5000 garrafas. Foi vinificado em lagares robóticos em duas adegas alugadas na zona da Pesqueira. É a primeira vez que a empresa isola um talhão de vinha numa garrafa, mas a ideia é continuar. A vinha foi plantada em 2000, produz pouco, tem uma exposição norte e o vinho, mais aberto e mais delicado, espelha exactamente essa localização. O enólogo Ricardo Nunes que nos recebeu, salienta que “com as leveduras indígenas do vinho do Porto a fermentação é mais lenta e a temperatura não sobe muito, o que é uma vantagem”. Do vintage Quinta da Gricha fizeram-se 6000 garrafas, já o vintage Churchill chegou às 40 000.
Na quinta existia uma casa, velha e em muito mau estado mas, recordo bem, o suficientemente acolhedora para ali termos feito provas e almoçado, há talvez cerca de 20 anos. A quinta terá em breve a área alargada com mais 5 ha de vinhedos onde serão plantadas entre 10 a 15 castas, o que permitirá no futuro fazer um field blend. A casa foi objecto de restauro – com um bom-gosto que merece aplauso – e reúne agora todas as comodidades que ajudaram a que se tenha transformado também em posto de enoturismo com estadia, para já com quatro quartos mas com perspectiva de alargamento.
Na quinta produz-se Porto mas também DOC Douro. Há vinhos que não incluem o nome quinta porque as uvas são adquiridas a lavradores mas, como salientou Ricardo, “compramos todas as uvas aos nossos lavradores (cerca de 15) e não apenas as que estão incluídas no benefício”. Fiel à tradição, Johnny, agora com o apoio de Ricardo, mantém a tradicional pisa a pé em lagares para fazer o vinho do Porto. Quando visitei a quinta, em Outubro, estavam a entrar as últimas cargas da vindima, neste caso de Touriga Nacional. Para Ricardo, esta é a zona por excelência da Touriga Nacional e Touriga Franca e menos Tinta Roriz. Com uma exposição suave a norte (o que é normal em muitas parcelas da margem esquerda do rio), conseguem-se maturações muito boas e estão a ter bons resultados também com algum Sousão que plantaram em pequena quantidade, ainda assim “cremos que será melhor para Porto do que para Douro”, diz Ricardo. Das uvas da quinta é possível fazer uma hierarquia em três níveis: as uvas de topo destinam-se a Porto vintage e single quinta vintage, a vinhos de reserva que irão originar tawnies de 20 e 30 anos e um pouco para Crusted que é, normalmente, um lote de 2 anos de vintage; o segundo nível destina-se a LBV e reservas para tawnies 10 anos; no terceiro patamar encontramos os vinhos que se destinam a Finest Ruby e tawny Reserva. A Churchill Graham exporta cerca de 70% da produção.
Sendo ainda cedo para avaliações mais fundamentadas, Ricardo não tem dúvida: “estamos muito surpreendidos com a qualidade dos vinhos desta colheita de 2018, sobretudo nos Porto. Os vinhos têm uma cor fechada, com boa fruta e mostram uma grande estrutura; são tudo muito boas notícias para o futuro” disse. O brilho nos olhos também não deixava antever outra afirmação.
Pessegueiro, o vizinho do lado
João Nicolau de Almeida (filho) é o enólogo desta Quinta do Pessegueiro vizinha da Gricha. O nome próprio e o apelido vêm carregados de história e responsabilidade, do pai e do avô, ambos figuras incontornáveis da enologia do Douro desde os anos 40 do séc. XX até à actualidade.
Tudo começou com o sonho de Roger Zannier de ter um vinho e uma quinta no Douro. Empresário francês ligado à indústria têxtil e já produtor na região de Provence, Zannier adquiriu em 1991 uma propriedade com frente de rio, na margem sul do Douro e ali, partindo de uma ruína que apenas tinha quatro paredes, fez uma casa acolhedora para receber visitas com todas as comodidades. Hoje a quinta é constituída por três parcelas distintas e com idades variáveis. Mesmo junto à casa estão a decorrer novas plantações e João Nicolau de Almeida não cessa de fazer novas experiências com as variedades que lhe merecem mais atenção.
As várias parcelas, uma delas centenária, ocupam 28 ha. Nessa vinha muito velha, contígua com a vinha do Panascal, encontramos cepas decrépitas que, aparentemente, não estão já vocacionadas para produzir quantidade que se veja mas ali, João tem todo o cuidado em preservar aquele património, mesmo sabendo que, se apenas olhássemos para a folha Excel, o mais indicado era arrancar e plantar de novo. A adega é um edifício ultramoderno onde, como se costuma os dizer, houve mão de arquitecto, situada nos altos, bem perto da adega da quinta de S. José. Ali convivem os métodos mais tradicionais da pisa em lagar com os balseiros mais modernos onde fermentam e estagiam os vinhos. A quinta produz sobretudo vinho DOC Douro mas não se esqueceu o Porto: não só há vintage e LBV como existe também um Porto branco que é uma das originalidades que aqui se fazem e de que João muito se orgulha. Além das uvas da quinta também se compram uvas brancas e tintas, quer no Cima Corgo quer no Douro Superior.
A marca de entrada de gama, Aluzé, arrancou com o branco em 2012 quando se produziram apenas 1200 garrafas; em 2017 chegaram às 18 000 garrafas e em 2018 poderá atingir o número de 25 000. O tinto resulta de um lote de uvas da quinta e compradas, tem Touriga Nacional e Touriga Franca, fermenta em cuba e está 12 meses em balseiros de vinificação e só sai na altura da vindima quando são libertados os balseiros para a fermentação da vindima seguinte.
O Aluzé tinto começou com vida atribulada: o primeiro, em 2010, só tinha 12,5% e “a entrada no mercado foi terrível”, muito difícil de vender. Agora seria mais fácil “porque há mais apetência por vinhos menos graduados”, diz João. No início, o conceito era puxar para baixo no álcool. Agora são mais pragmáticos e deixam o ano expressar-se melhor, desde que com limites.
As vendas no mercado do Benelux, França e Alemanha estão muito facilitadas por se usarem os mesmos canais que vendem os vinhos da Provence, de Roger Zannier. A produção de branco continua restringida a uma marca – Aluzé – e João confessa que “ainda não temos acesso a uvas brancas suficientemente interessantes para se pensar num branco de um patamar acima; no entanto, como já temos uvas de novos plantios de Rabigato e Folgozão, acho que no futuro próximo poderemos pensar num Quinta do Pessegueiro branco”, disse.
Ao desbastar uma área de mato, descobriram-se, bem perto da casa, uns patamares antigos que, após algum restauro, foram replantados e João mostra com orgulho o resultado: “temos muito boas condições para voltar a produzir vinhos de enorme qualidade. Poderão ou não ser varietais, podem ser lote tipo Tinta da Barca com Alicante Bouschet, pode ser Rufete, logo se vê, temos de ter paciência”, afirmou. A regra por aqui é a seguinte: intervir o mínimo, assegurar fermentações com leveduras indígenas, manter tanto quanto possível o vinho mais próximo da sua expressão original, espelhando o local onde nasceu, as castas que o integram e as características do ano. Parece fácil, mas não é. O Pessegueiro já está a dar frutos. E são saborosos.
Edição Nº21, Janeiro 2019