A Escolha do Mestre: De que é feito um grande vinho?

Como se define o conceito de grandeza num vinho? O que é preciso para ser considerado “grande”, desafiando a subjectividade da avaliação qualitativa? Como nasce, como se constrói? Como é que o consumidor o reconhece? Como se comunica? E, questão incontornável, quanto tempo leva a chegar lá? Grandes vinhos de Portugal trazem-nos as respostas possíveis.

Texto: Dirceu Vianna Junior MW
Fotos: DR

O que faz vinhos de vinhedos adjacentes, elaborados com as mesmas castas, usando métodos de vinificação semelhante apresentar perfis tão distintos? Um pode ser simples, sem graça ou até medíocre; o outro, esplêndido, fantástico a ponto de despertar memórias e causar emoções. Se perguntarmos a uma dezena de pessoas o que é um grande vinho, provavelmente obteremos dez respostas distintas. Os candidatos que estudam para as provas de Master of Wine são ensinados durante o longo e árduo percurso a julgar a qualidade de um vinho avaliando parâmetros como intensidade, concentração, harmonia, complexidade e final de boca. É fundamental perceber que avaliar qualidade é algo subjectivo e requer experiência. Frequentemente provoca desacordos, pois depende das preferências e perspectivas individuais, o que se pode tornar frustrante para alguns, mas estimulante para outros. Então, como é possível explicar a diferença entre um vinho de boa qualidade e um grande vinho?

Em busca da Grandeza

A qualidade de um grande vinho começa na vinha. Em grande parte, é determinado pelo solo, clima e actividades no campo principalmente da forma como o viticultor é capaz de manejar a vinha fazendo ressaltar as características do terroir. Os melhores vinhos são aqueles que expressam de forma mais pura e transparente a personalidade do local.  Pode abranger tudo o que influencia a qualidade da uva e do vinho, incluindo o tipo de solo, subsolo, flora, fauna, exposição, gradiente e microclima. Os franceses desenvolveram este conceito há séculos que serve não apenas para ajudar comercializar vinho, mas diversos produtos agrícolas. Além de afirmar certas tradições regionais, confere certa vantagem comparativa sobre outras regiões e ajuda até mesmo promover o turismo. Para Carlos Lucas, enólogo e CEO da Magnum Vinhos, o “terroir” é uma expressão abrangente com percentagens variáveis, mas com empenho as condições podem ser compensadas e até mesmo em terroirs menos distintos é possível fazer grandes vinhos. Iain Reynolds Richardson, responsável pelo projecto familiar do Mouchão, concorda que qualquer terreno, com condições fundamentadas em estudos científicos e com tempo, pode revelar um grande vinho.

Na adega, o trabalho do enólogo é conseguir expressar o terroir. Isso não se consegue através de intervenções extremas, demasiada extração ou excesso de madeira pois atrapalha e acaba encobrindo as características do terroir. Este percurso muitas vezes resulta num vinho sem carácter, homogeneizado e com um perfil que poderia surgir em qualquer parte do mundo. Por outro lado, raramente é alcançado através da filosofia “natural”, sem intervenção, que opta por não fazer nada e deixar a natureza seguir seu percurso. Essa filosofia preguiçosa frequentemente resulta em vinhos inconsistentes e com defeitos.  Um grande vinho, capaz de expressar sua origem, é fruto de um trabalho sério e meticuloso. Para isso é indispensável compreender o processo intimamente, possuir detalhado conhecimento científico e a sensibilidade para intervir quando se torna imprescindível proteger e valorizar a qualidade da uva, conseguindo assim a expressão máxima do terroir.

O que distingue o bom vinho de um grande vinho?

A capacidade de capturar a essência do terroir e transportar o consumidor à sua origem, aliada à harmonia, intensidade, concentração, complexidade e um final de boca longo e prazeroso são algumas das características de um grande vinho. Um grande vinho precisa de ter tradição. Para construir uma reputação duradoura e estabelecer a devida herança histórica são necessárias décadas de trabalho. Pense no tempo que a Borgonha levou para conquistar seu estatuto. O trabalho iniciado pelos monges no século XI continua até os dias de hoje mostrando um aprimoramento contínuo através dos anos. Mas o ser humano gosta de procurar atalhos. Por isso inventou o que ficou conhecido como ‘Cult wine’. São vinhos tipicamente modernos, exuberantes, concentrados, marcados pelo carvalho, feitos em quantidades minúsculas e que buscam acima de tudo notas altas e críticas favoráveis. Este é um caminho frequentemente explorado por produtores americanos. Em muitos casos, essa filosofia é como construir uma casa em chão de areia; não é algo duradouro, pois as preferências dos consumidores mudam e muitos destes vinhos concentrados e potentes precisam adaptar-se às novas demandas ou acabam sendo esquecidos.

Grandeza requer uma dimensão que só o tempo é capaz de conceder. Ligada ao factor tempo, a longevidade de um vinho é outro factor essencial. Um vinho de alto calibre deve demonstrar que é capaz de se desenvolver na garrafa e continuar a impressionar ao longo do tempo. Carlos Lucas acrescenta que um grande vinho precisa também de ser único e diferente. Mas um vinho pode ter todos estes atributos e ainda assim não ser considerado um grande vinho.

Para alcançar a grandeza, um vinho deve ir além, assumir outra dimensão e estimular a mente do consumidor da mesma forma que uma escultura, pintura ou peça musical é capaz de nos transportar para outro lugar e mexer com as nossas emoções. Marquês Mario Incisa della Rochetta, fundador e proprietário do famoso Sassicaia, confidenciou: “apenas uma pequena proporção do valor que o consumidor está disposto a pagar está relacionada com a qualidade do que está dentro da garrafa. O aspecto mais importante é a capacidade de saber contar histórias, conseguir construir imagens na mente do consumidor e forjar uma conexão emocional com a marca”. Um grande vinho estimula não apenas nossos sentidos físicos, mas também nosso intelecto. Para Iain Richardson, o despertar subconsciente de uma emoção forte ou memória feliz, é o que leva o vinho mais longe. Para Pedro Correia, enólogo responsável pelos vinhos Douro do grupo Symington e da Prats & Symington, um grande vinho deixa marca, nos desinquieta, permanece na nossa memória e não nos deixa indiferentes, nem no momento da degustação nem nos tempos subsequentes… é eterno.

Para que isso aconteça, o estímulo visual é fundamental. Ver o rótulo alerta o consumidor para a reputação do produtor e cria emoções. O senso de expectativas aumenta na presença de um famoso rótulo, estimulando o consumidor a apreciar com entusiasmo e buscar os todos os atributos positivos que o vinho tem a oferecer. Em contraste, degustar um grande vinho às cegas frequentemente é decepcionante. Este tema foi sugerido pelo famoso Professor Peynaud da Universidade de Bordéus no século passado. Talvez seja essa a razão pela qual produtores de grandes vinhos preferem não submeter seus vinhos para degustações às cegas e o motivo pelo qual alguns críticos preferem não provar sem ver o rótulo.

O conceito de grandeza em estado de fluxo

É justo dizer que o conceito do que significa “um grande vinho” sofreu mudanças ao longo dos anos. Foi fortemente influenciado pelos hábitos das pessoas nobres e da realeza nos séculos passados. Ao longo dos anos os comerciantes, principalmente britânicos, responsáveis pelo transporte e comercialização da grande parte dos vinhos exportados exerceram importante papel decidindo quais os vinhos a importar. Até metade do século XX, quando os vinhos do Novo Mundo ainda eram pouco conhecidos, os importantes mercados mundiais consideravam vinhos sérios aqueles originados em Bordéus, Borgonha, certos vinhos do Porto e marcas de Champanhe e alguns alemães. Este conceito evoluiu rapidamente no final do século XX, quando Robert Parker entrou em cena e revolucionou o conceito de grandeza, baseado nas suas interpretações e opiniões pessoais. Após a era Parker, o conceito de grandeza não ficou mais nas mãos de um influente indivíduo, mas passou a ser conferido por uma comunidade ampla de críticos e publicações. Actualmente vários profissionais são capazes de exercer certo grau de influência, mas já não basta a avaliação de apenas um crítico ou pontuação de uma publicação, por mais influente que seja, para ser considerado genuinamente “um grande vinho” no âmbito mundial. Olhando para o futuro e considerando a ascensão dos média sociais, essa dinâmica continuará mudando e os produtores ficarão mais próximos dos seus consumidores. A influência do consumidor e a opinião dos influenciadores da média social se tornará cada vez mais importante.

Não é apenas o conceito de grandeza que está mudando, mas também as condições ambientais. Os desafios impostos pelas alterações climáticas não são novidades, mas a magnitude das mudanças que estamos vivenciando é drasticamente superior, comparado com o que nossos ancestrais testemunharam no passado. O facto das uvas terem requisitos específicos para atingir um nível de qualidade adequado trazem consideráveis obstáculos, pois mesmo pequenas alterações climáticas podem representar grandes desafios. Felizmente, a Vitis vinífera é uma espécie resiliente e muitos produtores, atentos a esses desafios, já trabalham com o objetivo de mitigar as ameaças impostas pelas mudanças climáticas, plantando variedades mais resistentes, alterando a orientação das fileiras dos vinhedos, modificando o sistema de condução, estabelecendo irrigação, entre outras soluções. Todos esses esforços para continuar fazendo vinhos de alta qualidade e tentar acompanhar as preferências do mercado.

As condições naturais têm um impacto directo nos estilos de vinho, mas um grande vinho pode ser leve e elegante como um Riesling alemão ou encorpado e potente como um Shiraz australiano. Existem opções de estilos desde os mais tradicionais até vinhos mais polidos e modernos oriundos de regiões clássicas como Piemonte, Rioja ou Bordéus. A combinação entre a influência dos críticos, mudanças climáticas e preferências do consumidor ajuda a explicar por que os estilos de vinho mudam e como a percepção do que é um grande vinho evolui ao longo dos anos. É possível ilustrar tal ponto comparando vinhos mais redondos, frutados e alcoólicos (14%+) de conceituadas propriedades de Bordéus de uma colheita recente como 2018, com vinhos de há meio século cuja estrutura era firme, acidez elevada e nível de álcool notavelmente inferior. Para muitos produtores, essa busca pela grandeza é um trabalho em desenvolvimento e ter um Premier Cru Classe de Bordéus, um Grand Cru da Borgonha ou um Super-Tuscano como fonte de inspiração não é uma má ideia. Tal como acontece noutras actividades como culinária, arte, desporto, ter grandes referenciais serve como fonte de inspiração e ajuda a direcionar o caminho de projectos ambiciosos.

Os Grandes Vinhos de Portugal

Existem vários projectos ambiciosos em Portugal, muitos dos quais já estão a fazer excelentes vinhos. Apesar do crescente reconhecimento dos críticos portugueses e estrangeiros, os vinhos portugueses ainda não conseguiram conquistar o espaço que merecem nas prateleiras e listas de restaurantes internacionais. Para Carlos Lucas não é a qualidade que está em causa, mas é a história. Pedro Correa concorda e diz também que, com excepção do Vinho do Porto, falta massa crítica, para tornar mais fácil o reconhecimento.

Certas coisas levam tempo. Para construir boa reputação e melhorar a percepção de que Portugal é capaz de fazer vinhos de grande classe é preciso muito trabalho e comunicação, não é algo que acontece de um dia para outro. Iain Richardson explica que o marketing terá um papel preponderante, porque a percepção e o preconceito têm muito peso na alma do provador.

Cada viagem começa com um pequeno passo. O primeiro passo é ter confiança. Os produtores devem continuar buscando melhorias e refinando estilos, mas um factor crucial é a habilidade de saber contar histórias.

A mensagem deve ser cativante, convincente e memorável, mas grande parte dos produtores não domina a arte de saber comunicar suas histórias com a confiança necessária para fazer um discurso persuasivo. Algo vital, principalmente num setor tão fragmentado e competitivo. Fazer vinho é um simples ofício, fazer bom vinho é uma habilidade, alcançar a grandeza transcende o perfil organoléptico do produto. É preciso saber conectar-se emocionalmente com o consumidor.  O conceito de grandeza vai além da qualidade do vinho na garrafa. Envolve percepção e emoção.

“Efeito Halo”

Apesar de profissionais e consumidores investirem tempo discutindo os grandes vinhos clássicos do mundo, esse segmento representa uma proporção minúscula dos vinhos consumidos. Um país não consegue sobreviver comercializando apenas vinhos ícones. É preciso vender grandes volumes de vinhos mais comuns para conseguir penetração no mercado e sucesso comercial. No entanto, estes grandes vinhos desempenham um papel extraordinariamente importante pois contribuem para elevar a imagem do país como um todo. Existe a percepção de que a França produz alguns dos melhores vinhos do mundo, embora os seus melhores vinhos representem uma fracção da produção. No entanto, os seus vinhos premium ajudam a criar um “efeito halo”, que é a percepção positiva irradiada sobre todos os vinhos, garantindo certa vantagem comercial, especialmente em mercados menos maduros. Consequentemente, uma quantidade considerável de vinho mais barato é vendida a partir dessa percepção e imagem. O “efeito halo” funciona não apenas a nível de país, mas também a nível de produtor. Pedro Correia acredita que um grande vinho confere um estatuto especial de excelência à empresa produtora, reforçando o seu prestígio e notoriedade nos mercados e catapultando toda a gama para um patamar de visibilidade que não está ao alcance de todos. Ter um vinho super premium no portfólio e obter o devido reconhecimento, de certa forma irradia uma imagem positiva para os demais produtos. Este motivo é suficiente para que todo o produtor trabalhe incansavelmente em busca do reconhecimento que realmente é capaz de fazer um grande vinho.

(Artigo publicado na edição de Fevereiro 2021)

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