Alicante Bouschet, um herói improvável

A natureza acolhedora dos Portugueses é uma das razões pelas quais têm tanto sucesso na indústria turística por todo o mundo. Talvez o facto de Portugal ter recebido a Alicante Bouschet de braços abertos logo no século XIX se deva a esse espírito hospitaleiro.

 

TEXTO Dirceu Vianna Junior MW

A casta é de origem francesa mas foi adoptada e terá adquirido uma alma bem Portuguesa. Pessoas adoptadas podem ter grandes vidas, alcançando os objectivos mais extraordinários, assim retribuindo a confiança neles depositada. Em caso de dúvida basta consultar as autobiografias de celebridades como Marilyn Monroe, John Lennon, Bill Clinton, Steve Jobs ou Nelson Mandela – todos eles foram adoptados.

Livros portugueses do século passado – disponíveis na biblioteca do Instituto da Vinha e do Vinho (IVV) – evidenciam como a Alicante Bouschet, juntamente com outras castas menos conhecidas tais como Aspirant–Bouschet, Carignan Bouschet, Morrastel– Bouschet, já estavam plantadas em Portugal em 1902. A introdução poderá ser atribuída à família Le Cocq de Castelo de Vide. Para além de serem visionários, a família tinha ligações directas com França visto que um dos seus descendentes, João José viveu e estudou em Paris nessa época. Contudo, um dos mais prolíficos enólogos consultores do Alentejo, Paulo Laureano, assim como Júlio Bastos, proprietário da Quinta Dona Maria, acreditam que as primeiras vinhas de Alicante Bouschet terão sido plantadas em Mouchão no final do século XIX pela família Reynolds. Este período coincide com a replantação que teve lugar após a crise da filoxera.

Independentemente da data em que foi introduzida, apenas nos anos 90 do século XX a Alicante Bouschet alcançou o reconhecimento generalizado entre os produtores portugueses, não havendo dúvida que a casta está a compensar quem acreditou no seu potencial. Os resultados de um dos mais conceituados concursos de vinho internacionais, Decanter Wine Awards 2017, revelam que 34 dos 40 vinhos Alicante Bouschet que receberam um prémio foram produzidos em Portugal. A área plantada desta casta tem vindo a aumentar exponencialmente desde os anos 90 e actualmente é de 4,128.39 hectares, de acordo com o presidente do IVV, Frederico Falcão. Alicante Bouschet é a 23ª casta mais plantada no mundo com 38,985 hectares. No seu país de origem tem-se verificado um declínio constante. Em 1958, a Alicante Bouschet cobria 24,168 hectares, sobretudo no Sul de França, mas por volta de 2011 a área de vinha tinha decaído para menos de 4,000 hectares. A casta parece não ter obtido o respeito que merece. Contudo, é interessante ver que o preço de mercado, supostamente, aumenta nas colheitas em que as regiões do Norte produzem uvas com falta de cor. Tal foi confirmado por uma fonte anónima do Sul de França.

Espalhada pelo mundo
Xavier Roger, um dos raros produtores franceses que vinificam Alicante Bouschet como uma monocasta, acredita que é possível atingir bons resultados uma vez que as vinhas actuais são muito velhas. Simplesmente, a grande maioria de produtores não lhe prestam a atenção suficiente, pelo que o vinho acaba quase sempre por ser desperdiçado em lotes sem interesse. Como, devido à idade das vinhas, a produção decresce ao ponto de atingir níveis não rentáveis, os produtores franceses insistem em arrancar as videiras e não as substituir. Este facto não impediu a vinha de se espalhar por outros países como Itália (nomeadamente Sardenha, Córsega, Toscânia, e Calábria), Espanha (Castilla–La Mancha, Galiza e Valencia), Turquia, Hungria, Croácia, Bósnia Herzegovina, Chipre, Israel e Suíça. Também marcou a sua presença no Norte de África assim como em destinos do Novo Mundo como a Argentina, Austrália, Brasil, Chile, Uruguai e Estados Unidos da América.

Nos Estados Unidos foi intensamente plantada na Califórnia durante a Proibição. A cor intensa foi muito conveniente durante este período, já que permitia a diluição do vinho com água sem quebra da cor original. Nessa altura, as uvas eram transportadas da Califórnia para cidades ao longo da costa Leste, nomeadamente Nova Iorque, onde as casas de leilões funcionavam como centros de distribuição. Consequentemente, aumentou a procura de uvas que conseguiam suportar a viagem, para além das películas espessas e cheias de cor da Alicante Bouschet serem outra vantagem a considerar.

Nos anos 30, Alicante Bouschet era a segunda uva mais plantada na Califórnia chegando a ocupar mais de 15000 hectares, mas tem-se verificado uma forte queda desde então. Hoje ocupa uma área de 382 hectares e o seu legado mais duradouro é o papel secundário que desempenha nos Zinfandel de Vinhas Velhas, em famosos produtores como Ravenswood e Ridge.

Na vinha, as videiras mostram-se vigorosas e tendem a florescer cedo, o que por vezes causa a perda de produção durante as geadas da Primavera. Os viticultores mais preocupados com a qualidade preferem fazer uma poda curta e restringir a produção, que pode atingir os 200 hectolitros por hectare em solos férteis. Quando Henri Bouschet obteve a Alicante Bouschet ao cruzar Grenache com Petit Bouschet vários clones foram desenvolvidos, nomeadamente Clone 1, 2, 5, 6, 7, 12 e 13. Hoje em dia só através de perfis de ADN é que é possível distinguir cada clone e a maioria dos produtores não consegue discernir que clone plantou.

Adaptada a Portugal
O Instituto da Vinha e do Vinho tem feito um trabalho extraordinário na simplificação da nomenclatura das castas em Portugal. A casta é oficialmente conhecida como Alicante Bouschet, embora na Beira ainda haja quem lhe chame, não oficialmente, Sumo Tinto. Fora de Portugal a casta é conhecida por outros nomes, incluindo Garnacha Tintorera ou Tintoreta em Alicante, Dalmantinka na Croácia e Kambusa na Bósnia e Herzegovina.

A Alicante Bouschet dá-se bem em climas quentes, gosta de extensas horas ao sol e amadurece relativamente tarde, de acordo com Júlio Bastos. É capaz de suportar condições de seca bem severas fazendo do Alentejo a região mais privilegiada para produzir esta casta. As folhas suportam o calor mas a fruta tem de ser protegida de forma a evitar danos causados pelo sol, o que tem sido um problema crescente. Paulo Laureano acredita que impor um limite máximo à produção, mantendo-a por volta de 5.5 toneladas por hectare, é crucial para a qualidade global. De acordo com Júlio Bastos, um dos segredos por detrás da Alicante Bouschet é a escolha do local, particularmente no que diz respeito a condições mais frescas encontradas em altitudes mais elevadas. O momento da vindima é crucial para Júlio Bastos que procura atingir o completo amadurecimento fenólico do bago, evitando assim as notas vegetais e taninos amargos.

Nas adegas, a higiene tem que ser a principal preocupação, especialmente se for usada madeira velha como é o caso de Mouchão. Miguel Ângelo Vicente Almeida, um enólogo português a viver no Sul do Brasil, tem experiência com a Alicante Bouschet plantada há 16 anos perto da fronteira com o Uruguai. Segundo ele, é necessário muito cuidado para controlar os taninos; para além disso a casta é altamente redutora precisando de arejamento intenso durante a vinificação. Júlio Bastos prefere a tradicional vinificação em lagares onde os cachos são sujeitos a pisa a pé, dando dessa forma ao vinho uma maior complexidade geral e mais longevidade. Paulo Laureano avisa que é necessária grande cautela no estágio de forma a monitorizar a acidez volátil e os níveis de sulfuroso livre.

Alicante Bouschet é uma excelente casta para lotear. Para além da cor, ela contribui com volume, estrutura e concentração. Contudo, quando colhida prematuramente, pode ser neutra, com taninos agressivos e pouco apelativa. Quando completamente madura, origina vinhos com uma bela cor, notas de fruta preta, compota, licor, ervas silvestres assim como cacau, chocolate negro e especiarias exóticas, quando estagiada em madeira. Ao envelhecer, pode desenvolver aromas de couro, caça e notas balsâmicas.

A Alicante Bouschet aumenta indubitavelmente a longevidade de um lote. Miguel Ângelo Vicente acredita que como monocasta tem tudo o que um vinho precisa para envelhecer bem: aromas intensos quando atinge a maturação completa, cor profunda, acidez crocante e taninos robustos. Paulo Laureano concorda que a Alicante Bouschet envelhece bem durante décadas, como é confirmado pelo primeiro engarrafamento do Mouchão nos anos 50, que se mantém em boa forma após mais de meio século.

Não resta dúvida que a Alicante Bouschet está bem adaptada a Portugal, onde dá origem a vinhos excepcionais. Ao contrário de Donald Trump, todos estamos conscientes das alterações climáticas. A Alicante Bouschet consegue resistir melhor que muitas outras variedades a condições quentes e áridas. Por estas razões, acredito que a Alicante Bouschet tem futuro não só em Portugal, como no resto do mundo. Os produtores de outros países deveriam estar atentos às potencialidades desta casta, seguindo o exemplo de Portugal. E os produtores portugueses, em geral, deveriam manter a liderança do jogo, aprendendo com os melhores criadores de Alicante Bouschet, que apresento a seguir. Se tal se verificar, tenho a certeza que a Alicante Bouschet terá um futuro auspicioso.

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