AZORES WINE COMPANY: Entre mar e vulcão

Legenda da foto: António Maçanita e Filipe Rocha

Como dizem os nossos vizinhos espanhóis, “primero, lo primero”, ou seja, importa começar pelo início, ainda que a história já tenha sido narrada algumas vezes. Em pleno século XV, e como era habitual um pouco por todos os territórios descobertos, também os primeiros povoadores dos Açores começaram a plantar vinha, sobretudo no Pico, nas brechas entre rocha lávica (tecnicamente quase não há solo), muitas vezes com alguma terra trazida da ilha do Faial. A vinha era, depois, protegida dos ventos salinos do oceano por pequenos muros formando currais.
A ilha do Pico, que se imagina ter chegado a quase 15 000 hectares de vinha, sofreu intensamente com a filoxera e depois com outras doenças e ataques, de tal forma que a produção ficou limitada a pouco mais de uma centena de hectares e, à excepção da Adega Cooperativa local, a um estatuto quase familiar, com algumas castas (caso do Terrantez) à beira da extinção.

Em 2007, António Maçanita, jovem enólogo e produtor vindo do continente, mas com mais do que uma costela açoriana, conhece o economista Filipe Rocha numa formação de comida e vinhos na Escola de Formação Turística e Hoteleira, sita em Ponta Delgada, onde este último era docente e dirigente. Pouco depois, António aceita o encargo de um estudo sobre a casta Terrantez do Pico, como acima referido, à beira da extinção, associando-se aos Serviços de Desenvolvimento Agrário de S. Miguel. Por volta da mesma altura, António conhece Paulo Machado, um dos maiores pilares da vitivinicultura açoriana, produtor da marca Insula Vinus, prestando ainda assistência técnica a outros projectos insulares. Depois de muitas conversas (e, estamos certos, ainda mais tertúlias vínicas nas famosas “adegas” existentes nas várias ilhas dos Açores), os três – António, Filipe e Paulo – fundam, em 2014, a Azores Wine Company (AWC), não sem que António tenha sido, no ano anterior, convidado por Paulo para produzir um Arinto dos Açores, precisamente no Pico.

Azores Wine Company

Para António Maçanita e Filipe Rocha, fundadores e proprietários da AWC, o esforço e o investimento são sempre maiores do que o projectado no Pico, mas os vinhos também são sempre melhores.

António, que já tinha tentado plantar uma vinha anos antes nos Açores, e ensaiado algumas vinificações, ficou impressionado com o resultado obtido! E assim começou a aventura…. Ora, se podemos afirmar que os três protagonistas mencionados tinham formação sólida nas respetivas áreas, dúvidas também não existem que o enredo e o contexto contribuíram para a realização e sucesso da obra.
Em primeiro lugar, dez anos antes, a classificação da paisagem da cultura da vinha do Pico como Património Mundial tinha colocado a ilha-montanha nas bocas do mundo, tendo-se duplicado, numa década, a sua área de vinha para uns ainda pouco significativos 250 hectares. Depois, a nível internacional começou a desenvolver-se um interesse por vinhos de ilhas e mesmo até por vinhos de ilhas vulcânicas, da Sicília a Santorini, passando pelas Canárias ou pela Ilha Norte da Nova Zelândia. Os vinhos dos Açores, e do Pico em especial, tinham encontrado o seu momento de nova ascensão, séculos depois de terem agraciado fama pela Europa e EUA. Os dados estavam lançados…

De São Mateus à Criação Velha
As melhores expectativas seriam, contudo, superadas. Ainda antes de se sonhar com a adega-hotel que actualmente é um polo criativo de enologia no Pico, a AWC lança-se em busca do essencial: vinhas e uvas. Enquanto adquiriam uvas a produtores locais no Pico, ficaram responsáveis por 30 hectares em São Mateus, no sul da ilha. Ora 30 hectares no Pico não são 30 hectares de planície pronta a plantar. O trabalho de desbaste do mato cerrado e reconstrução dos currais foi tarefa hercúlea, envolvendo mais de 30 homens durante meses. Volvida uma década, António e Filipe (Paulo Machado saiu, entretanto, da sociedade) ainda têm bem presente essa aventura, apelidada ao tempo pela generalidade dos picarotos como impossível (chamavam-lhe “a vinha dos malucos”). A verdade é que o esforço foi maior do que o inicialmente projectado, mas essa, dizem ambos, é a regra no Pico. “O esforço e o investimento é sempre maior do que o projectado, mas os vinhos também são sempre melhores do que pensámos que seriam”, confessam.

Hoje é com notório orgulho que ambos olham para esta vinha como um marcador do tempo: o primeiro grande desafio superado no Pico! Sucede que António e Filipe não são apologistas de “esperar para ver” e a história, os estudos e as (muitas) provas dos vinhos que iam fazendo apontaram rapidamente para um lugar especial a partir do qual pudessem fazer mais vinho. Esse lugar foi – e é – a Criação Velha, precisamente a paisagem que contribuiu para a classificação da Unesco. Fica na parte oeste da ilha e não muito distante da Madalena. É aqui onde as vinhas mais velhas, centenárias mesmo, se podem ainda encontrar, estendidas até a meros metros ao mar (do outro lado do canal está a ilha do Faial) e com maior exposição solar, uma vez que são os terrenos que mais distam da montanha que atrai, diariamente, as nuvens. Primeiro, com vinhas na zona da Canada do Monte e, depois, mais perto do mar, a AWC compreendeu a importância do Lajido da Criação Velha e seria daqui que os seus melhores vinhos seriam, e ainda são, produzidos. Mas lá iremos… Para a história fica o registo que, logo em 2014, a AWC produziu cerca de 10 000 garrafas. Alguns anos volvidos, e com mais de 125 hectares totalmente recuperados, esse valor subiu para uma média de 50.000-60.000 garrafas por ano.

Os vinhos
António Maçanita chegou as Açores com vários anos de rodagem do Alentejo (o seu projecto com maior dimensão é a Fita Preta, próximo de Évora), para não falar dos estágios em França e EUA, e dos vinhos que produz noutras regiões nacionais. E chegou com dois propósitos bens claros e que ficam evidentes perante o extenso portefólio da AWC: por um lado, conhecer e recuperar castas antigas (lá está o estudo inicial sobre a Terrantez do Pico) e, por outro lado, fazer o melhor vinho possível naquele terroir tão particular, que, segundo António, é um dos mais vocacionados para produzir os melhores brancos do país. O caminho para o primeiro desígnio passou pelo estudo e investigação das origens das castas, algo a que Maçanita se dedica continuamente e do qual fala com grande entusiasmo. Já para o segundo propósito, o percurso seria outro.

Como não existe uma história engarrafada dos vinhos tranquilos do Pico – os vinhos do Pico eram tendencialmente licorosos –, António começou a fazer o que mais gosta: testes e experiências, na forma de vinificações, por vezes mini-vinificações. Uma vez que a AWC foi engarrafando todas essas experiências, e colocando no mercado várias delas, podemos mesmo dizer que os consumidores ficaram com o privilégio de ir conhecendo, vindima a vindima, o percurso vitícola e enológico seguido. A eleição desta ou aquela vinha para vinificar em separado, colher mais tarde ou mais cedo, recorrer, ou não, a leveduras indígenas, efectuar estágio em borras ou sem borras, utilizar primeiras ou segundas prensas e espumantizar alguns vinhos bases, sem esquecer os licorosos que deram fama à ilha… enfim, tudo isso, e mais, foi testado ao longo dos anos e deu lugar a marcas distintas de vinhos, quase todos já esgotados.

Os vinhos e as marcas foram-se sucedendo, sempre privilegiando as castas Arinto, Verdelho e Terrantez em múltiplas declinações: foi o Arinto dos Açores, em versão sur lies ou em versão solera, vinhos de mais do que uma ilha e de mais do que uma colheita, mas também os vinhos de zonas e vinhas, caso do Canada do Monte, depois a Vinha Centenária, mais recentemente o Vinha dos Utras e a novidade última com o excelente Vinha dos Aards. Insistimos na tese: o portefólio extenso da AWC reflete essa busca pelo vinho perfeito, da viticultura à enologia, e esse é dos maiores legados que a empresa nos deixa. Para o futuro, fruto da experiência acumulada, é expectável que a gama se reduza e consolide.

Azores Wine Company

 

Parte do sucesso do enoturismo desta casa deve-se ao emprenho da sua responsável, Judith Martin

 

 

A adega e as novas vinhas
A parte final de toda essa experiência já foi possível numa nova adega, que começou a ser idealizada e construída em 2018 e inaugurada no primeiro semestre de 2021. Adega não… Falamos de um edifício que dispõe de alguns quartos cuidadosamente decorados e de um restaurante panorâmico que elevou o nível gastronómico da ilha (o sucesso do enoturismo deve-se muito também à sua responsável, Judith Martin), cuja adega propriamente dita é utilizada por outros produtores locais. Dizer, assim, que esse edifício é apenas uma adega é, como vimos, redutor. É, isso sim, um dínamo para a região, atraindo turistas da natureza, gourmets arreigados, e amantes do vinho, produtores e consumidores. A adega tem as melhores condições da região e uma capacidade para 250 mil litros. Por ora, e como acima já se referiu, a média anual de vinificação para as marcas da AWC cinge-se a valores entre 1/4 a 1/5 dessa capacidade. Já houve anos, como 2018 e 2019, em que a produção foi muito superior, mas, ainda assim, muito abaixo da produção média do continente. Com efeito, a experiência demonstra que os volumes anuais de uva nos Açores raramente são constantes, tanto em quantidade como no próprio estado sanitário, existindo anos mais molhados que outros. Mas não se pense que isso é mau, pois acarreta diversidade nos perfis. Enquanto os anos mais secos dão origem a mostos mais limpos, com fruta mais viva e directa, os anos mais molhados – anos clássicos nos Açores – contribuem com mostos com mais cor e aromas mais complexos de oxidação.

À volta da adega existem 50 hectares de vinha, às quais se soma a de São Mateus de que já falámos e onde tudo começou, e ainda várias parcelas no Lajido da Criação Velha. Mas, uma vez mais, António e Filipe não ficaram parados e procuraram um novo local para desbastar. Encontraram-no numa fajã criada pela erupção de 1562 na Baía de Canas, entre a vila de S. Roque e a Prainha, na zona norte da ilha. O que agora é uma vinha com três anos, era tudo mato, num total de 40 hectares, onde se plantou sobretudo vinhas tintas, caso do Bastardo, Rufete, Castelão e Saborinho, todas castas com alguma ligação a outras castas presentes nos Açores. António e Filipe dizem que, neste local, a vinha está plantada num chão sem matéria orgânica, pelo que o desafio é enorme, mais a mais tendo em consideração que a associação de tintos à ilha do Pico é menor do que a de brancos.

 

 

 

 

Provas e mais provas
Um dia com António Maçanita é sinónimo de provar dezenas de vinhos, e outras tantas amostras retiradas diretamente de barricas e cubas (aqui quase todas horizontais). Tivemos o privilégio de provar todas as colheitas de quase todas as referências da AWC, um verdadeiro festim de vinhos brancos, frescos, ácidos e maravilhosamente salinos! Mais um outro tinto (muito bom o raro Saborinho, sobretudo na colheita de 2015), aberto na cor e elegante na prova, e alguns licorosos de grande nível. Fizemos o percurso que acima identificámos como aquele que António atravessou até chegar aos seus melhores vinhos. Provar o Vinha dos Aards e o Vinha dos Utras, os dois topos de gama, é sentir que houve um caminho anterior, que continua com os vinhos Canada do Monte e o Vinha Centenária, igualmente soberbos. São todos belíssimos, com carácter açoriano, com os primeiros a serem quase sublimes. Muitas provas depois, ficámos com a certeza de que do Pico, e da AWC, saem alguns dos melhores brancos de Portugal.

(Artigo publicado na edição de Fevereiro de 2024)

SIGA-NOS NO INSTAGRAM
SIGA-NOS NO FACEBOOK
SIGA-NOS NO LINKEDIN
APP GRANDES ESCOLHAS
SUBSCREVA A NOSSA NEWSLETTER
Fique a par de todas as novidades sobre vinhos, eventos, promoções e muito mais.