Castelão: O príncipe de Palmela

Legenda da foto: Filipe Cardoso, José Caninhas e Luis Simões: unidos pela amizade e pelo Castelão.

Castelão, o resultado do cruzamento natural do Alfrocheiro e Cayetana Blanca (conhecida também como Sarigo e Mourisco Branco), é uma das variedades mais antigas em Portugal, mencionada desde 1531 na zona de Lamego. Foi também conhecida como Castelão Francês (e não tem nada a ver com Castelão Nacional, que é Camarate), entre outras sinonímias menos populares.
Actualmente, o IVV reconhece dois sinónimos com restrições regionais – João de Santarém na DO DoTejo e Periquita, que está intrinsecamente ligado à sua história na Península de Setúbal. Tem a ver com a propriedade Cova da Periquita, em Azeitão, onde foram plantadas as primeiras varas por José Maria da Fonseca nos meados do século XIX. A casta adaptou-se lindamente à região e afirmou-se como parte da sua identidade no que toca aos vinhos tranquilos. Na segunda parte do século passado, o encepamento tinto representava 90% da área total da vinha da Península de Setúbal, dos quais 95% era Castelão. Ainda hoje, a DO Palmela exige 66,7% de Castelão no lote. Tirando a DO Colares com Ramisco, é a maior expressão identitária oficialmente estipulada de uma casta tinta no seu terroir de excelência.

Entretanto, o reinado na vinha não se reflectiu no sucesso comercial, por variadíssimas razões, algumas mais objectivas e óbvias do que outras. Como sempre, nestas situações as castas estrangeiras e nacionais de outras regiões parecem uma salvação. Hoje é preciso ser um entusiasta para preferir uma casta rústica e tradicional às alternativas modernas. E felizmente há produtores que reconhecem as qualidades do Castelão e apostam na casta – Casa Horácio Simões, Quinta do Piloto, Sociedade Vinícola de Palmela (SVP) e um projecto conjunto com marca Trois. A SVP, directa ou indirectamente ligada aos outros projectos citados, organizou a masterclasse dedicada à casta.
Mesmo com significativo declínio em plantação, os dados mais recentes do IVV indicam que Castelão, com cerca de 3600 ha, é responsável por 44% das vinhas na Península de Setúbal. É a região com mais Castelão em Portugal.

Luís Mendes da Associação de Viticultores do Concelho de Palmela (AVIPE) contou que, de acordo com o registo da região, existem vinhas de todas as idades, incluindo 26 ha de vinhas velhas, com cerca de 90 anos, plantadas na década de 30 do século passado e 35 ha com idade média de 80 anos. A maior parte (quase 35%) das vinhas presentes hoje na região, foi plantada na última década do século passado, um pouco menos a partir de 2000 e daí para frente a casta perde terreno. Entretanto, se há 10 anos era típico plantar Syrah em vez de Castelão, agora esta tendência travou. Curiosamente (e é bom sinal), há mais gente na região a plantar Castelão; e alguns substituem as cepas velhas por novas, utilizando o material policlonal, exemplifica Luís Mendes.

 

Castelão
Luís Mendes, da Associação de Viticultores do Concelho de Palmela, conhece a casta em profundidade.

 

O senhor das areias

A serra da Arrábida cria a barreira física para os ventos do Norte e canaliza-os em direcção a Palmela. Os rios Tejo e Sado contribuem com humidade nocturna. A proximidade do mar reflecte-se em nevoeiros que trazem frescura e também humidade. Luís Mendes exemplifica que no verão, por vezes, as temperaturas podem chegar aos 40°C de dia e cair até aos 18°C à noite. Juntamente com humidade isto permite a planta a equilibrar-se em termos hídricos.
Da Palmela a Pegões, a maior parte do Castelão, incluindo as vinhas velhas, encontra-se plantada nas planícies com solo de origem arenosa, onde as uvas amadurecem bem. São poucas as plantações que ocupam os terrenos de argilo-calcário nas encostas da Serra da Arrábida. A vindima normalmente ocorre na segunda-terceira semana de Setembro e dura até a primeira semana de Outubro. Na Serra da Arrábida a maturação é mais tardia 1 semana. A janela de oportunidade de vindima no caso de Castelão é relativamente confortável.
O Castelão resiste bem às amplitudes térmicas e à falta de água o que faz uma óptima correspondência com as condições da região. Muitas das vinhas velhas não são regadas, nas vinhas mais recentes a rega é comum. O solo arenoso é pobre e esvazia-se de água muito rapidamente, mas em algumas zonas as toalhas freáticas ajudam a salvar a situação, desde que a planta consiga fazer crescer as raízes (o que se verifica nas vinhas mais velhas, bem enraizadas).

Castelão é uma casta muito produtiva, sem controlo facilmente ultrapassa os 15 tn/ha. Como é natural, esta característica fica condicionada com idade da planta. As vinhas velhas produzem cerca de 3-4-5 tn/ha, dependendo dos clones envolvidos e das características do terreno. Os solos arenosos geralmente têm menos capacidade de retenção de água e nutrientes em comparação com solos argilosos, limitando naturalmente a produtividade e promovendo maior concentração nos bagos.
Em termos agronómicos, o calcanhar de Aquiles do Castelão é a sua grande sensibilidade ao desavinho. Também é sensível à Cigarrinha Verde, uma praga móvel, difícil de controlar que ultimamente tem dificultado muito a viticultura na região. Foi referido que, apesar de ter a película rija, os cachos sofrem bastante com escaldões. No entanto, aguenta melhor a conservação do cacho do que a Trincadeira.

Visitámos uma vinha antiga plantada entre 1954 e 1956 que pertence à Casa Agrícola Monte dos Pardais, uma das sócias da SVP. No solo tipicamente arenoso, erguem-se os troncos não aramados de vigor evidente, que mesmo na altura pós-vindima com a vinha despida se apresentavam bastante imponentes. O compasso de 2,70-2,80 m permite a passagem de um trator para fazer os tratamentos fitossanitários, enquanto outras operações não podem ser mecanizadas, devido à condução da vinha. Ao contrário das vinhas novas, onde a zona de frutificação fica a 70-80 cm do solo, nesta vinha velha, os cachos não se afastam do solo mais de 40 cm o que, obviamente, dá mais trabalho, mas afecta beneficamente a maturação. Esta vinha dá 6-8 tn/ha – nada mal para uma vinha com mais de 60 anos.

 

Versatilidade comprovada

A prova, comentada por Filipe Cardoso (sócio/enólogo da SVP e da Quinta do Piloto), José Nuno Caninhas (enólogo da SVP) e Luís Simões (sócio/enólogo da Casa Horácio Simões e director geral da SVP), foi bem didáctica, permitindo sentir a versatilidade de Castelão em função das proveniências e abordagens enológicas.
Começámos por provar as amostras desta vindima de 2023. As duas primeiras foram da Casa Horácio Simões, provenientes das vinhas com 60-70 anos de sítios diferentes. Uma da vinha Cachamurrão numa zona mais fresca localizada na Serra do Louro, que leva com ventos do Norte. Outra da vinha das Oliveiras junto a Palmela, de uma zona mais abrigada e mais quente. A vinificação foi igual – em lagar com pisa a pé e com 30% de engaço. O primeiro vinho é mais imediato, de grande limpeza aromática já nesta fase (ainda não finalizou a maloláctica), taninos mais verdes, mais perfumado, com menos concentração e acidez um pouco dura no final de boca. O segundo com mais tanino maduro e mais estrutura. O vinho final é sempre o lote dos dois, proporcionando o equilíbrio.

O terceiro vinho era da vinha mais nova, com 25 anos, da Quinta do Piloto, vinificado em cubas argelinas, onde durante a fermentação as remontagens são feitas aproveitando a pressão criada pela libertação do dióxido de carbono, sem o recurso a bombas. Estava um pouco reduzido, mas com óptima estrutura de tanino, equilíbrio e textura. “Temos que arriscar até ao final da fermentação maloláctica para não tirar o vinho a limpo, tem que ficar com a borra toda” – explicou Filipe Cardoso. Seguiu o Castelão das areias da vinha que vimos hoje. Tanino mais proeminente, ligeiro CO2 ainda, mais corpo, notas de fruta preta com destaque para amora.
O quinto vinho foi do projecto Trois, com um conceito próprio. É um pas de trois dos produtores, enólogos e amigos de longa data: Filipe Cardoso, Luís Simões e José Caninhas. Para além da amizade, une-os a predileção por Castelão. Tudo a multiplicar por três – três terroirs (das areias e da serra), três barricas diferentes, três vinificações, que no final resultam num vinho especial. O 2021 ainda não está no mercado e encontra-se numa fase intermédia a precisar de garrafa, consideram os produtores. Só é lançado quando estiver pronto. Bela fruta e elegância no nariz, barrica já está bem integrada, um apontamento vegetal q.b. para acrescentar a complexidade, não há muita secura de tanino. Suculento, elegante, fresco, delicioso. Percebe-se que o estágio em garrafa lhe vai dar mais integração geral.

Península de Setúbal é a região com mais Castelão em Portugal.

Os próximos dois vinhos da Sociedade Vinícola de Palmela já se encontram no mercado. No Serra Mãe 2020 o objectivo é enfatizar os aromas da casta. A influência da madeira é muito reduzida neste caso: apenas para melhorar a percepção geral do vinho, o pH é mais alto para não dificultar a prova. O produtor vê o vinho como “mais democrático, mas belo exemplo de casta”, como refere Luís Simões. Arbusto, groselha, framboesa e novamente arbusto com flores. Bem feito, não perde identidade, nem rusticidade, mas apresenta também algumas características facilitadoras. Funciona como uma porta de entrada para o consumidor menos experiente.
O Serra Mãe Reserva 2020 tem origem na vinha mais antiga, com 12-14 meses em barrica, sendo 10-20% barrica nova que o vinho aguenta bem graças à maior extracção. Aqui já exploraram a rusticidade, algumas rugas de tanino ficam-lhe bem. Notas carnudas, especiaria, estrutura, mas não há muita untuosidade, é enxuto, atlético, com óptima acidez. É claramente para outro tipo de consumidor.
Esta vinha dá origem ao Botelharia 2017, com o estágio mais prolongado em garrafa. Foi engarrafado em 2019. Mentol, eucalipto, esteva bem presentes no aroma para além da fruta. O volume de boca corresponde à textura, não peca por falta de frescura, musculado, mas não é difícil, até é bem sedutor e envolvente.
O Trois 2015 está no momento óptimo para beber, um Castelão feito propositadamente para ser consumido mais tarde. Tanino domesticado; complexo, mentol, cânfora, ainda fruta fresca (ameixa e cereja), cominhos, terra. De grande polimento e ainda com muita pujança. Secura elegante do tanino a pedir proteína, mas não a encortiçar a boca.
O Horácio Simões Reserva 2014, de um ano difícil com chuva na vindima, mostrou-se distinto e cheio de carácter com mentol, fruta negra, ameixa, ervas aromáticas, manjericão, tabaco e chá na vertente aromática; tanino com certa dureza, mas com os ângulos já arredondados, o que sabe bem com a frescura que o vinho apresenta. Não é pujante, sabe a vinho com certa rusticidade, bonita e bem-vinda. Óptima acidez. Clássico.

O Quinta do Piloto Reserva 2014, também feito em cubas argelinas, com 40% de engaço para fixar as antocianas, por isso a cor ainda está muito viva. Castanhas, notas mentoladas e terrosas. Contido no sabor, sendo bem vocacionado para comida.
O Quinta do Piloto Reserva 2012, foi o primeiro vinho com a marca desta propriedade. As temperaturas no verão foram sem excessos, vindima normal a partir da segunda semana de Setembro. Vinhas velhas. Barrica nova 100%. Este vinho resultou também num late release como Garrafeira 2012. Nos bons anos guardam-no para mostrar a capacidade de envelhecimento do Castelão. Muito especiado, com cravinho, tabaco, couro, eucalipto e alecrim. Tanino a agarrar as gengivas, bem seco, menos fruta, mais vegetal, couro e especiaria no final.
O Serra Mãe 2012, feito em balseiro e barricas usadas. Não foi dos mais harmoniosos no nariz, apresentando algumas notas de ferrugem; acidez bem marcante coloca o vinho fora do consenso. O Serra Mãe 2005 era o quarto vinho desde o início do projecto em 1999. Antigamente só o faziam em anos de topo. Tem bela complexidade aromática, mirtilo, mentol, eucalipto, tabaco. Vivo, denso, impetuoso, com tanino potente, rústico e robusto, com uma elegância própria que ganhou com idade.

Castelão

 

Dentro da versatilidade da casta, deve existir uma segmentação clara e uma mensagem correcta ao consumidor.

 

O que fica do Castelão?

A masterclasse proporcionada pela SVP-Sociedade Vinícola de Palmela a um grupo de jornalistas e profissionais HoReCa cumpriu por inteiro, oferecendo uma visão abrangente sobre o passado, presente e futuro da casta, na vinha, na adega, no mercado.
Historicamente, enquanto o Castelão mais polido e com menos cor levava ao desinteresse do consumidor e do produtor, o Castelão mais rústico e com carácter chegava ao mercado cedo demais. No entanto, a casta é tremendamente versátil e, quando plantada nos locais certos, muito consistente na sua qualidade. Mas dentro da sua versatilidade, deverá existir uma segmentação clara desde a vinha à abordagem enológica, pois para conquistar novamente o consumidor é necessário ter foco na mensagem. Quem procura vinhos mais fáceis, prontos e confortáveis tem de os ter, até porque a casta presta-se muito bem para isto. E quem busca os tintos sérios, personalizados, estruturados e longevos, mas sem nunca perder elegância, frescura e sofisticação, tem no Castelão de Palmela uma variedade com imenso potencial. Os vinhos estão aí a demonstrá-lo.

(Artigo publicado na edição de Janeiro de 2024)

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