Cozinha e género, parar para pensar

A franca visibilidade dos chamados chefs Michelin não exprime a
realidade nem da história nem da prática da cozinha. É verdade que
no imaginário popular uma mulher na cozinha é afecto e um homem
organização, mas pelos chavões não vamos a parte alguma.

 

NO passado, Mère Brazier, Marie Bourgeois, Marguerite Bise e, neste momento, Anne-Sophie Pic apenas, são as únicas mulheres cozinheiras que atingiram em França o escalão supremo da complexa escala Michelin no guia vermelho. As únicas mulheres que tiveram em França três estrelas Michelin. O espaço para a especulação e suspeita de misoginia por parte dos inspectores e directores do guia francês é mais que muito, de resto é o que tem acontecido.

São mais exigentes com as francesas do que com as outras. Em Itália, Nadia Santini e Annie Feolde têm três estrelas. Em Espanha, Carme Ruscalleda e de certa forma Elena Arzak conseguiram igual proeza. Por outro lado, não há grande cozinheiro – Michelin ou não – que não confesse a sua ligação aos sabores da infância, campo essencial e profundamente maternal. Os livros clássicos de receitas que o mundo inteiro lavrou são na maioria de pena feminina, as homólogas de Maria de Lourdes Modesto, Felipa Vacondeus, Berta Rosa-Limpo desbravaram as mesas populares, entraram nas casas pobres com o mesmo fulgor que nas mais nobres e acondicionaram o inefável receituário de que hoje dispomos. Nem o bolo de prata foi esquecido nem a caça maior, que já quase não se oferece em restaurante, ficou de lado.

Faz-me pensar se não há afinal mais de feminino que masculino nos projectos a longo prazo, em que é forçoso que inclua os muitos legados do vinho e seus territórios. Maria Odete Cortes Valente, Graça Castelo Lopes, Maria Emília Cancella de Abreu e tantas outras mulheres povoam o imaginário de quem está há muito tempo no ofício de cozinheiro em Portugal. A esses, note-se, nunca ninguém lhes ouviu um comentário negativo sobre cozinha no feminino.

Talvez a ideia de esforço físico, de arcar com panelas de mais de 15 quilos de caldo e meias carcaças de novilho, tenha sido a certa altura argumento. Mas a irascibilidade de um chef intempestivo é bem mais avassaladora do que a hipotética quebra de resistência de uma chef perante os desafios físicos que hoje estão reduzidos ao mínimo. E os homens são os primeiros a dizer que nas suas brigadas a função suplanta o género e que hoje não há qualquer diferença. As cozinhas já foram espaços de muitas batalhas e confrontos físicos, hoje são espaços de trabalho como outros quaisquer.

Os tempos que vivemos nada têm a ver com os tempos em que uma mulher ser eficaz e distinguir-se lhe dava má reputação. Oficiou no Hotel Cavendish, em Londres, uma das mais prodigiosas cozinheiras do seu tempo, Rosa Lewis (1867-1952). Num livro delicioso e de leitura obrigatória para quem quer perceber o que relaciona ou não cozinha e género, Mary Lawton relata algumas das vicissitudes da que era para ela “a rainha dos cozinheiros e de alguns reis”. Criou, absorveu e adaptou milhares de grandes receitas, mas foi sempre perseguida pelo rumor de que era amante de Eduardo VII, e o próprio hotel onde trabalhava tornou-se num ponto de encontro amoroso da alta aristocracia londrina. Enorme injustiça, daquela de que os homens de hoje infelizmente ainda são capazes. De qualquer forma, foi escola importante para muitos e sistematizou conhecimento que estava disperso pelas muitas cozinhas inglesas.

No outro lado do oceano a liberdade de movimentos não era muito maior mas as mulheres iam conseguindo notabilizar-se através de iniciativas de grande fôlego. Fannie Farmer (1857-1915) revolucionou o ensino da cozinha, detendo ao mesmo tempo várias “primeiras” no palmarés. Foi, por exemplo, a primeira a especificar medidas rigorosas de ingredientes nas suas receitas, o que deu brado. Claro que hoje ainda temos expressões como “q.b.” nas receitas com que trabalhamos e transmitimos, mas ninguém aceitaria voltar a guiar-se por medidas qualitativas como um “sopro” ou um “bom gole” de determinando ingrediente.

Paris acabou por ser onde, por acidente, nasceu uma das mais bem sucedidas iniciativas de sempre no mundo da cozinha e alta cozinha. No final do séc. XIX, Marthe Distel, jornalista parisiense, lança uma revista chamada “La cusinière Cordon Bleu”, que queria dizer mais ou menos a cozinheira perfeita. Publicava receitas e proporcionava experiências ao vivo com os chefs mais famosos. A popularidade foi tanta que fundou a escola Cordon Bleu, hoje uma referência mundial do ensino culinário, em todas as frentes. Popularidade esmagadora, foi talvez a primeira a expor o labor dos chefs na comunicação social, atingindo assim o grande público amador.

Havia um lado humanitário grande em tudo o que Distel concebia, tanto que à sua morte todo o legado reverte a favor de uma associação de orfanatos sua protegida. A guerra força o interlúdio e quis o destino que a escola Cordon Bleu fosse parar às mãos de um homem, grande cozinheiro por sinal, co-fundador da cadeia Ritz de hotéis, de seu nome Auguste Escoffier. Trabalho bem continuado, há que dizer. Resta saber quanta da inspiração do grand chef e empresário não vem afinal da gigante Marthe Distel. Mas isso, como muitas outras coisas, nunca saberemos.

A viragem do século e a guerra mexeram, sabemos, em tudo e em todos. E aprendemos que ser redutores não nos leva a nada, antes queremos que as cozinhas sejam palcos de cultura e realização pessoal. E que o género seja… o da cozinha. Espero que não seja pedir muito.

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